Comida para cachorros.

Eles comeram em silêncio e quando terminaram, Lucine foi recolher os pratos para limpá-los. Aram segurou seu pulso quando ela foi tirar o dele.

— Depois de fazer isso, me espera no sofá da sala.

Ela fez como ele pediu enquanto Aram se dirigia ao quarto. Ele voltou com uma caixa de suprimentos de primeiros socorros e se sentou no mesmo sofá que ela, porém mais afastado.

— Agora tira o tênis e coloca a perna no sofá.

Ela o obedeceu, colocou o pé já sem a meia para cima do sofá, próximo de onde ele estava. Ele pegou a perna dela, colocou em seu colo e começou a examinar atentamente os ferimentos. Deu-se conta que existiam diversas cicatrizes, umas por cima das outras, o que significava que ela passou bastante tempo amarrada com as cordas a ferindo. Os machucados se curavam e outros eram abertos. Naquele momento ele soube que aquela fêmea havia passado por algo verdadeiramente ruim. Achou melhor não fazer qualquer comentário, lavou a região com soro e aplicou uma pomada com antibiótico.

— Você está demorando a se curar porque está muito fraca.

— Sim, eu não tenho conseguido assumir a forma de loba, meu físico e psicológico estão uma bagunça.

Lucine achou melhor não mencionar a vez que havia se transformado em Alfa suprema.

Aram terminou de enfaixar um pé  e pediu que ela subisse o outro, repetindo o mesmo procedimento. A curiosidade sobre o que ela havia passado o atormentava mas não era a hora de interrogatórios. Quando ele terminou, desceu os pés dela com suavidade, novamente para o sofá. Colocou tudo que usou na maleta novamente e se levantou para guardá-la outra vez no quarto.

Depois ele sentou-se novamente ao seu lado no sofá.

— Lucine, por que não me disse que estava ferida antes de carregar toda aquela lenha? Ainda por cima calçando tênis sem meias, já está esfriando, poderia ter piorado muito as suas feridas.

Ela o olhou por um momento, não conseguindo esconder o misto de sentimentos que trazia dentro de si.

— Você não viu as cicatrizes antigas, Alfa? Reclamar não é algo que tenha tido permissão para fazer ultimamente. Na verdade, não lembro de ter tido valor de voto em algum momento da minha vida. Você conheceu eles, sabe bem de que tipo lobos se tratavam.

— Quem fez isso com você?

Aram perguntou sem rodeios, encarando-a.

— Os gamas. Podemos dizer que eu não fui com eles por vontade própria naquela noite, mas eu não gostaria de falar sobre isso, se eu puder escolher.

Ele assentiu, constatando mais uma vez que haviam apenas animais irracionais naquele clã que ele havia destruído.

— Tudo bem, de qualquer forma não me interessa nada sobre seu antigo clã, apenas cuide destes tornozelos. Não quero que demore mais do que deveria para isto curar de vez e você poder cumprir suas funções aqui. Eu vou trabalhar um pouco mais com a lenha.

Ele levantou e ela fez menção de o seguir, mas ele fez um sinal para que ela ficasse onde estava.

—  Você nem pensa nisso. Fique aqui assistindo TV e faça a lista que pedi com as coisas que precisa.

Ele entregou o controle da televisão para ela e foi em direção aos fundos.

No dia seguinte, Aram deu graças por estar livre da lua de mel e poder sair da cabana. Foi até a casa dos anciãos, onde eram realizadas as audiências e reuniões importantes do clã, saber se existia alguma demanda urgente, de  preferência bem demorada, que o afastasse da sua cabana e da sua esposa pelo maior tempo possível.

Quando chegou, o tio o recebeu.

— Aram, que surpresa você por aqui. O casamento realmente está te fazendo bem, até o fez retornar para a casa dos anciões.

Ele ignorou o gracejo do idoso e foi logo ao ponto.

— Existe algo que precise ser tratado? Alguma demanda do clã? Precisamos organizar tudo para o inverno.

— Venha, vamos tomar um café.

O tio o levou até a pequena cozinha e serviu a bebida em uma caneca.

— Já colhemos o que podia ser colhido e arrumamos os abrigos das criações de animais. Vendemos o excedente e, com o dinheiro, compramos outros produtos que não plantamos, para dividir entre todos. Precisamos marcar uma reunião para fazer a divisão corretamente e agendar as matanças. Nesse inverno talvez teremos menos animais do que no último, a carne terá que ser racionada.

Essa não era uma notícia boa, pensou Aram. Com o racionamento de comida, os ânimos costumavam ficar exaltados.

— Tio, e se conseguíssemos empregos temporários para os homens na indústria madeireira? Seria uma boa forma deles ganharem um dinheiro extra. O responsável pela extração, que fica a poucos quilômetros daqui, já me pediu homens, estão sempre precisando.

— É uma boa ideia, o melhor é marcar essa reunião o mais rápido possível. Tudo precisa estar acertado quando o frio chegar.

— Eu vou pedir para os betas da guarda avisarem todos.

Ele mandou uma mensagem de texto, anunciando a convocação. Pela forma como as coisas funcionavam na Aldeia, até a noite todos já estariam sabendo e compareceriam na reunião do dia seguinte.

— Tio, preciso ver os depósitos de suprimentos e os rebanhos. Avaliar tudo antes de amanhã.

— Sim, vamos, eu mesmo levo você.

Disse o ancião que estava comovido e aliviado.Aram levou o dia todo para inspecionar tudo e contabilizar as provisões. Se as famílias quisessem fartura, teriam que aceitar o emprego na indústria madeireira. Quando o sol começou a se pôr, não havia mais nada que o impedisse de ir para casa. Ele e Lucine haviam trocado poucas palavras, quando ele voltou do trabalho com a lenha, no dia anterior. Ela havia esquentado comida para eles e, mesmo que estivesse cansado, às 06:00 pm era muito cedo para ir dormir, então eles assistiram a um documentário sobre a vida selvagem que estava passando na tv enquanto comiam e depois foram dormir.

Quando ele entrou na cabana, ela estava na cozinha.

— Oi, a comida do casamento acabou, então eu fiz algo que pode ser considerado um ensopado.

Quando ele saiu pela manhã ela ainda estava dormindo, agora estava usando outro conjunto de moletom, um na cor cinza, que lhe caia tão mal quanto o outro. Tinha os longos cabelos, que eram impressionantemente grisalhos, presos em um rabo de cavalo, e ele percebeu que ela usava as pantufas que ele deixou do lado do sofá pela manhã quando saiu. Aqueles chinelos deviam estar bem mais confortáveis que os tênis, devido aos machucados que ela tinha.

— Eu já coloquei a mesa, pode se sentar que eu já vou levar a panela.

Lucine disse, ainda um pouco insegura, mas empolgada por ter feito tudo sozinha. Aram se serviu de uma boa quantidade de ensopado, o cheiro não estava ruim, mas aparência era horrível. Ele não fez nenhum comentário, apenas se concentrou em servir seu prato.

— Eu não tinha acesso a Internet para pegar nenhuma receita, então meio que segui meus instintos. Escolhi ensopado, pois confesso que achei que seria mais fácil. E foi, aquela embalagem de carne cozida que estava na geladeira facilitou muito na verdade. Eu só precisava misturar com o caldo e ferver tudo.

Ela seguia tagarelando e aparentemente esperando ele provar. Quando já havia provado a primeira colherada ele se deu conta de algo que ela havia falado. Embalagem de carne cozida? Ele não se lembrava de ter algo assim na geladeira, nem carne crua ele deveria ter, há semanas não fazia compras. Ele imediatamente foi até a pia da cozinha e cuspiu na pia toda a porção que havia colocado na boca.

Lucine ficou surpresa com a rapidez com que ele se levantou.

— Nossa, pelo cheiro eu não achei que tivesse ficado assim tão ruim.

Quando ele terminou de enxaguar a boca e cuspir na pia, finalmente falou

—  Aquilo na geladeira não era carne sua garota maluca, era comida de cachorro.

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