O bar Ossos e Rosas era um dos vários que existiam no Bairro da Boemia, mas se caracterizava por ser o mais famoso e antigo dentre os que tinham donos de origem eslava, sendo um dos mais antigos da cidade e que teria sido erguido pelo próprio Víktor Kotov, que se tornou o chefe da sua família e, consequentemente, dos negócios ilícitos comandados por ela, sendo um dos cinco indivíduos mais poderosos de Maité.
É dito que teria sido do próprio Víktor a ideia do nome do bar e do símbolo dos ossos cruzados com rosas entre eles, tanto como uma forma de lembrar a época em que a família Kotov transformava os seus desafetos em adubo para as plantações de rosas das famílias Smirnov e Melnikov, como de anunciar as esperanças quanto à Pax Maitensis, pois os eslavos doaram todas as rosas necessárias para as cerimônias fúnebres de todos os que caíram durante o Cataclismo, incluindo dos membros das outras famílias criminosas.
Uma dessas outras famílias era a italiana Romano, cujo chefe, Matteo, foi uma das vítimas do Cataclismo, deixando três filhos e uma filha, Giulia, que assumiu os negócios, deixando o irmão mais novo, Carlos Alberto, descontente com isso. Porém, preferindo não criar uma guerra e confiando que a Pax Maitensis funcionaria, ele abandonou as atividades criminosas e, no ano seguinte, nasceu o seu primeiro filho, Carlos Alberto Oliveira Romano Filho, que vinte anos depois lhe daria o primeiro neto.
Carlos Alberto Oliveira Romano Neto cedeu a sua mesa a um grupo de jovens que tinha chegado ao bar um pouco depois de ele pagar a conta. O espaço estava cada vez mais cheio e não fazia sentido ficar ocupando aquele lugar, uma vez que já estava de saída, então, ele foi aguardar Clara escorado à parede de uma das entradas.
Passados alguns minutos, o rapaz sentiu um leve esbarrão no braço e, quando virou o rosto, viu que era Clara, parada ao lado dele, mascando um chiclete e com ambas as mãos segurando o celular, em cuja tela os olhos estavam vidrados.
- E aí, vamos? - indagou a jovem, olhando brevemente para os olhos de Carlos, que sorriu em resposta e saiu andando na frente. Clara o seguiu e eles passaram por entre as mesas ocupadas na calçada em frente ao bar.
- Meu carro tá mais pra lá. - disse Carlos, enquanto atravessavam a rua e passavam em frente ao outro bar, seguindo direto para a esquina - É aquele ali, o único vermelho. - indicou, quando já haviam passado do canto do quarteirão.
- Ele não está quase no fim do quarteirão. - comentou Clara, enquanto terminava de digitar o endereço dele e se perguntando se seria o endereço verdadeiro.
- Olhando agora, realmente não está. - respondeu o rapaz, se perguntando por qual motivo pensou ter estacionado quase na outra esquina.
Chegando próximo o suficiente para ver a placa do carro, Clara rapidamente digitou as letras e números dela, enviando as mensagens para Débora antes de entrar no carro.
- Acabei de perceber que você não me disse o seu sobrenome em momento algum. - comentou Clara, enquanto colocava o cinto de segurança e Carlos colocava o carro em movimento.
- Sério? - disse ele - Talvez se você tivesse perguntado, eu teria respondido! - riu, vendo que Clara estampava no rosto uma expressão que concordava com o que ele falou - Romano, meu sobrenome é Romano. Na verdade, meu nome completo é Carlos Alberto de Oliveira Romano Neto, mas meus amigos me chamam de C.A.O.R.N. - informou, notando a expressão de incredulidade no rosto da jovem.
- Romano? Como a família criminosa italiana que comanda a cidade junto com as famílias Kotov, Topatinga, Olamilekan e Watanabe? - perguntou Clara.
- Sim, exatamente esses Romanos. - respondeu Carlos.
- E você não achou relevante me informar isso, mesmo que eu não perguntasse? - indagou Clara, perguntando-se se não deveria m****r uma nova mensagem para Débora.
- Não muito, porque, assim, embora eu seja parte da família, mantenha contato com meus primos e tal, ninguém do meu lado da família participa dos negócios ilícitos - respondeu Carlos - Nós não sabemos de nada sobre os negócios, nada mesmo.
- E isso é possível? - perguntou Clara, deixando escapar uma breve risada como a de quem acabara de ouvir algo absurdo - É a primeira vez que estou ouvindo algo desse tipo. - Clara estava achando aquilo tudo incrível, uma novidade, uma coisa muito interessante para compartilhar com Débora no dia seguinte.
- Sim… É! - disse Carlo, achando engraçada a reação de Clara.
- E… Como foi que isso aconteceu? Você pode contar? - indagou ela, curiosa e pensando que havia um bom tempo que ela não se encontrava com um cara tão interessante ou, pelo menos, com coisas interessantes para contar.
- Posso sim, não tem nada de mais. - respondeu ele - A minha família faz parte de um ramo que abandonou essas atividades criminosas lá no começo da Pax Maitensis, quando o meu avô não gostou que a única irmã dele, minha tia-avó, Giulia, foi escolhida como a nova chefe da família. - contou Carlos, até que um pouco empolgado por falar sobre isso. - Entendeu?
- Sim, sim, entendi. - respondeu Clara - Mas porque tem um “Oliveira” no teu nome? Pensei que todo esse povo das famílias criminosas só casasse e tivesse filhos com gente da mesma comunidade. - perguntou, notando que, embora Carlos tivesse alguns traços italianos, ele tinha uma aparência muito mais miscigenada do que semelhante à dos outros ítalo-brasileiros do bairro Sete Colinas.
- Verdade, entre eles ainda existe muito dessa babaquice de só se casarem e terem filhos com gente da mesma origem - comentou o rapaz - Meu avô me explicou, uma vez, que isso é muito mais para manter algum controle sobre os rumos dos negócios do que por algum pensamento racista ou algo do tipo. - começou a explicar o rapaz, um pouco mais sério - Tanto que muitos dos mafiosos que estão nas hierarquias mais baixas são casados com pessoas de outra etnias - continuou - Aliás, você sabia que existem muitos casamentos entre as cinco famílias?
- Não, também não tinha ouvido falar sobre isso… - respondeu a jovem, tentando se lembrar se já tinha visto ou ouvido algo a respeito.
- Pois é, esses casamentos entre as famílias seriam uma forma de estreitar os laços e manter a Pax Maitensis viva. - disse Carlos.
- Tá, mas você não respondeu a minha pergunta. - pontuou Clara, quase impaciente, mas muito mais temerosa de que ele acabasse seguindo a conversa para outro rumo e esquecesse de responder. Ela detestava ficar curiosa a respeito de algo e não conseguir sanar a curiosidade.
- Claro, eu ainda não terminei. - retrucou o jovem, parando o carro num sinal vermelho - Como eu dizia, existem muitos casamentos entre as hierarquias mais baixas das cinco famílias e, na prática, elas hoje são uma coisa só, cooperando nas atividades e repartindo os lucros. - explicou - Agora, respondendo a tua pergunta, meu bisavô teve duas esposas. A primeira era italiana e foi a mãe dos gêmeos e da única filha dele, Giulia Romano, que herdou o comando da família e dos negócios criminosos. A segunda esposa dele era brasileira mesmo, filha de um judeu com uma mulher cafuza. Esse “Oliveira” no meu nome vem dela. - respondeu, ouvindo Clara soltar um “ah” logo em seguida.
Carlos ainda chegou a perguntar para Clara se ela gostaria de saber mais alguma coisa sobre ele ou sobre o seu relacionamento com a parte mafiosa da família, mas ela declarou que, por enquanto, havia saciado a curiosidade a respeito dos bastidores familiares da máfia de Maité.
- Você me deu muito mais informações do que eu esperava - disse ela - ou que realmente seriam necessárias para um encontro casual! - brincou, dando uma breve risada - Mas eu até que fiquei um tantinho aliviada por você ter aberto o jogo. Claro, poderia ter feito isso lá no bar e, sim, eu sei, eu deveria ter perguntado lá mesmo ou nas nossas conversas pelo chat do Esbarre, mas agora isso não importa, a curiosidade é quanto à tua casa… Ao teu quarto… - deixou o tom de voz insinuante, enquanto ela se inclinava na direção do rapaz, aproximando os seus lábios do rosto dele e levando à mão direita a deslizar do joelho à virilha dele - À tua cama… - sussurrou no ouvido de Carlos, pouco antes de morder a orelha dele, enquanto a mão dela acariciava-lhe a genitália por cima da calça.
Clara beijou o pescoço do seu parceiro para aquela noite ao mesmo tempo em que desabotoava a calça dele, lentamente deslizando o cursor do fecho ecler para baixo. Carlos riu quando ela comentou com uma pontada de desapontamento que homens não deveriam usar cuecas.
- Talvez aquelas que tem umas aberturas… - pontuou, ao mesmo tempo em que Carlos parava em mais um sinal vermelho, ao lado de outro carro.
Naquele momento, coincidiu de um alto e magro homem, que estava de carona no carro ao lado, ver Clara inclinando a cabeça em direção ao regaço de Carlos até desaparecer por trás da porta do veículo vermelho. O observador também percebeu que os lábios do rapaz se moveram logo em seguida e, se as janelas de ambos os carros estivessem abertas, talvez ele pudesse ter ouvido o jovem dizer que Clara não precisava fazer aquilo, pois a casa dele já estava a poucos metros.
***
A casa em que Carlos morava com a família ficava no meio de um quarteirão do bairro Sete Colinas e tinha muros altos o suficiente para não permitir que nada do andar de baixo fosse visto. Podia-se ver apenas que havia um segundo andar e que este possuía duas janelas com varandas voltadas para a rua em frente.
Naquela noite, não tinha mais ninguém na casa, pois os pais de Carlos estavam fora da cidade e todos os irmãos e irmãs dele estavam pernoitando nas casas de outras pessoas. Por isso, o rapaz incentivou Clara a não se conter, caso quisesse fazer barulho, e deixou a música rolando em altíssimo volume para que os gritos dela não fossem ouvidos pela vizinhança.
- Ei! - gritou Clara, quando Carlos repentinamente soltou o seu cabelo, sua cintura e deixou a cama - O que aconteceu? - indagou ela, nua e de joelhos na cama, vendo o rapaz reduzindo o volume do som até que a música ficasse quase inaudível e um peculiar ding dong se destacasse.
- A campainha! - disse Carlos, virando para Clara e fazendo uma cara de chateado - Deve ser algum vizinho incomodado com o som alto, vou lá resolver isso e já volto pra gente terminar o segundo tempo. - explicou, enquanto vestia uma bermuda.
Sem camisa, Carlos desceu pela escada, enquanto a campainha continuava a tocar e passou pela sala de estar, seguindo até a cozinha, que era onde ficavam, lado a lado, o interfone e o monitor das câmeras de segurança. Na tela, ele viu um homem que nunca tinha visto antes, nem no bairro, nem em canto algum.
- Boa noite! Posso ajudar? - indagou o rapaz, sem tirar os olhos do monitor.
- Detetive Enoque Vos, Distrito de Polícia de Maité. - disse o policial, exibindo o distintivo para a câmera - Procuro por Clara Katsaros e pelo Carlos que se encontrou com ela no Ossos e Rosas.
Após ouvir a voz do rapaz dizer que abriria o portão elétrico, o detetive Enoque se afastou da porta perto da qual o interfone ficava e se dirigiu para a frente da entrada, cuja folha metálica já se encontrava deslizando ruidosamente, deixando livre o caminho para o pátio da casa. Já com o portão às suas costas, Enoque escutou o estalo do seu fechamento, enquanto se via com um gramado à esquerda e, à frente, um caminho projetado para o passeio de veículos domésticos, notando que havia um carro vermelho que se encontrava estacionado muito mais à frente, quase passando a casa em si, mas ainda sob uma área coberta. Isso levou o detetive a imaginar que a porta de vidro presente na parte da frente não deveria ser muito usada, que aquela fa
Pelo monitor de segurança, Carlos viu Clara e o detetive Enoque saindo pelo portão, cuja folha metálica começou a deslizar para fechar a entrada logo em seguida, depois que o rapaz pressionou o botão do controle. Na sua mente, o jovem se questionava a respeito do que ocorrera momento antes, pois, embora ele tenha se oferecido para acompanhá-la à cena do crime e ao Distrito Policial por mera educação, a resposta negativa dela havia mexido um pouco com ele. Não foi a recusa em si ou as palavras utilizadas, mas sim a forma como elas foram ditas. Do lado de fora da casa, a jovem sarará seguia o detetive ruivo em direção ao carro dele. - Acho que o teu amigo pode te
Após ouvir o detetive pronunciar o nome de sua amiga de longa data, Clara permaneceu parada diante do homem ruivo de expressão pesarosa na face e o seu olhar estava voltado para o nada, enquanto a mente passeava velozmente pelas lembranças dos momentos compartilhados com Leticia Martins ali mesmo, em Maité, e também na cidade natal que as três mulheres - Débora, Letícia e a própria Clara - compartilhavam. - Você está bem? - perguntou Enoque, o seu rosto passando de uma expressão pesarosa para uma de preocupação. - Ela também está morta, não está? - indagou Clara, a voz carregada de frustração e um toque de impotência.
Enquanto o céu noturno sobre Maité começava a ficar limpo, com a lua cheia surgindo por de trás das nuvens, agora bem menos carregadas, o carro de Enoque singrava pelas ruas em alta velocidade, indo para o local do segundo atentado. Dentro do veículo, Vinicius mexia no rádio, passando de uma estação para outra, procurando algo que realmente valesse à pena escutar, enquanto o detetive ao volante pensava no quão irritante era essa restrição musical do seu parceiro e, no banco traseiro, Clara observava a paisagem urbana ao mesmo tempo em que continuava a vasculhar os confins da própria mente, tentando recordar-se de qualquer outra pessoa de Galatéia que pudesse estar residindo ali. - Talvez não seja alguém de Galatéia… - comentou a jovem, após muito pensar e concluir que, se houvesse mais algué
Com as ruas esvaziadas de qualquer tráfego, Roberto sentia-se livre para dirigir em altíssima velocidade e, valendo-se da situação crítica com a qual a polícia estava lidando, aproveitou para atravessar vários sinais vermelhos com os sinalizadores sonoro e luminoso devidamente ligados. Dificilmente um policial de Maité tinha a oportunidade de fazer isso numa situação oficial que não fosse, por exemplo, o transporte emergencial de uma mulher em trabalho de parto ou a escolta de alguma autoridade, como um governador, senador, presidenciável ou quem estivesse ocupando a presidência da república. - Você está dirigindo bem melhor. - comentou Daniele, entre bocejos no banco do carona. Ela era uma mulher de pele clara, com algumas
...Despertou subitamente, inspirando o ar como se ele fosse o sopro divino primordial insuflado diretamente em suas narinas para dar-lhe a dádiva da vida. Seu peito doía muito, mais especificamente, a área próxima ao ombro. Sem se levantar, ele olhou para lá e viu uma longa e fina agulha fincada no seu corpo. Retirou-a e somente depois disso é que procurou se sentar, a cabeça doeu muito durante o processo e, uma vez sentado, a intensidade da dor foi reduzindo. Ao recordar-se do que ocorrera, Roberto subitamente virou-se para a sua direita, buscando pelo furgão, que já não se encontrava mais ali, e pela sua parceira. Daniele encontrava-se caída sobre a calçada, imóvel. O investigou gelou da cabeça aos pés e, desprovido de qualquer esperança, levantou-se com dificuldade e seguiu cambaleante até onde ela se encontrava. As lágrimas singraram-lhe a
Já passava das nove horas da noite e caia uma fina chuva sobre a Cidadela Acadêmica, o Distrito Comercial e o Bairro da Boemia, três regiões da cidade que ficam muito próximas, com a Avenida da Alegria separando a Cidade Acadêmica dos outros dois, que ficavam cada um de um lado da Rua Vermelha. Essas duas ruas eram algumas das poucas que mantinham o seu nome em todas as partes da cidade, sendo chamadas de “ruas divisórias” ou “ruas divisoras” e Clara pegou-se pensando nisso enquanto olhava a rua e os carros estacionados receberem incontáveis gotas de chuva. Clara, ironicamente, tinha a pele e os olhos escuros e os cabelos crespos da cor do fogo, os quais deixava, no lado direito, trançados na raiz e soltos no lado esquerdo e atrás, mantendo-os não
- Boa noite, Central da Polícia de Maité, em que podemos ajudar? - disse uma voz feminina e um pouco rouca do outro lado da linha. - Ouvimos três disparos de arma de fogo na casa das nossas vizinhas e o meu marido saiu para ver o que aconteceu! - informou Madalena, uma rechonchuda e baixa mulher de aparentes cinquenta anos etários com a pele muito clara, olhos castanhos por trá dos óculos de grau, cuja armação retangular era quase da mesma cor que os seus cabelos tingidos de vermelho acajú e cortados em estilo pixie - Ele é policial aposentado! - complementou, mexendo impaciente na gola da sua camisola de botão de renda, enquanto espiava pela janela sem tirar os olhos do seu marido, que cautelosamente atra