Já passava das nove horas da noite e caia uma fina chuva sobre a Cidadela Acadêmica, o Distrito Comercial e o Bairro da Boemia, três regiões da cidade que ficam muito próximas, com a Avenida da Alegria separando a Cidade Acadêmica dos outros dois, que ficavam cada um de um lado da Rua Vermelha. Essas duas ruas eram algumas das poucas que mantinham o seu nome em todas as partes da cidade, sendo chamadas de “ruas divisórias” ou “ruas divisoras” e Clara pegou-se pensando nisso enquanto olhava a rua e os carros estacionados receberem incontáveis gotas de chuva.
Clara, ironicamente, tinha a pele e os olhos escuros e os cabelos crespos da cor do fogo, os quais deixava, no lado direito, trançados na raiz e soltos no lado esquerdo e atrás, mantendo-os não muito compridos. A sua aparência era semelhante à existente entre as famílias que moravam na Cidade Velha há gerações e que se caracterizavam pela miscigenação, porém, ela não possuía traços indígenas aparentes, como os olhos que as pessoas de tal bairro possuíam - pode-se dizer, portanto, que ela estava muito mais para uma sarará do que para uma juçara.
Além disso, Clara possuía um corpo atlético, com seios médios, coxas bem torneadas e bunda proeminente. Ela trajava um curto vestido preto de mangas longas e estampa floral, cinto fino, bolsinha preta a tiracolo e uma bota esportiva feminina também preta.
Sentada a uma mesa próxima a um das portas do barzinho em que estava, a jovem parecia esperar por alguém e, a certa altura, passou a apoiar o rosto na palma da mão direita, mantendo o seu telefone celular sobre a mesa e os olhos, na rua. Os pelos do seu corpo estavam eriçados pelo frio decorrente da chuva e a percepção disso a fez parar de pensar nas regras para denominação das ruas da cidade de Maité. Não demorou muito e ela passou a ponderar se continuaria esperando ou se chamaria um motorista pelo aplicativo.
- Opa! Posso me sentar aqui contigo ou este lugar está ocupado? - uma voz masculina em um tom misto de sarcasmo e provocação fez-se ouvir sem aviso em meio ao rock que tocava no ambiente.
- Ah, é você! - exclamou Clara, aliviada, após virar-se para ver quem havia falado e deparar-se com um jovem baixo, de pele clara e cabelos cacheados pretos na altura das sobrancelhas. Ela o olhou de cima a baixo e de baixo para cima, reparando que ele portava um tênis branco, uma calça jeans azul e uma camiseta azul-escura da loja de informática em que ele trabalhava, mas o que realmente lhe chamou a atenção foi o braço esquerdo fechado com tatuagens. - Eu já estava começando a achar que você não viria.
- É… Bem, eu tive alguns imprevistos realmente complicados… - disse o rapaz, enquanto se sentava na cadeira vaga e, pondo-se a olhar nos olhos da jovem, continuou - Felizmente eu consegui encontrar um amigo para me cobrir e vim o mais rápido que pude. - sorriu, sem mostrar os dentes e sem tirar os olhos dos de Clara - Sabe, eu estava muito ansioso por esse encontro, quero dizer, a gente já troca mensagens a vários meses e nesse tempo todo sempre aconteceu alguma coisa em cima da hora ou um dia antes que acabou impedindo a gente de se ver e…
- Eu sei, eu sei... - Clara o interrompeu, sorrindo - Verdade seja dita, em muitas dessas vezes eu apenas não estava muito a fim de sair ou bateu aquele nervosismo, sabe?! Mas que bom que hoje finalmente deu tudo certo! - riu, enquanto passava os dedos da mão esquerda pelos cabelos, meio que para os tirar da frente do olho, meio que para fazer um pouco de charme.
- Você já comeu ou bebeu alguma coisa? Se quiser, pode pedir e eu pago pra compensar pelo meu atraso - disse ele, com a voz insinuante, o que Clara achou um pouco estranho.
- Bem, eu preferi esperar você chegar, porque às vezes os pedidos demoram, então, corria o risco de eu acabar indo embora antes do meu pedido ficar pronto, entende? - explicou a jovem, enquanto o rapaz prestava atenção no que ela dizia e sorria em resposta, virando-se tão logo ela terminou de falar e acenando para um dos garçons.
Não demorou muito e um musculoso e alto homem com feições eslavas aproximou-se da mesa. O seu corte de cabelo era militar, combinando com sua cara de poucos amigos, e ele trajava o uniforme do bar, portanto, estava todo de roupa social preta, com a camisa possuindo a logomarca do estabelecimento no peito esquerdo: dois ossos cruzados com uma rosa em cada espaço. Ele também portava um avental branco, do bolso do qual retirou um bloquinho de notas e uma caneta antes de perguntar:
- O que vocês vão querer?
***
- Deus, como eu queria um guarda-chuva! - exclamou uma mulher que acabara de descer do ônibus na parada próxima da casa dela, alguns bairros distante do bar em que Clara e o rapaz conversavam.
Não estava chovendo quando tal mulher entrou no ônibus, após sair da loja de roupas em que trabalhava como vendedora, e a chuva começou a engrossar um pouco antes de ela chegar à parada em que desceu, por isso o desejo por um guarda-chuva. Na falta de um, a jovem esbelta de pele clara e lisos cabelos pretos preferiu sentar-se no banco do ponto de ônibus para aguardar a chuva passar ou, ao menos, afinar o suficiente para que ela não chegasse toda ensopada em casa.
Antes de sentar, porém, a mulher olhou em volta para confirmar que realmente estava sozinha e, também, para ver se havia alguma movimentação suspeita por ali. Não que ela tivesse com o que se preocupar, já que as ruas em Maité eram muito bem iluminadas e vigorava uma espécie de acordo entre as organizações criminosas e as instituições estatais, acordo esse que era conhecido como a Pax Maitensis e fazia com que não houvesse roubos, estupros e homicídios contra os cidadãos não associados a alguma facção. Ainda assim, ela retirou de sua bolsa um spray de pimenta e manteve-se em alerta.
“É melhor estar sempre pronta.” - pensou, após constatar que não havia movimentação na rua que não fosse a de um ou outro carro, e se sentou, notando, então, que as aceroleiras dos calçamentos se encontravam muito bem abastecidas, as suas folhagens quase não se movimentando, pois, apesar da chuva forte, quase não havia vento.
***
- A chuva ‘tá começando a passar - disse o rapaz para Clara, que ainda comia o seu hambúrguer - Por que não vamos para a minha casa daqui a pouco? - indagou, deixando claras todas as suas segundas intenções.
- Pensei que você tivesse carro, já vi você dirigindo um pela universidade. - comentou Clara, após engolir o último pedaço do hambúrguer.
- Sim, eu tenho!
- Ué, então por qual motivo você só está me convidando para a sua casa agora e com o pretexto de que a chuva está passando? Mesmo que a gente se molhasse um pouquinho que fosse, acho que não ia importar… A gente não iria tirar a roupa de qualquer maneira? - disse Clara, divertindo-se com a expressão que o rapaz fazia.
- Então, não sei se você reparou, mas a rua ‘tá muito cheia de carros, todos os barzinhos estão lotados, eu tive que estacionar quase no final do quarteirão aí em frente e tamb…
- Ei, cara, relaxa! - interrompeu Clara, rindo - Pode pedir a conta se você quiser, eu vou dar um pulinho no banheiro e a gente vai, ‘tá bom? - disse, enquanto se levantava da cadeira, passando a mão direita do peito ao pescoço do rapaz, que, logo em seguida, virou-se para sinalizar ao garçom e o brutamontes começou a andar em direção à mesa.
***
Os passos apressados pela rua lavada pela chuva produziam um barulho característico de saltos altos e que a mulher julgava ser audível o bastante para que quem quer que estivesse acordado se dirigisse à janela para observar a movimentação na rua, mas, caso ele não fosse o suficiente, talvez os latidos fossem. E ao se pegar pensando nisso, ela percebeu que esse comportamento dos cachorros da vizinhança era consideravelmente estranho, uma vez que eles nunca latiam quando ela passava, ao menos não desde que se acostumaram com a sua presença naquelas ruas sempre nesse mesmo horário, mais de um ano atrás.
“Cães escutam coisas muito distantes, talvez estejam reagindo a alguma coisa acontecendo em outro bairro.” - pensou, já quase em frente à sua casa.
Foi quando ela sentiu a sua bolsa vibrar e ouviu o celular tocar, porém, ignorou, pois não gostava de atender o aparelho na rua e sempre recriminava as pessoas próximas que o faziam perto dela, chamando atenção para a necessidade de serem cautelosos. Todos a achavam paranoica com essas coisas.
- Você se preocupa muito, até parece que não sabe a respeito da Pax Maitensis! - era o que ela frequentemente ouvia.
Chegou, enfim, à sua casa e tão logo passou pelo portão e o trancou, mais uma vez sentiu a bolsa vibrar e ouviu o toque do telefone celular.
***
- Droga, Débora, atende! - repetia Clara, segurando o celular junto ao ouvido direito enquanto apoiava as costas na pia do banheiro feminino do bar - Atende! Atendeee! Atende, diach…
- Oi! - disse Débora, do outro lado da linha.
- Até que enfim! Meu Deus do céu, Débora, imagine se fosse um caso de vi…
- Fala logo o que tu quer, Clara, eu acabei de chegar do trabalho, tive que esperar a chuva passar lá na parada de ônibus e ainda tenho que estudar para a prova de amanhã! - interrompeu e desabafou uma impaciente Débora, já dentro de sua escura casa e enquanto deixava a bolsa, com o spray dentro, sobre a mesinha próxima a porta de entrada.
- Ok, desculpa! - disse Clara - Seguinte, eu vim me encontrar aqui no Ossos e Rosas com o Carlos, aquele cara lá da universidade. - disse, virando-se para o espelho e pondo-se a procurar algo errado no rosto e no cabelo - Ele vai me levar de carro lá para a casa dele, vou te enviar todos os detalhes por mensagem, nome completo, endereço, essas coisas, tá bom?! Não precisa me esperar! - concluiu.
- Tá bom… - respondeu Débora - Só não esquece de m****r a placa e a marca do carro também, se possível. Divirta-se! - disse, tentando disfarçar a sua chateação por não encontrar todo esse tempo que a amiga com quem divide a casa sempre encontra para se divertir.
Depois de desligar o telefone celular, a cansada e agora também chateada estudante de publicidade e propaganda o colocou sobre a mesma mesinha em que havia deixado a sua bolsa e, em seguida, apertou o interruptor perto dela, acendendo a luz da sala. Virou-se e ficou imediatamente aterrorizada ao dar de cara com uma pessoa estranha bem no meio da sua sala de estar.
Ela não conseguia deixar de olhar para aquela pessoa, que tinha mais ou menos a sua altura e estava vestida completamente de roupa social preta, sem gravata, com um sobretudo preto com capuz, luvas igualmente pretas e uma máscara kabuki toda branca. Apesar de notar que as roupas eram masculinas, a amiga de Clara não conseguia distinguir com clareza o sexo do intruso, mas sentia com toda a convicção que aquilo não acabaria bem.
Assim, sem desgrudar os olhos do invasor, Débora passou a tatear a mesinha em busca de algo que pudesse usar para se defender e viu a pessoa mascarada sacar da cintura uma pistola prateada, rapidamente se vendo na mira dela. Antes que pudesse dizer qualquer coisa inteligível, o ser encapuzado disparou contra ela, alvejando-a no abdômen e, conforme a jovem levou a mão ao ferimento, disparou novamente, atingindo-a no meio do peito, o que a fez recuar, suas costas indo de encontro à parede, pela qual ela deslizou até ficar sentada no chão, com a cabeça pendente.
Débora ainda vivia, não conseguia respirar direito nem enxergar com nitidez, mas conseguiu perceber a aproximação da pessoa mascarada e, quando viu as pernas dela já bem perto de si, sentiu algo metálico na testa, levantando-lhe a cabeça. Era a pistola, agora usada para pressionar a cabeça da jovem contra a parede, permitindo que ela pudesse ver o seu agressor despir-se da máscara, enfim revelando o seu rosto e deixando a mulher incrédula com o que via.
***
- Você ouviu isso? Mais um disparo, foi o terceiro! Rápido, liga para a polícia! - disse um dos vizinhos de Débora e Clara à sua esposa, enquanto ele próprio se dirigia para uma das janelas da casa a fim de observar a movimentação da rua, a espingarda devidamente em mãos. Por entre a cortina, ele pode ver uma figura encapuzada deixar uma das casas do outro lado da rua, a casa das vizinhas universitárias que tinham vindo de uma vila do interior.
- Boa noite, Central da Polícia de Maité, em que podemos ajudar? - disse uma voz feminina e um pouco rouca do outro lado da linha. - Ouvimos três disparos de arma de fogo na casa das nossas vizinhas e o meu marido saiu para ver o que aconteceu! - informou Madalena, uma rechonchuda e baixa mulher de aparentes cinquenta anos etários com a pele muito clara, olhos castanhos por trá dos óculos de grau, cuja armação retangular era quase da mesma cor que os seus cabelos tingidos de vermelho acajú e cortados em estilo pixie - Ele é policial aposentado! - complementou, mexendo impaciente na gola da sua camisola de botão de renda, enquanto espiava pela janela sem tirar os olhos do seu marido, que cautelosamente atra
A União de Estados do Brasil adotou para a sua polícia a mesma estrutura de hierarquia e de funcionamento recomendada a todos os Estados membros da Comunidade Euro-Atlântica, portanto, quando uma ou mais duplas de oficiais chega a uma cena de crime sem flagrante, um alerta deve ser imediatamente passado para a Central de Polícia do Município, que o repassará aos investigadores disponíveis, a outras viaturas que estejam próximas do local e para a perícia. Assim, quando o detetive Enoque Vos chegou ao endereço informado pelo alerta, o fez quase que simultaneamente ao veículo da perícia e deparou-se com quatro viaturas no local, cujos oficiais responsáveis já haviam feito o devido isolamento da área, cuidando de manter os curiosos
O bar Ossos e Rosas era um dos vários que existiam no Bairro da Boemia, mas se caracterizava por ser o mais famoso e antigo dentre os que tinham donos de origem eslava, sendo um dos mais antigos da cidade e que teria sido erguido pelo próprio Víktor Kotov, que se tornou o chefe da sua família e, consequentemente, dos negócios ilícitos comandados por ela, sendo um dos cinco indivíduos mais poderosos de Maité. É dito que teria sido do próprio Víktor a ideia do nome do bar e do símbolo dos ossos cruzados com rosas entre eles, tanto como uma forma de lembrar a época em que a família Kotov transformava os seus desafetos em adubo para as plantações de rosas das famílias Smirnov e Melnikov, como de anunciar as esperanças quanto
Após ouvir a voz do rapaz dizer que abriria o portão elétrico, o detetive Enoque se afastou da porta perto da qual o interfone ficava e se dirigiu para a frente da entrada, cuja folha metálica já se encontrava deslizando ruidosamente, deixando livre o caminho para o pátio da casa. Já com o portão às suas costas, Enoque escutou o estalo do seu fechamento, enquanto se via com um gramado à esquerda e, à frente, um caminho projetado para o passeio de veículos domésticos, notando que havia um carro vermelho que se encontrava estacionado muito mais à frente, quase passando a casa em si, mas ainda sob uma área coberta. Isso levou o detetive a imaginar que a porta de vidro presente na parte da frente não deveria ser muito usada, que aquela fa
Pelo monitor de segurança, Carlos viu Clara e o detetive Enoque saindo pelo portão, cuja folha metálica começou a deslizar para fechar a entrada logo em seguida, depois que o rapaz pressionou o botão do controle. Na sua mente, o jovem se questionava a respeito do que ocorrera momento antes, pois, embora ele tenha se oferecido para acompanhá-la à cena do crime e ao Distrito Policial por mera educação, a resposta negativa dela havia mexido um pouco com ele. Não foi a recusa em si ou as palavras utilizadas, mas sim a forma como elas foram ditas. Do lado de fora da casa, a jovem sarará seguia o detetive ruivo em direção ao carro dele. - Acho que o teu amigo pode te
Após ouvir o detetive pronunciar o nome de sua amiga de longa data, Clara permaneceu parada diante do homem ruivo de expressão pesarosa na face e o seu olhar estava voltado para o nada, enquanto a mente passeava velozmente pelas lembranças dos momentos compartilhados com Leticia Martins ali mesmo, em Maité, e também na cidade natal que as três mulheres - Débora, Letícia e a própria Clara - compartilhavam. - Você está bem? - perguntou Enoque, o seu rosto passando de uma expressão pesarosa para uma de preocupação. - Ela também está morta, não está? - indagou Clara, a voz carregada de frustração e um toque de impotência.
Enquanto o céu noturno sobre Maité começava a ficar limpo, com a lua cheia surgindo por de trás das nuvens, agora bem menos carregadas, o carro de Enoque singrava pelas ruas em alta velocidade, indo para o local do segundo atentado. Dentro do veículo, Vinicius mexia no rádio, passando de uma estação para outra, procurando algo que realmente valesse à pena escutar, enquanto o detetive ao volante pensava no quão irritante era essa restrição musical do seu parceiro e, no banco traseiro, Clara observava a paisagem urbana ao mesmo tempo em que continuava a vasculhar os confins da própria mente, tentando recordar-se de qualquer outra pessoa de Galatéia que pudesse estar residindo ali. - Talvez não seja alguém de Galatéia… - comentou a jovem, após muito pensar e concluir que, se houvesse mais algué
Com as ruas esvaziadas de qualquer tráfego, Roberto sentia-se livre para dirigir em altíssima velocidade e, valendo-se da situação crítica com a qual a polícia estava lidando, aproveitou para atravessar vários sinais vermelhos com os sinalizadores sonoro e luminoso devidamente ligados. Dificilmente um policial de Maité tinha a oportunidade de fazer isso numa situação oficial que não fosse, por exemplo, o transporte emergencial de uma mulher em trabalho de parto ou a escolta de alguma autoridade, como um governador, senador, presidenciável ou quem estivesse ocupando a presidência da república. - Você está dirigindo bem melhor. - comentou Daniele, entre bocejos no banco do carona. Ela era uma mulher de pele clara, com algumas