As chamas lamberam a floresta fazendo fumaça erguer-se seguida do laranja carmim do fogo. A luminosidade machucava os olhos e o calor espalhava-se até ali, na torre quilômetros de distância da queimada e protegida pelas pedras do castelo.
Era uma visão que deslumbrava a garota e assustava também. O fogo subindo mais alto que as muralhas, a energia quente roçando-lhe a pele e a estranha excitação de encarar a morte, mesmo que tivesse ciência da impossibilidade dela alcançá-la atrás do que a guardava, fazia-a sentir o coração bater mais forte.
As chamas haviam sido convocadas pelos magos do lorde Fearblood, criaturas embutidas em túnicas e dadas a leitura dos mais diversos tipos de escrituras, pessoas cuja lealdade ao povo e ao lorde que os comanda não podia ser questionada. Além deles haviam milhares de soldados… e mais uma centena de aventureiros.
A garota sabia estar segura, ninguém chegaria até ela com aço e fogo e se viessem ela os aguardaria com iguais armas. As cenas fantásticas que tinha conhecido por intermédio dos livros na biblioteca do castelo e que passavam-se em batalhas como a que estava eclodindo nos portões não eram o único meio pelo qual conhecia confrontos.
Desde a primeira vez que proferiu ter desejo por empunhar no corpo a armadura negra que ostenta o símbolo de sua família, e protagonizar lutas onde seu sangue ferveria e sua vida faria sentido, o lorde Fearblood passou a prepará-la. Lutar uma batalha em nome do que era certo, da justiça e da paz, como os hérois que admirava, mantivera em mente tentando aguentar a rigidez dos regimes de treino do pai.
Porque na vasta quietude da fortaleza dele era dificil não esquecer que havia coisas por experimentar lá fora. Não possuía amigos, não fazia excursões fora do castelo e muito menos nutria romances com belos rapazes. Seus horizontes, mesmo com a majestosa vista da cidade pelas janelas, eram tão cinza quanto os tijolos da torre onde se encontrava.
Ela esticou a mão para fora e agarrou o ar que corria além daquelas pedras. Um arrepio percorreu seu corpo, eletrizando até sua alma abaixo da carne e ossos. Havia saído do castelo, mesmo que só parte do braço, estava do lado de fora juntamente aos heróis sobre os quais tanto lera. Arthur, Netuno, Aquiles e até o questionável Judas, o fundador daquela cidade. Por um momento se permitiu sorrir, um sorriso melancólico e pesaroso, mas um sorriso. O último que daria enquanto ainda lembrasse o significado do súbito desaparecimento da barreira que a prendia à fortaleza.
O lorde da Cruz do primeiro, Jaime Fearblood, o cavaleiro branco, estava morto. Ele era seu pai e a pessoa cuja força vital alimentava a barreira que impedia sua saída. Isso, por mais estranho que lhe parecesse, fez desejar que o homem que nunca a abraçou ou demonstrou afeto de forma física a embalasse nos braços e permitisse que a menina choresse sobre sua camisa. Mas aquele desejo continuava tão tolo como quando lorde Fearblood andava por cima do assoalho do castelo. Limpou as lágrimas com a manga do vestido, virou-se e partiu. Tínhamos pouco mais que sangue em comum. Tínhamos pouco mais que sangue em comum. Tínhamos pouco mais que sangue em comum. Repetiu como uma prece enquanto descia os largos degraus internos da torre, sentindo o medo crescer num ritmo acelerado dentro do peito e o corpo exigir mais força para se mover. Ao percorrer o pátio, sob o sol dourado e a fragrância das flores que ali haviam sido plantadas há centenas de anos, outra remessa de lágrimas escapou.
As rosas murchavam e os lírios, margaridas e orquidias tomavam para si o tom cinza das pedras austeras que formavam o castelo. Morriam assim como lorde Fearblood, deixando-a para os rostos solenes dos quadros e os livros na biblioteca. Talvez a mãe dela viesse buscá-la, talvez também houvesse sucumbido diante de alguma lâmina, talvez a garota devesse voltar para o topo da torre e esperar que o futuro fosse tecido pela mão dos outros. Mas no momento em que seu braço atravessou para fora do castelo soube que precisava partir. O mundo, a glória e o amor ficavam além daquelas paredes. Por mais que seu rosto começasse a inchar com a umidade, as maçãs da face estivessem a ruborizar e que seu nariz começasse a congestionar. Por mais que eu nunca venha a ver meu pai de novo…
Virou em direção a porta do armeiro e com um empurrão a escancarou. Era um espaço razoavelmente amplo, preenchido com mesas de pedra escura riscadas por linhas vermelhas cintilantes erguendo-se como pequenos montes do piso de igual material, sobre as bancadas, cerca de dez pelo que lembrava de ter constatado uma vez, haviam armas das mais variadas e até mesmo munição para bestas, arcos e zarabatanas. Na parede ao fundo, forrada de tecido carmim e de extremidades revestidas de finas placas douradas, pendiam nos suportes armaduras forjadas a partir dos materiais mais exóticos que alguma vez se teve notícia em todo o continente e, de acordo com um dos lordes que certa ocasião almoçaram junto a garota e o pai, até mesmo na província submarina de Atlântida onde os deuses honrados e a língua eram outros tais componentes se mostravam escassos ou inexistentes.
Talvez só estivessem tentando agradar seu anfitrião, mas não seria agora que começaria a pensar nisso.
Seis armaduras já tinham repousado naquelas barras de suporte, mas agora duas delas jaziam longe daquele leito permitindo que a estranha sombra da ausência preenchesse o centro e o canto a esquerda. Uma delas a negra e feroz Fafnir, escura como o céu à meia noite e aterradora com os entalhes que faziam-na assemelhar-se ao dragão cujas escamas foram a base de sua fundação. Ela fora o produto pelo qual a mãe abdicara da garota e mesmo sua sombra irradiava um sugestivo ímpeto agressivo na jovem herdeira do lorde Fearblood. Levava -a imaginar-se destruindo cada pedaço de escama, aço e mana que criou Fafnir e, se ainda algo sobrasse, atirar-lhe sobre a face da mulher que a gerou. Mas agora sabendo que o pai falecera tudo que aquilo trazia eram mais lágrimas para correrem quentes por suas bochechas e um desejo estúpido pelo calor de abraços. Como a garota tola que percebera há tempos ser certamente almejaria.
Enxugou novamente os olhos com a manga do vestido e pôs-se a remover da parede a prateada armadura de Semiramis, a primeira mulher a governar todos os demônios e a responsável por dar um fim a guerra do Branco e Vermelho. Não era nem de longe uma das suas figuras favoritas da história, a forma como ela dizimou até mesmo as pequenas crias de dragão e empalara aqueles que desobedeciam suas ordens soou assombroso demais para a garota, mas inegavelmente havia possuído uma armadura formidável. A jovem desocupou uma mesa próxima atirando ao chão lanças e maças e porretes para lá colocá-la.
Era um conjunto belo e reluzente de placa de peito, capacete equipado com uma viseira, luvas, a parte que cobre os membros inferiores, a dos braços e ombros. Brilhava como a lua e todos os pedaços estavam delineados por um fino, mas luminoso e gentil, azul cobalto. E emanava uma aura atraente que fazia com que a garota precisasse se esforçar para não correr a mão sobre a centena de escamas de dragão e metal que foram fundidos até tornar-se aquela armadura. Linda como se lembrava das visitas que já a fizera junto ao pai e até mesmo só, mas o mais importante de fato era sua praticidade.
Os dedos da garota deslizaram sobre a placa reluzente injetando mana e fazendo pequenos círculos azulados surgirem um após o outro até que a armadura em si tornou-se luz e então uma nuvem de minúsculas partículas que dançaram ao seu redor antes de sumir. Agora tudo que precisava era visualizar o equipamento para que ele surgisse perfeitamente ajustado ao seu corpo. É a habilidade dos sonhos, percebera há tempos quando experimentou outras armaduras que levaram uma eternidade até finalmente serem vestidas.
Virou-se depois para as armas e sem pensar muito pegou uma espada curta de aço prateado. Diferente das armaduras, a arma não possuía qualquer propriedade mágica digna de nota. Era simplesmente afiada e fácil de manejar comparada às demais, cujas habilidades não eram grandes o bastante para sobrepor a praticidade.
Com ela na bainha se dirigiu a cozinha onde pegou um grande vaso de sangue congelado, a mão começando a tremer com a perspectiva do que encontraria do lado de fora, enrolou em um pano e guardou numa mochila. Na mesma, em uma ala diferente, o livro com a profecia que lera no alto da torre de onde avistara os primeiros sinais de fogo, se encontrava. Estava saindo. Iria resolver o problema do maligno presságio e trazer a paz.
O grande mal se ergue e trará mortes incontáveis
Só quando as espadas caírem sobre a carne de um herói e o fim extinguir seu corpo
Com o cálice em mãos o incapaz poderá impedi-lo
Rei e senhora dançarão sob aço
E o rumo disso ditará o desfecho do mundo
Acordou sentindo o chão mover-se abaixo do corpo. Solavancos tênues que a balançavam de cima a baixo. Ouviu o som de rodas e da brisa batendo em pano. Estava em movimento, soube de imediato. Mesmo assim, ali estava quente, uma almofada lhe sustentava a cabeça enquanto lençóis a cobriam do tronco aos pés. Pensou em erguer as pálpebras e descobrir o que acontecia, mas a garota não queria abrir os olhos para outra luta, não agora. Lutara contra o frio, contra a escura floresta e contra lobos demoníacos. Tinha a espada suja e o corpo adornado por hematomas. A armadura devia ter feito-me passar incólume pelos ataques, mas aqueles não eram lobos comuns, refletiu, e estes certamente não são tem
Aviso: Os caps cujos números sejam acompanhados de ´´.5`` não seguem a cronologia dos demais capítulos, podendo se passar tanto no futuro quanto no presente e passado quando comparados aos outros. Também podem se passar no ponto de vista de outros personagens ou até de um narrador onisciente. No cap a seguir acompanhará Augustus, um elfo, nos eventos que precedem a fuga da protagonista da cidade vampira, mencionada no primeiro cap e no prólogo.
Da última vez não os encarara apropriadamente. Estava numa fuga e eles em meio a um massacre, com gritos de agonia e morte os seguindo de perto. Ainda lembrava de como a lança atrevessou aqueles dois, um homem e uma criança, num único movimento. Do som de membros caindo no chão e casas explodindo sob o efeito de magia.Não prestara atenção em como os algozes de seu pai eram altos, brancos como o tecido mais alvo que já tivera e bonitos. Tinham olhos azuis e corpo musculoso sob a armadura simples, e eram fortes. O primeiro deles até mesmo desviara de um golpe súbito e mortal que lançara a seu pescoço.— É uma vampira, não é? - disse ele após esquivar e riu puxando em seguida a espada e pedindo com um gesto para os outros não
As outras duas cidades de vampiros caíram mais facilmente. Diferente da Cruz do Primeiro, elas não os viram chegando sob magia de camuflagem até que o primeiro soldado da linha de frente pisasse muralha adentro. Nem mesmo foi preciso usar a super magia contra eles, embora houvesse tido confrontos e baixas para os elfos, aquelas ainda puderam ser consideradas vitórias fáceis. Augustus até lutou contra alguns indivíduos formidáveis. Se não fosse o suporte de algumas dezenas de magos que acompanhavam seu pelotão existiria a possibilidade de que o resultado pudesse ter sido sua morte. Embora, claramente, não lutara com ninguém tão terrível ou forte quanto o vampiro Fearblood. Seu antebraço e mão ainda sentiam dores provindas daquele confronto e mesmo o menor pensamento sobre o combate o enchia de calafrios. Rank um a quase vinte anos e mesmo assim havia aquele en
Quando pensou naquilo não pôde deixar de ver como era óbvio. Não tinha possibilidade de o livro profético dos elfos, o símbolo máximo de sua religião voltada ao deus Branco, ter simplesmente aparecido na biblioteca dos Fearblood sem que alguém o houvesse posto lá. E não havia chance do alto escalão élfico não tomar isso como uma ofensa do mais alto grau e não realizar uma retaliação com força total. Sem perguntas, apenas derrubando a porta com seus melhores homens e destruindo os hereges. Na verdade, havia sido extremamente estúpido da parte dela só ter notado agora. Provavelmente aquela citação que dizia que um leitor não é necessariamente alguém inteligente era mais que palavras jogadas ao vento. Não acreditava que seu pai o tivesse roubado e tão pouco o fizera. A garota, durante toda a vida desde de que lembrava, nunca saíra do castelo, o que sabia d
Augustus já havia notado isso há um tempo, mas o número de demônios selvagens os atacando era bem acima do esperado desde a queda da segunda metrópole vampira. Embora tenha começado com monstros de baixo rank, isto já via-se diferente no dia que derrubaram a Centelha, a cidade liderada por outro grupo de vampiros. A última investida dos demônios selvagens teve até mesmo direito a criaturas que sequer faziam parte da fauna natural daquela região e a colaboração entre diferentes espécies. Ogros, lobos gigantes e sombras vivas. Muitos de baixo rank foram mortos e se as coisas continuassem nesse ritmo o exército dos elfos estaria cada dia mais fraco. Quando as novas tropas chegassem seria preciso ainda mais reforços e o ciclo se repetiria. Por alguma estranha razão as barreiras anti monstro falhavam uma atrás da outra. — Entendo, sim, ficarei feliz em acompanhá-los. Mas não sou dos mais fortes combatentes e tudo que tenho são magias de cura, elemental básica e aumento de desempenho. Acha suficiente? — Sim, mais do que isso. Esta criança comigo é bem forte, então contanto que possa dar suporte e curá-la no caso de uma necessidade já me dou por satisfeito. - respondeu o mercador usando o queixo para apontar para a garota. E sem muitos mais acertos deixaram juntos a cidade rumo a vegetação de árvores de porte grosso e baixo, com folhagem farta sobre suas galhadas, frutas e ninhos de pássaros. Um lugar que fora pensado para ser um enorme jardim pela unificadora Semiramis. Ela, antes de partir do lago, ordenou que naquela margem fossem plantadas vegetais frutíferos. Pretendia construir uma fortaleza próxima a floresta e então por estradas que ajudariam a percorrê-la. Mas no fim 4° O poço
Enzo não era apenas um velho tolo como seus colegas governantes de Semiramis pareciam crer. Ele sabia quando tentavam mentir sobre qualquer aspecto da situação na cidade. Graças, em grande parte, aos que mantinha perto de si como seus olhos e ouvidos. Apesar de às vezes, como agora, nutrir uma tênue tristeza pelo enfeite do cenário ser apenas isso. — Quantas baixas? - perguntou ignorando a tentativa feita de mantê-lo tranquilo com palavras cautelosas e vagas. Já sabia a resposta, mas queria terminar logo aquele teatro para começarem a parte produtiva da reunião. — Ontem morreram mais dez. - disse Jurandir após um suspiro que anunciou sua desistência da tarefa de manter Enzo longe dos problemas. - No total perdemos cerca de quatrocentos soldados e cem aventureiros. Alguns poucos de rank quatro e três.