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1° Uma má mentirosa

Acordou sentindo o chão mover-se abaixo do corpo. Solavancos tênues que a balançavam de cima a baixo. Ouviu o som de rodas e da brisa batendo em pano. Estava em movimento, soube de imediato. Mesmo assim, ali estava quente, uma almofada lhe sustentava a cabeça enquanto lençóis a cobriam do tronco aos pés. Pensou em erguer as pálpebras e descobrir o que acontecia, mas a garota não queria abrir os olhos para outra luta, não agora.

Lutara contra o frio, contra a escura floresta e contra lobos demoníacos. Tinha a espada suja e o corpo adornado por hematomas. 

A armadura devia ter feito-me passar incólume pelos ataques, mas aqueles não eram lobos comuns, refletiu, e estes certamente não são tempos comuns.

Suspirou e tentou esquecer o assunto por um instante, mas não conseguiu.

Encontrara o maior mau presságio que um dia poderia cair sobre o continente, das janelas majestosas do Grande Templo, a agitada fortaleza Bélica em seu tom carmim. ´´Grande mal e incontáveis mortes, espadas caindo em carne e o fim à vidas`` palavras vindas da única fonte que poderia fazê-las tão sólidas quanto qualquer castelo e tão temíveis quanto qualquer exército. E era a única que as ouvira.

Desperta, abriu os olhos, não havia tempo para descansos. Precisava ser rápida, descobrir o que poderia ser e impedi-lo. Ou..., balançou a cabeça, ´´não há ´´ou`` aqui, irei e pronto``.  

Ao redor dela, paredes de tecido alvo sustentadas por colunas finas de madeira se erguiam e subiam para formar um teto e paredes de pano brancas. O chão e o banco onde estava eram cobertos por tapetes. Vermelhos, azuis, amarelos, mosaicos enfeitados com imagens de guerreiros ou camponeses cuidando de afazeres. Haviam enormes caixotes de madeira no chão além da cabeceira de onde estava e na parede oposta amontoando-se e estreitando o caminho até a saída. Uma fenda no pano dava passagem à luz do dia.

Fora posta numa cabine de carruagem, concluiu, e a dividia com baús e baús. Quem e por que?´´ E como? Eu não lembro de nada``, percebeu com um tremor frio percorrendo o corpo,´´ o que aconteceu para chegar até aqui?``

´´E mesmo antes… na floresta dos Uivos… além das infindáveis lutas contra lobos demoníacos, tudo que há são vácuos…``

Pôs-se sentada e vasculhou a cabine com os olhos. Não havia tempo para perguntas enquanto não entendesse a situação em que encontrava-se. Sua mochila e sua espada não estavam ali. Aquilo a fez fechar os punhos com força e despachar uma praga. Desarmada o perigo tornava-se maior, mas a bem da verdade, se seu oponente fosse um qualquer, a espada que pegara de pouco o serviria contra a armadura dela. Nenhum golpe fraco ou mediano, de acordo com o nível do usuário, era capaz de transpor algum dano a quem estivesse sob a dureza daquele aço e a espada pouco mais era que de mediana qualidade.

A garota sentia a mana circular pelo corpo, a armadura ainda estava equipada e pronta para ser materializada. Não tomaram nenhuma precaução decente contra mim, percebeu sem saber se ficava feliz ou irritada com a inexistência de magias de cancelamento de mana, não pensam que uma garota seja uma ameaça assim que lhe tiram a espada do papai. Pelo menos podia considerar que seu raptor não era um mago habilidoso o bastante para esse tipo de contramedida ou era simplesmente tolo demais para notar a ameaça que ela podia representar.

Respirou fundo, com os pés já sobre a madeira que servia de piso a carruagem. Tocou o pano das paredes, sentiu sua maciez e rigidez. Era de uma espécie rara de criatura, um boi das terras bélicas ao sul de Semiramis. Seu pai tinha uma poltrona forrada com esse material. O brilho branco meio amarelado às dava uma beleza quase sobrenatural, como uma pelagem de uma besta divina. Seu cheiro misturava terra, folhas e um perfume bom que lembrava orquídeas.

Mas ainda estava sob as mãos de um estranho.

Pôs a armadura sobre o corpo, fazendo cada peça surgir acima da pele como se estivesse sendo formada pelo ar, e pulou visando o lado de fora da carruagem. A cabeça, porém, foi parada pelo pano que  cobria o contorno da saída, o que a fez cair para trás e produzir um som metálico que ressoou pela carruagem. Que parou, pouco depois, para o desagrado dela.

Então o desespero pregou suas presas na garota.

Se fosse vista de forma tão vergonhosa... Sentia que acabaria chorando. Nunca fora boa em lidar com a atenção alheia, tanto que nunca conseguira firmar uma amizade com nenhum dos visitantes que às vezes eram trazidos por seu pai. Preferira surrá-los na esgrima a conversar. Porque, apesar de todos os livros que lera, tinha um exemplar mal jeito com as palavras. E agora, quando qualquer coisa parecia dez vezes mais dura, cruel e fria, a menor das farpas a deixavam a ponto de romper em lágrimas. Pois seu pai morrera, sua cidade caíra e não restava ninguém no mundo que a amasse. Qualquer dor ou embaraço parecia ser acompanhado pelo peso disso, pela lembrança de tudo que perdera.

Se esforçou para levantar, após balançar vigorosamente a cabeça para espantar pensamentos incômodos, o mais rápido que podia e tentou pensar num modo de agir. Talvez emular alguma figura dos livros que lera. Isso funcionou algumas vezes durante suas raras interações com pessoas que não seu pai. Mas honestidade é geralmente o melhor ponto de início para se relacionar. Devia tentar ser si mesma?

Não, respondeu de imediato a última alternativa. 

A ´´ela mesma`` era ainda a garotinha enfiada entre livros que adorava contos e romances de heróis e que no momento tentava ignorar, superar e esquecer a carnificina que caíra sobre seus iguais. A pessoa que deveria e queria ser era uma mulher forte que seria conhecida como uma grande heroína.´´ Por isso darei um jeito na profecia eu mesma``.

— Tá tudo bem aí?

Ouviu a voz antes de vê-lo e pôs-se de pé. Era bonita e fluía bem junto ao ar. Talvez fosse apenas um cantor que a avistara caída e decidira ajudar. Um cantor bonito e galante com o qual talvez pudesse realizar um dos desejos em que pensava para tentar suprimir a dor da perda, como aquele por romance.

Tentou ficar ereta e com a cabeça erguida sob o elmo que lhe cobria a face. Respirou outra vez profundamente, tal qual um livro que tinha lido dizia para fazer no intuito de ajudar a pôr a mente em ordem.

Depois da primeira inspiração, a figura do seu sequestrador ficou visível do pescoço para baixo. Magro, vestindo linho e um colete de couro. A pele era morena, como chocolate claro. 

Ficou um pouco desapontada pela falta de músculos, mas manteve a mente esperançosa. Magro, porém não esquelético, disse a si mesma.

Quando a cabeça dele atravessou o tecido não pode conter uma reação de susto.

— Uou, essa é uma bela armadura. Onde você a tinha escondido? - A voz do sujeito estava cheia de surpresa e admiração como se esperaria diante uma peça tão rara quanto aquela.

A garota por algum motivo sentiu segurança o suficiente para falar como o arrogante rei dos reis, que protagonizava um livro que soava bastante fantasioso, quando se dirigiu para o homem que a raptara. 

— Você, como ousa pegar minhas coisas? - Respondeu e sorriu sob o elmo, orgulhosa da própria ousadia.

Ele fez uma reverência e a jovem abaixo da armadura gemeu diante a calvície do rapaz. A enchia de asco. Sentiu vontade de pisar nele e fazê-lo entender o quão incômodo era seu aspecto. Ele sequer parecia ter vinte anos e ainda assim… 

— Sinto se a ofendi, senhora. Irei pegá-las imediatamente. Caso lhe apeteça, pode me acompanhar no banco dianteiro? Gostaria de saber o que alguém do seu estatuto fazia ferida próxima a floresta.

— Hunf, te perdoarei pelo atrevimento de pedir por minha companhia. - Dessa vez a arrogância veio-lhe fácil, como se imitasse um amigo com quem dividira a infância. - Também há coisas que lhe quero perguntar, plebeu. Tenha certeza de responder corretamente.

Ele acenou e ofereceu a mão para ajudá-la a descer. Mão que a menina trajando aço recusou passando sem dar um único olhar. E caiu ao tropeçar no batente de madeira que se elevava em relação ao piso. 

— Você é bem desajeitada, começo a entender  como acabou como a encontrei. - Ele comentou inocentemente e a garota ouviu seus passos se aproximando.

— N-não… - A voz saiu pequena e frágil, como a garotinha Fearblood realmente soava ao tentar falar com estranhos. 

Tinha dezesseis anos e falava de um modo que fazia-a parecer ter por volta de dez. 

— Haha, que fofa. 

Sentiu as bochechas corarem e o coração acelerar. Raiva, vergonha, vontade de fazer o rapaz feio beijar o aço de sua bota. Tudo passando por seu corpo tão rápido quanto o sangue podia levá-los. Então, em algum lugar, a face do seu pai. Os gritos de dor daqueles que eram mais lentos que ela. O som dos cascos de cavalos, espadas e vozes. As crianças pelas qual passara enquanto fugia. A queda da cidade onde vivera.

A garganta começou a entalar com sons de tristeza e o nariz a ficar entupido.

Quando o homem a ergueu quase chorou. Mas a voz bonita e o jeito gentil do sujeito ajudaram-na a manter-se firme.

Chegaram ao banco do condutor e por lá ficaram enquanto a carruagem voltava a vida sob o som das rodas e cascos. Era puxada por um par de cavalos demi-alados, com pequenas asas crescendo nas costas, e de raça mestiça. Haviam sido denunciados pela cor marrom que insistia em tomar o espaço do longo branco de suas pelagens e o tamanho das asas.

Lera tudo em um livro e agora sentiu-se feliz por poder reconhecer, apesar de todo o resto naquela saída de casa ser uma merda. Removeu o capacete e, virando o rosto para direção oposta ao do rapaz feio, limpou a parte posterior do nariz com a manopla da armadura.

— Agora, sem querer ser rude garota, o que pelos deuses aconteceu? - ´´Garota``, a estúpida queda a enviara de ´´senhora`` a ´´garota``. - Foi o exército que desceu as Depressões? Os elfos fizeram isso com você?

Ah, os elfos… Pensou melancólica e irritada. Não é como se em algum momento tivesse de fato deixado de lembrar o que houve horas antes, de sua empreitada pela floresta que cercava a Cruz do Primeiro. Pessoas gritando e amaldiçoando, tanto os sitiantes quanto o Branco, deus dos seus algozes. Fogo subindo por detrás da muralha, o portão sendo forçado, meu pai morrendo…

Quis chorar outra vez. Mesmo tendo conquistado sua liberdade e a chance de perseguir seu sonho, sentiu o nariz esquentar e coçar.

Porém heróis não choravam nas histórias, não pela mesma coisa trágica que os fizera chorar antes. Arthur o fez pela mãe de criação, Aquiles por seus amigos que tivera de matar por terem cometido traição, dizem que mesmo Héracles derramou lágrimas. Claro que isso era o que os livros diziam e muito e ainda mais podia ter sido exagerado neles, mas a vampira preferia fingir que não conhecia essa possibilidade quando se tratava de seus ídolos.

Nenhum deles, porém, chorou tanto quanto a Fearblood. Na floresta, no castelo e até nos portões ao sul.

Uma completa vergonha, que tipo de heroína posso ser?

— Lobos. - Disse se assentando na pele do personagem chamado de ´´rei dos reis``, ´´o único rei``, ´´o verdadeiro monarca``. - Na floresta. Fui atacada, mas não eram adversários dignos de ceifar minha vida. 

E o rapaz assentiu com a cabeça, como se realmente soubesse que fora aquilo.

A Fearblood se irritou com a atitude. Uma pessoa tão feia deveria ter o mínimo de timidez que lhe era devido.

— E um dracul também, uma criatura desprezível.

— Mentira. - Ele respondeu de imediato

Uma veia surgiu na têmpora da garota.

— Se eu não fosse uma cavaleira poderia ter tido algum problema sério.

— Você teve.

Dessa vez o olhou de soslaio. As íris carmesins brilhando de irritação enquanto fitava a papada que começava a se desenvolver sob o queixo do sujeito. 

— Por que fugiu de casa, garota? - Ele perguntou como se pudesse lê-la tal qual faria a uma criança.

— Não fugi. - Não de casa, dos elfos. Mas não queria dar ao homem o gosto de uma resposta sincera.

— Claro… - As palavras vieram com uma expressão de imersão em pensamentos. Com aqueles olhos de peixe e os lábios grandes aquilo era quase cômico. - Exército, elfos, alguém com algo de aspecto tão caro nesse estado… Eles atacaram a Cruz do primeiro, não? Estão querendo a cabeça do lorde Fearblood, ou algo do tipo?

A vampira ficou paralisada. Ele entendera só de pensar um pouco, apesar da garota não ter certeza se era uma rixa com seu pai. Os elfos haviam atacado sua cidade e em dois dias suprimido seu exército ou assim ela supôs baseado na morte de Jaime Fearblood e a não perseguição de tropas que sofreu floresta adentro. Bem poderia ser uma caça a presas afiadas tal qual nos tempos antigos ou só alguma outra guerra entre cidades que culminou no fim de uma delas.

— Bem apontado, não é tão tolo quanto parece. - Disse na voz do rei dos reis. 

— Você é a filha do lorde Fearblood, né?

— N-não...! - Respondeu no susto, deixando seu personagem escapar por entre os dedos.  - Eu s-sou só uma cam-nesa!

— Sabe, eu não tinha dado a essa possibilidade o crédito de mais que um palpite… mas agora estou certo disso. Você é uma má mentirosa, seria melhor se adotasse a honestidade daqui para frente ou aprendesse a mentir melhor.

— Eu n-não…! - iria continuar, mas faltaram-lhe palavras e a busca por elas pareceu tola quando começara a falar naquele tom de voz apressado.

Ele riu. O som era belo, mas olhar para o sujeito fazia sentir-se enjoada. Começava a ponderar se não devia apenas seguir caminho sozinha. Mas, então, deu-se conta de que não tinha a menor ideia de para onde ir. De como ou em que lugar se apresentaria o grande mal citado pelo livro profético. Estava perdida e o mundo junto com ela.

— Ah, esqueci de me apresentar, sou o meio licantropo e mercador Antonius. Pode chamar de Antony ou Ant. Minha mãe era uma oni mestiça e meu pai um licantropo. - Apresentou-se e a encarou de soslaio fazendo a garota levar a mão ao cabo da espada que já tinha voltado a possuir. - Vê? Minhas orelhas são como a de um cervo e tenho uma cauda sob minha calça. E você vampira Fearblood, qual seu nome?

Ela respirou fundo e decidiu que não haveria mal em contar-lhe algo tão banal.

— Eu sou a vampira Stephanie Fearblood, plebeu, e é melhor lembrar deste nome.

— Certo, garota, irei lembrar.

Podia censurá-lo por chamá-la de garota, aquilo a irritava, mas sabia que se forçasse demais sua atuação ela iria desabar e já tinha que lidar com lembranças recentes, dolorosas e angustiantes em excesso para acrescentar vergonha a pilha. E Stephanie Fearblood detestava se sentir acanhada.

Em vez disso olhou para a estrada de Roma, feita de pedras lisas, com o formato de tijolos, que haviam sido colocadas lado a lado. Ela levava os viajantes por entre as principais cidades e se ramificava para mostrar a eles algumas vilas notáveis. Fora obra de um elfo que tomara uma oni como esposa. Um grande e próspero mercador cuja filha, Roma, morrera precocemente e que, como forma de eternizá-la, decidiu concretizar aquela estrada e dar a esta o nome que desejava ter para sempre lembrado.

A rocha brilhava sob a luz onde as intempéries não haviam a maculado demais. Eram lindas, mesmo com sua cor cinzenta. Uma obra digna de ser uma homenagem amorosa.

Ela pegou-se perguntando se o senhor Fearblood teria feito o mesmo por sua filha caso suas posições fossem invertidas e ele é quem estivesse vivo. Ou se alguém um dia chegaria a isso. Balançou a cabeça para tirar os pensamentos sobre homenagens da mente. Ainda era manhã e devia estar sonhando apesar de acordada.

Fitou o condutor da carruagem, reunindo coragem para pedir que a deixasse voltar a traseira do veículo. Não foi muito difícil ao encarar o sujeito franzino e feio. Era tão medíocre que não conseguia se sentir intimidada por seu aspecto.

Mas o som de cascos e aço chacoalhando segurou-lhe a língua. A esquerda viu as armaduras brancas emergindo da Floresta dos Uivos junto ao estandarte dos elfos, um mago branco com a cabeça rodeada por uma auréola de esferas em fundo azul com bordas douradas.

— Merda…! - Resumiu habilmente o mercador.

E aqui descubro se morro ou ascendo, a garota pensou puxando a espada.

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