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A Personagem
A Personagem
Por: Sabina Rambova
AEROPORTO ENSOLARADO DE ORLY

Assim que cruzou as portas do aeroporto de Orly, Sophie sabia – Ray não vira!

 Em Manhattan estava sempre atrasado, quando lembrava de aparecer. Seria diferente em Paris? - Acho que não – suspirou. Sophie o perdoaria? Obviamente, afinal perdoava sempre. Desde que se lembrava, amava perdidamente seu irmão, mesmo com essas pequenas falhas quanto aos horários e compromissos, Ray nunca a decepcionou realmente. Havia muito, decidira ignorar as demais pessoas que conhecia, exceto ele. Ray tinha a capacidade de elevá-la – Como um êxtase religioso – pensou certa vez. Não havia um único dia em sua vida que seu irmão não estivesse la para ela, era seu cúmplice e melhor amigo, mesmo sendo cinco anos mais velho. Da parte de Ray havia reciprocidade, ele sabia da mistica que exercia sobre as pessoas e sabia que só havia uma pessoa, sua Sophie, que poderia fazer com que sucumbisse ou alçasse o voo mais alto. Ele tinha poder sobre os outros e ela tinha poder sobre ele. Sempre foram mais do que apenas irmãos, eram almas gêmeas, haviam escolhido pertencer um ao outro e assim parecia a todos. Com toda a indiferença encontrada em casa, com pais que passavam mais tempo em seus escritórios do que com os filhos, tiveram muita sorte em ter um ao outro. Mesmo sendo tao diferentes entre si, estavam conectados, obviamente que isso surpreendia as pessoas e muitos comentários maldosos surgiram ao longo dos anos sobre o comportamento incomum de ambos. As pessoas não compreendiam que poderia haver um amor, platônico e definitivo, tao completo, isso normalmente escandalizava aos demais. E claro que tanto para Ray, quanto para Sophie, a opinião das outras pessoas nunca fez a mínima diferença.

 Quando Ray foi convidado para trabalhar em uma conhecida grife de Paris, ele quase desistiu, apenas para não deixá-la sozinha em Nova York. Mas como se conheciam tao bem e se amam ainda mais, Sophie não hesitou em incentivar o irmão a realizar seu maior sonho. Foi assim que Ray foi morar em Paris no mesmo ano em que Sophie iniciou a universidade, já faz dois anos desde então. Os dois continuam com interações diárias, trocando confidências e conselhos de forma virtual, sempre que possível viajando para se reencontrar. Nesse verão Sophie retorna para Paris, como haviam combinado na última vez que se viram pessoalmente, foi nas férias de inverno, Ray escapara para um final de semana no Havaí. O verão de Paris era a época preferida do ano para Sophie, ela ficara ansiosa o semestre inteiro. Agora – Finalmente estou de volta… – pensou Sophie – e claro, Ray não está aqui.

 Avaliou a situação: uma mochila e duas bolsas. Poderia pegar o metro automático e depois o trem para Paris, falava francês razoavelmente bem e conhecia o mínimo do local de visitas anteriores. Poderia tranquilamente surpreender Ray, já que, conhecendo-o como conhecia, sabia que não havia risco de desencontro, ele estaria no atelier ou em casa, sendo ambos em Marais seria fácil chegar de um a outro sem maiores dificuldades. Checou o telefone antes de sair dali, nenhuma mensagem do irmão, nada que a surpreendesse. Havia tempos eles se acostumaram com o que a maioria chamaria de defeitos, a verdade e que assim como Ray, Sophie tinha suas peculiaridades, que Ray aceitava e amava como se fossem as virtudes mais puras. Sophie sabia que não estar ali não significava nada além de que ele havia se entretido em suas criações e estava trabalhando em algo maravilhoso e único.

– Ray que se dane – Riu alto da própria expressão malcriada, respirou fundo e ergueu o rosto para o quente sol da manha francesa, olhos fechados, sentiu o sol aquecendo tudo ao redor, era um dia magnífico. Sophie se alongou como um gato, ergueu a mochila do chão, se preparando para começar seu caminho ate Paris. Tao absorvida estava por sua decisão de chegar sozinha e surpreender o irmão, que não notou quando a jovem de cabelos vermelhos, usando um longo vestido indiano de cores terrosas, se aproximou sorrindo.

 – Sophie?

 – Sim?

– Sou Melinda, amiga do Ray. – Sophie sorriu internamente e pensou – é claro que você é – era a cara dele encarregar seus amigos de cumprir seus compromissos, coisas importantes para ele, mas que não tinham espaço em sua agenda ou lhe faltava tempo para cumprir no momento, havia sempre um amigo disposto a ajudar e Ray distribuía tarefas como beijos, enquanto estranhamente as pessoas pareciam satisfeitas em ajudá-lo – é a mistica do Ray – Sophie pensou e sorriu.

– Ray pediu pra te buscarmos, ele teve uma reunião de última hora no atelier e não pode te avisar. Melinda sorria para ela, tão calorosa quanto o sol.

 – Ah! Ok. Prazer em conhecê-la Melinda. – Sophie sorriu. Melinda, sorrindo sempre, foi até ela e lhe deu dois beijos de cada lado do rosto seguidos de um abraço.

– Bem-vinda à França!

– Merci! - As duas mulheres soltaram risinhos.

– Venha, o carro nos espera – Melinda disse, Sophie apenas sorriu e inclinou a cabeça em um gesto positivo.

 Não muito longe um velho porém intacto Oldsmobile 442, vermelho, as aguardava. Dentro o motorista parecia ignorar a chegada das duas garotas. Sophie entrou no carro e só então cumprimentou o motorista.

– Excusez-moi, bonjour.

– Hei! Ray tem uma irmãzinha francesa? – disse o homem de forma debochada e seguindo no mesmo tom, complementou - Bonjour, petite fille.

– Oh, pare James! – disse a ruiva batendo de leve no braço do motorista – Desculpe Sophie, somos todos americanos por aqui. Esse é o James, Sophie. Meu marido.

 Sophie deu um sorriso amarelo, Melinda definitivamente era amiga de Ray, ao menos se encaixava no perfil. Mas o marido? James… Sophie o achou estranho até mesmo para os padrões de Ray. James virou para trás e sorriu também, mas seu sorriso era estranho, um sorriso tipo Mona Lisa.

 Mais uma vez naquele dia Sophie avaliou a situação: seu irmão sempre fazia esse tipo de coisa, mas se tinha uma coisa que Ray sabia escolher melhor do que roupas eram os amigos. Decidiu relaxar, ficaria quase meia hora dentro do carro com aqueles dois, e Melinda parecia engajada em estabelecer dialogo, mesmo que para todos os participantes soasse mais como um monologo. Na verdade, era bastante cômodo para Sophie que a amiga de Ray fosse dada a monólogos, pessoas assim sempre a polpavam de ter que falar quando não queria.

 Sophie observou Melinda, ela parecia bastante satisfeita em estar ali, provavelmente não diretamente pela presença de Sophie, mas por fazer algo por Ray, havia esse efeito que Ray sempre causava, como um astro do rock, todos queriam servi-lo, todos queriam estar perto dele e receber sua atenção, era algo que fazia com que Sophie se sentisse muito bem, pois se os outros davam toda atenção a Ray, a atenção de Ray sempre fora toda para ela, Sophie sorriu ao pensar nisso. Decidiu que, apesar da falta de capacidade em se manter calada, Melinda era uma garota legal e Sophie gostaria de tê-la como amiga, na verdade a prolixidade da ruiva poderia ate ser atraente em certas circunstancias… Quanto a James, ela não saberia dizer, o homem ate agora mal a olhara nos olhos e como contra ponto da personalidade efusiva de sua esposa, James não dissera mais do que dez palavras.

– Somos vizinhos de seu irmão – Melinda falava, praticamente todo o corpo virado para o banco de trás – Sou designer como ele, mas infelizmente não trabalhamos juntos – A vizinha pareceu triste por um instante, mas logo sorriu novamente – James é escritor – sorriu para o marido, levando sua mão até o pescoço do homem – Você estuda literatura não é? Aposto que conhece o trabalho do James.

 O motorista ajustara o retrovisor para verificar a reação de Sophie quando a esposa mencionou seu trabalho. Melinda seguia em seu fluxo de palavras – Então gosta de ler? Claro que sim. Poesia também? Ah deve gostar… – Melinda conseguia ter um ritmo mais alucinante que Ray, famoso por ser um acontecimento por onde estivesse, Sophie não conseguia se concentrar, decidiu que não seria necessário, já que as perguntas feitas por Melinda eram também respondidas por Melinda.

-… então? Conhece?

Sophie fez cara de paisagem, aquela pergunta fora direcionada a ela. Mas qual seria a pergunta? Por um instante ficou indignada com Melinda, se ela não falasse tanto… Depois direcionou sua irritação para si – Eu devia ter prestado atenção – Seus pensamentos corriam rápidos, notou os olhos de James cravados no espelho, cravados nela.

 – Conhece o livro do James? – Melinda repetira a pergunta, Sophie não saberia dizer se ela notara a expressão perdida de Sophie ou se simplesmente Melinda era aquele tipo de pessoa que costumava repetir a pergunta mais de uma vez para ter certeza que o interlocutor compreenderia a importância do que fora perguntado, fosse qual fosse o caso, Sophie agradeceu mentalmente por isso.

– Sinto muito, ac… acho que não – Sophie fez uma falsa expressão de desapontamento que pareceu convencer Melinda. Qual era o nome do livro mesmo? Melinda havia dito, mas ela não prestou atenção. Ela nem ouvira o sobrenome de James, as vezes era mais fácil identificar um autor pelo sobrenome. Agora Sophie já havia admitido que não conhecia o trabalho de James, particularmente ela não se incomodou com isso, mas sentiu os olhos do autor pelo retrovisor, ele a estava avaliando, ele não acreditou em seu desapontamento. Sophie deu de ombros e pensando que James e seu livro poderiam ir se foder, deixou que um sutil e malicio sorriso aparecesse em seus lábios.

-… não é James? – Melinda seguia falando, agora com o marido, enquanto sorria para Sophie, que lhe devolveu o sorriso e torceu para que a mulher não a estivesse convidando para um ménage ou para injetar heroína.

– A Dama Cinza – ouviu James dizer, olhos no retrovisor, olhos em Sophie, que por segundos sentiu todo o ar escapar dos pulmões, provavelmente o escritor percebera que ela não estava dando a miníma atenção ao que a mulher falava, mas o que a deixou sem reação era o nome do livro, a Dama Cinza, de James Graham, Sophie sentiu o rosto esquentar, James a observava pelo retrovisor.

– Ela já disse que não leu. - Melinda disse em um tom que poderia ser confundido com irritação, se era irritação com o fato de Sophie não conhecer a obra ou algo entre ela e James, Sophie não pode dizer.

 – Sobre Lady Janet Douglas? – perguntou Sophie, olhando diretamente para Melinda.

– Ah, então você o conhece – a mulher de cabelos ruivos pareceu ficar radiante – lembrou-se dele?– Sophie sorriu, sentindo o rosto ficar ainda mais vermelho.

Dormira e acordara com aquele livro desde que o comprara a dois anos. Tinha todos os elementos literários que apreciava, poesia, política, mitologia, feminismo, sexualidade. Sophie provavelmente saltaria pela janela se resolvessem abrir sua bolsa agora, pois a primeira coisa que encontrariam seria o livro, ela havia lido trechos dele no avião. Assim que leu o livro pela primeira vez morrera de vontade de conhecer o autor, mas não havia nada sobre ele, a editora não disponibilizara nenhuma informação online, não havia nada no G****e ou nas redes sociais, o autor era um fantasma, um tipo ainda mais estranho de Thomas Pynchon, ela ate fantasiava encontros, onde discutiriam a obra e beberiam vinho, [- Boa noite senhor Grahan, e uma honra conhecê-lo] [- Ora, minha cara colega, a honra é minha em conhecer tal futura grande escritora feito vós] Sophie sentiu que queria desaparecer. Agora lá estava ela pegando carona com ele, e ele era tao jovem e frio, em nada se parecia com a imagem que ela criara, uma imagem que lembrava particularmente Gabriel Garcia Marques. Com seu rosto queimando como se aquelas pessoas pudessem ouvir seus pensamentos, tentou desacelerar a mente, não havia como saberem, nem com Ray ela havia comentado, aquele era seu segredo, sua pequena manifestação de obsessão, já que geralmente nada a entusiasmava de fato. Sophie precisava sustentar a pequena mentira que acabara de contar – não conhecia a obra – nunca se sentira tao constrangida mesmo não tendo sido realmente exposta.

– Na verdade Melinda, conheço o que diz a história, a Dama Cinza é como chamam o suposto fantasma de Lady Janet Douglas, que foi queimada como feiticeira por tentar matar James V.

– Ah… você só conhece a história – Melinda ficara decepcionada, ao que parecia Sophie conseguira deixar a ruiva sem palavras, o que não havia acontecido desde que sua viagem ate Paris começara.

– Me desculpe… – Sophie reuniu todo o constrangimento da situação e canalizou-o para enfatizar o quanto estava consternada por desconhecer o livro de James. Sorrindo amarelo, Sophie se deu conta do quão boa mentirosa poderia ser em momentos de tenção, não que isso fosse louvável, mas afinal, era útil. Não sabia porque não falava que conhecia a obra de James Graham, por que não admitia que a adorava, era libertária, revolucionária, sexy, muito sexy, política e atual apesar de usar como base um fato histórico do século XVI, e era poética, uma verdadeira obra-prima literária, que por um bom tempo Sophie se recusou a acreditar que havia sido escrita por um homem.

 Viu James com olhos que pareciam facas pelo retrovisor, por um instante, ela pensou que ele notara algo, apertou contra si a bolsa onde estava o livro e desviou o olhar para paisagem.

No fim, a coisa não parecia ter ido muito bem, havia um silêncio pesado e constrangedor no carro, Melinda pareceu cansada subitamente, com sua atenção na estrada, ascendeu um baseado e aumentou o volume do rádio.

 Sophie checou o telefone mais uma vez, uma nova mensagem de Ray ‘Desculpa não poder te buscar, já estou em casa te esperando. Eles são legais’ – Sophie revirou os olhos. Pensou sobre os vizinhos de Ray. Melinda tinha estilo, era bonita e descolada, o tipo de garota que vivia ao redor de seu irmão, desde que ele fizera 14 anos, Sophie estava acostumada. James, era outra história, não havia dúvidas de que era um escritor, porém de uma outra época, seu estilo pessoal parecia antiquado tanto quanto seu carro, apesar de nem ter chegado aos 30 anos ao que parecia, era um jovem Hemingway precisando cortar o cabelo e fazer a barba. Melinda parecia gostar dela… Já James, havia uma espécie de incomodo ali. Sophie jogou a cabeça para trás, e suspirando lentamente fechou os olhos, no fundo não fazia questão de conhecer novas pessoas só pensava em reencontrar Ray. A viagem foi silenciosa, exceto pela voz de Freddie Mercury e o roçar dos pneus no asfalto.

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