Acordei antes do despertador.
O céu de Sevilha ainda estava num tom pálido, misturado entre cinza e azul, e a luz fraca que entrava pelas frestas da cortina deixava o quarto com uma tranquilidade adormecida. Giulia dormia no quarto ao lado, respirando devagar como quem não tem pressa de acordar para o mundo.
Mas eu já estava desperta — e inquieta.
A noite anterior parecia ter deixado uma marca em mim. As palavras de Miguel, a forma como ele me ouviu, os olhos atentos, sem julgamento. E, principalmente, aquele último instante antes da despedida. Aquele quase toque. O silêncio cheio de tudo que não dissemos.
Me vesti devagar e fui até o quarto de Giulia. Ela abriu os olhos assi
Giulia estava deitada de bruços no tapete da sala, desenhando com canetinhas espalhadas por toda parte. O sol da tarde atravessava as cortinas brancas, projetando sombras suaves nas paredes, e por um momento, tudo parecia tranquilo. Tão tranquilo quanto minha vida conseguia ser ultimamente.Me sentei no sofá, observando os movimentos pequenos e concentrados da minha filha. Ela mordia a ponta da língua ao tentar desenhar um coração perfeito, e achei aquilo absurdamente bonito. Delicado. Quase frágil.— Papai? — ela me chamou sem levantar o rosto.— Hum? — respondi, já sentindo que vinha pergunta difícil. Ela sempre tinha uma dessas guardadas.—
O abraço se desfez devagar, mas Miguel não me soltou por completo. Seus dedos ainda estavam presos às minhas costas, como se temesse que eu fosse desaparecer se me afastasse demais. Quando nossos olhos se encontraram, aquele mesmo calor que eu vinha evitando há semanas voltou a queimar na minha garganta.— Você vai me beijar? — a pergunta saiu baixa, quase um desafio.Ele não hesitou.— Sim.E então, seus lábios encontraram os meus. O primeiro toque foi suave, quase hesitante, como se ele ainda duvidasse que tinha permissão para estar ali. Mas quando eu respondi ao beijo, puxando-o mais perto pelas laterais da sua camisa, algo se quebrou dentro dele.Miguel gemeu contra
Capítulo – MiguelO cheiro de café fresco me guiou até a cozinha antes mesmo que eu abrisse totalmente os olhos. Ainda meio zonzo — mas num bom sentido, aquele tipo de exaustão que só vem depois de uma noite intensa —, desci as escadas com um sorriso idiota no rosto.Não era o tipo de homem que sorria sem motivo. Mas hoje... bem, hoje eu tinha um motivo muito bom.Isa.Meus pés mal tocaram o último degrau e, quando me aproximei da cozinha, o som de vozes me alcançou.— Não, Giulia, assim não, amor... senão vai cair tudo da colher. Devagar... Isso! Viu como você consegue? — A voz de Isa era suave, paciente.Me apoiei no batente da porta por um segundo, só observando. Isa estava sentada ao lado de Giulia, ajudando minha filha a tomar iogurte de uma tigela com desenhos de unicórnio. As duas riam. Giulia com a boca manchada de morango. Isa com o cabelo preso num coque desajeitado, vestindo uma camiseta larga — uma das minhas, percebi com uma pontada de satisfação — e uma calça de moletom.
O sol já se punha sobre São Paulo quando finalmente saí da faculdade. Meus pés doíam depois de horas em pé, limpando quartos de hotel antes das aulas, e minha mochila parecia pesar o dobro do normal com os livros que eu mal tinha tempo de abrir. O cansaço era tanto que até respirar parecia exigir um esforço extra.Com um suspiro, caminhei até o ponto de ônibus, onde já se formava uma pequena multidão de pessoas igualmente exaustas. O trânsito caótico da cidade não perdoava ninguém, e o ônibus que eu precisava pegar sempre demorava mais do que deveria. Enquanto esperava, encostei minha mochila no chão e fechei os olhos por um instante, tentando me convencer de que ainda tinha energia para o trajeto de quase uma hora até casa.Quando o ônibus finalmente chegou, quase não consegui subir os degraus.Meu corpo pedia descanso, mas minha mente sabia que o dia ainda não tinha acabado. Encontrei um lugar no fundo, longe das janelas quebradas e dos assentos rasgados, e deixei minha mochila no c
O despertador tocou às 5h30, mas eu já estava acordado. Meu corpo parece ter um relógio interno que não me permite descansar por muito tempo. Enquanto me vestia, mentalizava a agenda do dia: reuniões, contratos, clientes. Tudo precisava ser perfeito. Tomei meu café preto, comi duas torradas sem muita vontade e dei uma olhada rápida nas notícias do mercado. Giulia ainda dormia, e deixei um bilhete para a governanta, como sempre faço, com instruções sobre o que ela deve comer e vestir. Não posso falhar com ela. Nunca.No carro, revi relatórios no tablet. A Benites Seguridad é meu legado, minha responsabilidade. Herdar o império do pai não foi fácil. Lembro das noites em claro estudando administração e finanças, das reuniões onde era tratado como um "menino mimado" até provar meu valor. Abdiquei de tudo: festas, amigos, até um noivado que não sobreviveu à minha dedicação obsessiva ao trabalho. Tudo para ser digno do nome Benites.Cheguei ao escritório e fui direto para a primeira reunião
O dia foi longo. Mais longo do que o normal, se é que isso é possível. Meus pés doíam como se tivessem sido esmagados por uma prensa, e minhas costas pareciam carregar o peso de todos os lençóis que troquei hoje. Trabalhar como camareira em um hotel cinco estrelas pode parecer glamouroso para alguns, mas a realidade é bem diferente. Quartos imensos, banheiros gigantes e clientes exigentes que nunca estão satisfeitos. Hoje, felizmente, não tenho aula na faculdade. Meu único plano é chegar em casa, tomar um banho quente e tentar estudar um pouco antes que o cansaço me derrube.Entrei no ônibus quase arrastando os pés. Encontrei um lugar no fundo, longe das janelas quebradas e dos assentos rasgados, e encostei minha cabeça no vidro frio. O barulho do motor e o balanço do veículo quase me fazem adormecer, mas resisto. Preciso checar meu e-mail. Talvez a professora Ana tenha respondido sobre o programa de au pair. Ela me ajudou a me inscrever há semanas, e desde então vivo checando a caixa
Acordei com o som de vozes baixas vindo da cozinha. Meu corpo ainda pesava do cansaço do dia anterior, mas a lembrança do e-mail me fez sentar na cama rapidamente. Aquele pedaço de esperança ainda brilhava em algum lugar dentro de mim, mesmo que o medo e a culpa tentassem apagá-lo. Respirei fundo, tentando me preparar para mais um dia de decisões impossíveis.Quando saí do quarto, o cheiro de café estava no ar, mas também havia algo mais: a tensão. Minha mãe estava na cozinha, sentada à mesa com as mãos envoltas em uma xícara. Ela não olhou para mim quando entrei, mas eu vi os olhos vermelhos, o rosto cansado. E então, percebi. Ele estava lá.O padrasto estava encostado na geladeira, com os braços cruzados e um olhar que eu conhecia bem. Aquele olhar que dizia: "Você não pertence aqui." Ignorei-o, focando na minha mãe.— Bom dia, mãe — cumprimentei, tentando manter a voz calma.— Bom dia, Isa — ela respondeu, sem levantar os olhos.Peguei uma xícara e enchi com café, tentando me distr
O despertador tocou às 6h, mas desta vez não foi o som estridente que me acordou. Era Giulia, pulando na minha cama com os pés gelados e um sorriso que poderia rivalizar com o sol da manhã.— Papai, acorda! Hoje é sábado! — ela gritou, balançando meu braço com uma energia que só uma criança de seis anos pode ter.— Já estou acordando, princesa — respondi, esfregando os olhos e tentando me livrar do peso dela em cima de mim. — O que tem de tão especial no sábado?— Você prometeu que íamos ao parque hoje! — ela disse, como se eu tivesse cometido um crime por esquecer.Ah, sim. O parque. Eu havia prometido na semana passada, durante uma de nossas noites de filme, que dedicaria o sábado inteiro a ela. Trabalho tanto que às vezes esqueço que promessas são sagradas para uma criança, mesmo com toda a correria.— Certo, certo. Vamos ao parque — concordei, sentando na cama. — Mas primeiro, café da manhã. Você já comeu?— Não, estava esperando você! — ela respondeu, pulando da cama e correndo e