Por Paredes Vazias

Estar em casa me deixou nostálgica, poder olhar para os retratos de família que um dia esconderam tão bem a verdade dos olhos infantis e me lembrar de todas as festas de aniversários de todos os natais, e perceber onde isso nos levou.

   Quando eu fui embora tinha apenas quinze anos, era uma adolescente que acreditava que a solução era fugir e esquecer tudo, os anos no internato e na faculdade me deixaram mais dispersa de tudo isso, mas lá no fundo ainda havia a lembrança, dos gritos, do sangue, do cheiro da fumaça. Tantos anos e ainda consigo sentir o cheiro.

-Eu mesma cuidei de todos os detalhes para o funeral do seu pai, mas se houver alguma mudança que queira fazer eu cuidarei disso imediatamente.

   Izabel a governanta da mansão trazia consigo um ar de preocupação e vez ou outra podia notar suas mãos agitadas descendo até a saia na tentativa de mante-las ocupadas ou de tornar o tecido liso ainda mais impecável do que estava. Pensei por um momento se havia algo que eu devesse fazer ao enterrar o corpo sem vida do meu pai, mas isso nao adiantaria, os erros que haviam sido cometidos nos trouxeram até uma situação sem retorno, enterrar o homem que eu mais amava e odiava no mundo, agora parecia uma tarefa sem importância diante de tantas prioridades.

-Sei que fará um trabalho impecável Izabel, manterei tudo como você fez.

-Sim senhora, se houver algo mais que eu possa fazer?

   Sim, estava na hora de começar o que eu deveria fazer, nada me fazia mais sentido do que isso.

-Mateo ainda está aqui?

-Sim senhora, devo pedir que venha para a biblioteca?

-Não Izabel, diga para ele vir até o meu quarto em uma hora.

-Sim senhora, com licença.

   Cada degrau despertava uma lembrança, momentos sobre os quais construí a minha vida, que agora pareciam com algum filme de romance barato da tv, a decoração do quarto mudara mas os pequenos detalhes da infância nao podiam ser mudados, o desenho de mãos pequenas no chão dentro do armário, as marcações de cada centímetro ganho na primeira infancia permaneciam na porta, a vista pela janela do jardim que eu me recordava ser sempre tão verde agora coberto por uma camada de neve. Tomei um banho quente sem saber se o que queria espantar era o frio do inverno ou as lembranças do passado, no silêncio daquele quarto me permiti ser novamente aquela menina alegre e risonha que passava os dias correndo e sonhando com o felizes para sempre que nunca chegaria.

-Senhorita, desculpe a intromissão eu bati na porta mas nao houve resposta.

   Mateo permanecia inerte, o olhar curioso logo deu lugar a feição fria e sombria de sempre, em seus 1,90 de altura dificilmente nao pareceria ameaçador eu imagino, mas não para mim, nunca para mim. Mateo foi encontrado pelo meu pai vivendo nas ruas muito antes de eu nascer, cresceu entre a família apesar de não carregar o mesmo sangue, a isso se devia sua lealdade inquestionável ao meu pai, como seu braço direito, seu júri e carrasco caso fosse necessário, ele era mortal e ninguém questionava isso, tão bonito quanto fosse até mesmo as mulheres andavam em passos leves ao seu redor.

-Tudo bem Mateo, eu só estou cansada da viagem.

   Seu olhar permanecia firme no meu mas eu sabia que ele estava atento a qualquer movimento que eu fizesse, jamais olhando para algo além de mim.

-Vai me contar o que aconteceu, porque eu não consigo acreditar em todas aquelas matérias dos jornais sobre um vazamento de gás, não quando você estava sempre ao lado dele.

-Ele foi executado, um tiro limpo entre os olhos, o segundo tiro atingiu o encanamento de gás, ainda nao sabemos quem é o responsável, mas fechamos o perímetro e coloquei muitos homens nisso, poucos homens dariam um tiro de uma distância daquelas então vamos encontrar o atirador e fazê-lo falar.

   A ruga entre seus olhos denunciava sua irritação mas apenas para quem já conhecia seu temperamento.

-Quero o responsável por isso Mateo, é meu direito e você vai me trazer ele não importa o que tenha que fazer.

-Sim senhora.

-Agora como ficam as coisas com o concelho de família? O que eu devo esperar?

- Não é segredo que seu pai queria que você tomasse o lugar dele, mas o concelho não vai simplesmente se sentar e aceitar isso, não sem uma boa briga, sabe que uma mulher nunca liderou a família mesmo durante a guerra, tem certeza de que isso é o que você quer?

   Os olhos me analisavam buscando uma exitação um vacilo, mas o que eu podia fazer depois de tudo, depois de tanta dor e sacrifício para manter essa família firme, eu não tinha o direito de deixar tudo se perder, não podia fugir outra vez, era uma mulher agora, não a adolescente estúpida que virou as costas e correu pro mais longe possível, estar aqui é meu direito e meu dever.

-Nunca estive tão certa, mas não sou estúpida sei que vou precisar de ajuda pra lidar com a oposição do concelho, você está comigo Mateo?

- É claro senhora, a promessa ao seu pai se mantém a você enquanto eu viver.

   Lá estava o brilho nos olhos, a postura rígida, a sede de sangue, de vingança. Mateo amava meu pai como se fosse dele, é provável que ele era o que mais sofria com a morte dele. Mas ajustes precisavam ser feitos e apenas Mateo não me seria suficiente para esta tarefa. Indicando o caminho para a porta ele se pôs imediatamente ao meu lado me oferecendo apoio como o cavalheiro que era, caminhamos em silêncio pelo corredor iluminado enquanto eu observava cada um dos retratos nas paredes, gerações da família que passaram por muito para nos manter unidos, quanto mais próximo da escadaria mais conhecidos os retratos, até o lugar vazio na parede onde estaria em breve um retrato do meu pai, me vi parada diante daquele vazio imenso e senti o gosto amargo da tristeza, durante muito tempo o sentimento de raiva me manteve tão longe e agora na parede vazia a tristeza me mantinha tão perto.

- Buscar Lúcio

   Mateo se manteve calado por um breve momento absorvendo o que tinha acabado de ouvir. Ouvi o longo suspiro e quase podia sentir a irritação na sua voz.

-Como quiser senhora.

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