O deserto era um enorme mar de areia, imerso em um silêncio quase tão forte quanto o calor do sol da tarde, quebrado apenas pelo soar ocasional do vento.
O pelo cinza listrado de Heru era quase um farol no meio da areia clara, mas ele mantinha-se encolhido na sombra de um cacto, sem saber que havia alguém às suas costas. A jovem gata preparou o bote, a cauda agitada, os músculos retesados e balançando os ombros, e pulou. Heru miou de susto e os dois rolaram pelo chão.
-- Sahira, saia de cima de mim! – o pequeno macho exclamou e se debateu, mal humorado. A gatinha de pelos negros se afastou sorridente.
-- Você está chateado porque eu ganhei. Tocaiei você, e nem percebeu. Sou a melhor caçadora do mundo!
-- Mas você atacou por trás.
-- Um caçador ataca de qualquer lado. Foi você que não me ouviu chegando.
Heru pulou na amiga e de novo os dois rolaram na areia, trocando mordidas e golpes fraquinhos de filhote, e mais uma vez terminou com Sahira por cima.
-- Ganhei de novo. Sou a melhor lutadora também.
-- Crianças, parem com isso – Aton, pai de Heru, se aproximou. Tinha o mesmo pelo cinza com listras pretas, mas os olhos eram igualmente azuis, enquanto os do filho eram um amarelo e um azul.
Ele era um caçador do deserto, sabia encontrar presas até mesmo enterradas na areia, e ensinava tudo que sabia a Heru, que tinha vontade de aprender tudo sobre a terra onde viviam.
-- Só estávamos brincando de esconde-esconde, pai.
-- E de luta também, não é? – o gato adulto riu – Sahira, sua mãe está te chamando.
A gata imediatamente ficou de pé e se dirigiu para casa.
-- Tchau, Heru, agora tenho aula para ser a melhor feiticeira também.
Correu para a toca de sua família, no interior de uma grande rocha. Seu irmão Sef esperava sua chegada ao lado da mãe, Femi, que não estava nada satisfeita. Sahira se encolheu, sabendo que aquele olhar significava carão, e se explicou:
-- Eu estava brincando com o Heru e perdi a noção da hora...
-- Não pode ser boa feiticeira se não consegue nem chegar na hora da aula.
-- Desculpe, mamãe.
Os três tinham pelagem negra como a noite. Somente gatos com essa cor eram capazes de usar magia, por isso a família era uma das mais importantes da região, e gerava magos de grande habilidade há várias gerações.
Femi era a feiticeira chefe da família, e de sua ninhada de quatro filhotes, Sahira e Sef herdaram a cor do pelo e o talento para a magia. Quase todos os dias a matriarca dava lições de feitiços aos dois.
O sol já se punha quando a aula acabou. Sahira saiu da toca quase correndo, ansiosa para fazer algo mais emocionante. Por mais que gostasse de aprender magia, a aula daquele dia se focara mais em História, e a jovem aprendiz gostava de ouvi-las na forma de lendas, não do jeito mecânico da mãe.
Do lado de fora, brincou com seus outros dois irmãos, Caleb e Roxane, ambos malhados como o pai, depois subiu a encosta que marcava o limite da terra de Bast com o vasto deserto. No alto dela, deitada numa pedra, se encontrava uma magnífica leoa, de pelos brancos como as nuvens que raramente se viam naquele céu.
Sahira sempre ficava deslumbrada com a visão de Iana, e como seu tamanho e postura causavam uma impressão de imponência. A leoa vivia ali com os gatos desde que Sahira era um bebê. A gata lembrava-se que quase todos os gatos adultos saíram de suas tocas na noite em que Iana chegou, completamente exausta depois de atravessar o deserto sozinha. Sahira foi a única da ninhada curiosa o bastante para espiar fora da toca e dar uma olhada na estranha, o pelo alvo desgrenhado e sujo, os olhos inchados, talvez de ter levado areia no focinho. Quando Femi pegou a filha prestes a sair, deixou-a de castigo por uma semana.
Femi parou perto da entrada da toca e se sentou. Sahira engoliu em seco antes de parar ao seu lado. Começou a se desculpar: -- Mãe... -- Sahira, você não vai ser a feiticeira chefe da família depois de mim. -- O quê?! Por quê? -- Você me desobedeceu, se pôs em perigo e Heru também. Não pode ser boa maga sendo tão imprudente, então não me deixa escolha senão nomear Sef como meu sucessor.  
-- De onde aqueles grandalhões vieram? E por que nos atacaram? – Sahira não parava de perguntar. Ela e Iana estavam andando há um bom tempo, e Bast até já desaparecera no horizonte – Desde quando leões e tigres vivem juntos? Iana suspirou, percebendo que a gata não desistiria até obter respostas, e resolveu explicar: -- É uma longa história, mas também é um longo caminho que temos à frente, o bastante para eu contar. Há alguns anos, bem antes de você nascer, leões do reino de Xangô e tigres de um território chamado Brahma travaram uma guerra. Não importa porque começou ou terminou, mas
Só quando os primeiros raios do sol apareceram no horizonte, Iana procurou uma grande rocha e se deitou à sua sombra. A essa altura Sahira não aguentava mais a sede, e aparentemente Iana também não. Sua língua caía da boca aberta, comprida e seca. Depois de andar a noite inteira e sem água nem comida, nenhum felino duraria muito quando o calor do deserto chegasse ao ápice. Sahira olhou ao redor à procura de algo para beber, e lá longe avistou um oásis. -- Iana, espere aqui, vou procurar água. E saiu correndo antes que ela pudesse fazer objeções.
Sahira olhou para o conflito que se desenrolava e respondeu: -- Sair? Mas e a mamãe, papai e todo mundo? -- Não podemos contra todos. Há um jeito de tirar esses invasores daqui, mas temos que partir agora. Iana pegou Sahira pelo cangote da mesma forma que seus pais faziam, e diferente do que a jovem gata esperava, a leoa entrou no Rio. Não a ponto de ter que nadar, mas com o nível da água chegando quase a seu peito. Várias vezes a cauda de Sahira se molhou enquanto Iana avançava. Ela seguiu a correnteza, rum
Enquanto Sahira encontrava ajuda em seu segundo dia de viagem no deserto, Sef imaginava quanto tempo mais a sua viagem levaria. Ao amanhecer do dia seguinte à invasão dos leões e tigres, o gato só teve tempo de se despedir rapidamente da família antes de partir. Aparentemente os tigres estava muito ansiosos para sair daquele “punhado de areia escaldante”. O tigre chefe do grupo fez Sef correr por si mesmo, mas em menos de um minuto ficou claro que um gato com menos de quatro meses, ainda filhote, não podia acompanhar a velocidade dos felinos de grande porte. Uma tigresa voltou quando ele ficou para trás. &n
Os caracais moravam num pequeno oásis, a algumas horas de viagem da terra de Xangô, ao sul. Segundo Betserai, o caracal que as trouxe, de vez em quando eles iam para a savana caçar, quando o período de seca era mais forte. As cores daqueles felinos não tinham tanta variação, todos podiam se camuflar na areia. Com exceção de um pequeno grupo de pelos negros, que Sahira supôs serem os feiticeiros, e que foram ao encontro das recém-chegadas. Enquanto Iana explicava a situação, os filhotes de caracal chamaram Sahira para brincar. Eram maiores que ela, mas não tanto quanto gatos crescidos. Apesar disso, ela se sentia um pouco entre adultos.
Conforme prometido pelo caracal negro, o resto da viagem foi muito mais tranquilo. Quando faltava comida, surgiam lagartos, cobras e aves que eram facilmente apanhados, uma brisa agradável ajudava a suportar o calor do dia por mais tempo, e mesmo a noite não parecia tão gelada. Em pouco mais de um dia de viagem, Sahira avistou algo diferente no horizonte. Perguntou a Iana: -- O que é aquilo? -- Ora – Iana arregalou os olhos, aliviada – É o Rio Verde! A gata começou a correr, e mesmo com o sol nascendo já