No entanto, ouvimos as portas às minhas costas abrirem, e ambos olhamos para trás. O senador Mares caminha na nossa direção, com um sorriso cruzando o rosto inteiro.- Angelic, querida. É sempre lindo ver você.- Senador – me levanto quando ele me alcança e apertamos as mãos.Mares é baixo, um pouco mais do que eu, é calvo e tem uma barriga protuberante. O tamanho de seu ego jamais caberia em seu corpo.- Nós fizemos algo grande agora. Por que não vêm brindar? – o senador olha de mim para seu filho, logo atrás.- Claro – Vicenzo concorda, e ouço ele se levantar.O senador solta minha mão, mas apenas para colocar a sua na base das minhas costas e me impulsionar para frente. Eu diria que preciso me vestir mais adequadamente para a ocasião, mas a verdade é que já não me importo mais. Sinto que tudo isso irá desmoronar em pouco tempo, e meu esforço de anos para parecer exemplar será só poeira.- Me diga, querida. Nos vemos novamente na missa amanhã? – Mares pergunta.- Talvez eu não possa
ANGELIC...Um. Dois. Três. Quatro. Cinco.Cinco. Quatro. Três. Dois. Um.Começo contando os segundos, que se tornam minutos e horas. Eu não havia notado nesta manhã, mas não fechei o registro da torneira direito, então as gotas de água caem na pia. Conto os segundos conforme os pingos descem.Já contei mais de vinte mil pingos.Estou no chão do banheiro. A luz acabou há, mais ou menos, dez mil pingos atrás. A única iluminação vem da luz do luar. Minha cabeça está encostada na banheira enquanto encaro a arma, que eu sequer tive coragem de tocar. Foi aquilo que matou um homem diante dos meus olhos.Um. Dois. Três. Quatro. Cinco.Cinco. Quatro. Três. Dois. Um.Com o passar do tempo, eu acho que deixei de ter muita noção do que é real e do que minha cabeça criou. Eu dormi e sonhei com o corpo sangrando descendo a escada. Senti sede e bebi a água da pia. Também senti fome, mas sobre isso não pude fazer muito.E LeBlanc. Eu alucinei com ele. Por várias vezes, tive a impressão de que ele che
Um. Dois. Três. Quatro. Cinco.Cinco. Quatro. Três. Dois. Um.Acordo com o susto. Minha testa está suada e o corpo completamente arrepiado. Minha garganta seca e os olhos marejados. Aos poucos, entendo que tive um pesadelo. Sonhei com o bendito corpo descendo as escadas.Santo Deus! Quanto tempo até esquecer a noite passada?Olho meu relógio de cabeceira. Quatro da madrugada. Faz menos de trinta minutos que a polícia saiu da mansão, eu tomei um banho e dormi. Sequer me preocupei em comer algo, apesar de estar com fome. Pensei que o cansaço fosse me dopar o suficiente para não precisar de remédios. Me enganei.Me sento na cama, sabendo que não dormirei mais. Repriso tudo que conversei com o detetive, principalmente a parte em que ele garante que a segurança do condomínio foi redobrada, e que a perícia continua assim que amanhecer.Eu estou segura. Preciso acreditar que estou segura.Me levanto da cama. O detetive não se contentará com nosso depoimento. A única pessoa que dirá algo rele
ANGELIC...Saio da oficina e caminho os poucos passos até o carro. Antes de entrar, olho ao redor. Os carros de corrida saem cantando pneu pelo asfalto, e as pessoas ao redor gritam e jogam bebida para cima.Felicidade. Não importa se dura cinco segundos ou cinco horas, se estas pessoas estarão infelizes em suas realidades quando o sol nascer. Agora, estão felizes, e isso é tudo que importa. Ao contrário da maioria das pessoas ao meu redor, estas sabem que terão um pedacinho de felicidade toda vez que se reunirem aqui.Entro no carro. O perfume de LeBlanc toma o lugar que o cheiro da rua ocupava na minha cabeça.Procuro o cartão-chave no bolso do shortinho e não encontro. Vou tateando o carro; os bancos, o painel, o console. Me abaixo para procurar no assoalho. Tateio o chão do carro em busca da chave, entretanto, acabo esbarrando em outro objeto. Gelado e maior do que o cartão-chave.Retiro a mão depressa. O que é isso?Ligo a luz interna para ver melhor, e acabo encontrando o cartão
Minhas mãos soam e tremem. Eu engatilhei uma arma que nunca cheguei perto de usar, e agora preciso manter a postura. Não posso demostrar que acabei de me arrepender de vir aqui.Quando seus passos estão perto demais de mim, eu aponto para o chão e disparo. O tiro emite um barulho alto, que reverbera por todo prédio. Eu poderia jurar que senti a construção tremer. No entanto, LeBlanc sequer move um dedo ou arregala os olhos. Não importa o que eu faça, ele nunca soa surpreso.- Vamos, Angelic. Mire em mim - pede.Ele para à alguns passos de distância, não por eu ter atirado, mas simplesmente porque quer.- Aquelas pessoas na minha casa estavam atrás de você ou trabalhavam para você - afirmo. Minha voz parece menos firme do que quando cheguei, e odeio isso.- Nem um, nem outro.Olho para os olhos dele, algo que havia evitado fazer. O verde brilhando na meia-luz, parecendo pronto para me atacar. Na verdade, seus olhos estão tão vívidos que parecem ter esperado a vida inteira por este mome
LEBLANC...Mais uma chamada perdida. Não, eu não pretendo atender.Os últimos três dias foram como um limbo, deslocados da minha realidade. Normalmente, eu não me permito hesitar. Minhas decisões precisam ser instantâneas. No entanto, passei três dias tentando me decidir, e optei pela solução mais fácil. Consequentemente, a mais imbebil.Pela primeira vez desde que comecei meus trabalhos, estou abrindo mão de um. Eu descobri que era bom resolvevendo a vida das pessoas. Como Daniel, por exemplo. Ele era um empecilho para seu filho, e eu o ajudei. Alguém sempre sai prejudicado, fato, mas meu trabalho não é julgar quem está com a razão. Um tiro, esse é meu trabalho.Mas eu errei. Não costumo admitir meus erros, porque eles são raros, no entanto, agora é preciso. Errei ao aceitar trabalhar para Margot Donneli. Eu estava tão certo de que seria um trabalho fácil que não pensei no trabalho que teria até conseguir um álibi decente. Eu queria ser o último suspeito, mas a garota me odeia. Me to
LEBLANC...Casa.O substantivo que pode significar muita coisa. Para uma criança, o lugar onde sua mãe cozinha a melhor comida do mundo. Para o adulto, o lugar para onde irá após o trabalho. Para o idoso, o lugar onde passou a vida inteira.Casa.Eu nunca realmente tive uma casa. Eu nasci nos Estados Unidos, vivi no Bronx tempo suficiente para ser considerado um demônio, e então fui adotado por uma família britânica. As coisas não saíram como planejado, e antes do esperado eu estava em um abrigo para crianças e adolescentes. Em todos esses lugares, eu nunca vi uma casa. Talvez a construção fosse uma, mas as pessoas não.E neste interim, eu cresci e me tornei eu. Não a melhor pessoa, e provavelmente não a pior. Eu fiz o que precisava fazer para sobreviver.O zelador do orfanato nunca ia para casa, se é que ele tinha uma. Ele estava sempre lá, vigiando as crianças e nos proibindo de tocar o terror. Eu ouvi muitas histórias sobre ele; que era um vampiro, que não tinha família, que tinha
ANGELIC...Uma semana.Duas semanas.Três semanas.Três semanas desde a última vez que eu vi LeBlanc. Zero mensagens. Zero ligações. Zero contato. E não é como se eu esperasse que ele me ligasse no dia seguinte, não sou estúpida. No entanto, também não esperava que ele fosse desaparecer.Eu não sinto falta dele, nem perto disso. Mas, às vezes, me pego pensando no que o fez sumir logo após o que aconteceu no armazém. Eu não consigo entender, e ele não está aqui para me explicar.- Angelic? Angelic? - Margot chama.Olho para ela do outro lado da mesa de café da manhã. Uma de suas sobrancelhas está arqueada, então sei que perdi um monte de discursos.- Sim - respondo.- Saiu a primeira matéria sobre as eleições. Leia.O tablet está aberto em uma página jornalística sobre a mesa. Não há chance de eu ler. Não me interesso pela política de Elliot há algumas semanas. É engraçado, pois, há três meses, tudo que eu fazia era me importar com a imagem da família.- Claro.Bebo um gole do meu café