Capítulo I

Na pequena cidade de Resende, interior do Rio de Janeiro, co nhecido por seus canaviais e plantações de café, centenas depessoas trabalhavam arduamente, muitos contavam com a ajuda dos

pequenos filhos. Várias dessas crianças estavam no trabalho dos pais

para ajudá-los e, uma grande maioria para se divertir, subir em árvores,

brincar dos famosos piques da época radiando felicidades. As crianças

não tinham conhecimento do que hoje chamamos de televisão, somente de um pequeno rádio a pilha, aquele pequeno rádio era a alegria

de muitas famílias. Dizem que os bons tempos não voltam mais, e a

mesma água não passa debaixo da mesma ponte duas vezes... Como era

bom colher frutas fresquinhas, tirar leite da vaca, correr por um imenso

mundo verde, onde só sabíamos o início de um imenso horizonte.

Nas longas estradas de terras, nos grandes rios, nas imensas planta-

ções em que diversas vezes encontravam pais desesperados à procura

dos filhos, ora tão perto do leito que irritavam os pais, ora, tão longe

que quando se encontravam era uma alegria única, expressa em um

apertado abraço e em inúmeros beijos. A longa caminhada para a escola não desanimava quem tinha sonhos, e muito menos os que tinham

planos, como tirar os pais daquela vida árdua. Como nem tudo é ruim

na vida, nos finais de semana os pais levavam os filhos às feiras, aos

ribeirões ou as casas de familiares distantes. Acostumados a esses passeios, a família do senhor Benedito viajava quase duas horas em uma

carroça com destino à casa da cunhada Roseli, situada na cidade de

Volta Redonda. Lugar com mais moradias, luz elétrica e um saneamento de dar inveja a qualquer outro que ali não residisse.

Em uma dessas visitas, a pequena Juliana conhece Thaís, dois anos

mais velha. No primeiro encontro se tornaram amigas inseparáveis,

deixando outras coleguinhas bem enciumadas. Ao longo do dia, as

duas amigas construíam casinhas com as palhas dos milhos, pedaços de

bambu e alguns galhos de árvores. Depois de construir a pequena casinha, era hora de decidir quem iria residir nela. Outra animada festa era

com cabelos de milhos, retalhos de roupas e barros à vontade. Isso não

impedia que as demais crianças entrassem e animassem aquela brincadeira pura, sem maldade, onde jogavam barro e, água, umas nas outras,

ao ponto de ver aqueles olhinhos brilhando de felicidade. Os sorrisos

definiam as meninas alegres, demonstravam o tamanho da alegria naquele povoado. Ao entardecer as meninas se reuniram prometendo se

ver novamente, pois a caminhada para Juliana seria longa, antes mesmo que partisse. Thaís vai até a carroça dos familiares da amiga e pede

para eles voltarem logo. O pai, comovido com o acontecimento, pega

a menina no colo e pergunta:

‒ Posso saber que idade tem essa menina linda?

‒ Tenho sete anos.

‒ E qual é o nome desta linda menina de sete anos?

‒ Thaís.

‒ Que nome bonito, você já sabe o nome da minha filha?

A pequena menina faz movimento com a cabeça, mostrando que

sim.

‒ E você não vai me dizer o nome dela?

‒ Juliana.

Ao ouvir o nome da filha dito pela voz meiga da garotinha, começa

a girar Thaís, com os braços para o alto, com um imenso sorriso. A alegria é vista a cada giro, tanto do pai de Juliana como de Thaís, que curte

o maravilhoso momento. Ao sentir uma leve tontura, senhor Benedito

coloca a pequena garota no chão.

‒ Isso é muito gostoso de fazer, o problema é que a tontura persegue. Diz aos risos.

‒ Pai, pai, agora é a minha vez!

‒ Se teu pai fazer isso novamente não vamos chegar em casa, minha

filha.

A pequena menina cruza os braços e faz um biquinho. Para o clima

não ficar tenso, a mãe pega a filha e gira a pequenina. Nos braços da

mãe se vê uma alegria e alguns gritos de encantar multidões.

‒ Chega, Juliana, isso é cansativo.

‒ Só mais um pouco, mãe.

‒ É cansativo, filha, outra hora brincamos novamente. E não adianta reclamar, já deu para matar a vontade, vamos embora porque o caminho é longo.

Após ajeitarem tudo e partirem, possível ouvir os gritos de Roseli

correndo atrás da carroça com a mão para cima.

‒ O que houve, irmã, aconteceu alguma coisa? Pergunta Rosália,

assustada.

Ao chegar perto da carroça, Roseli respira fundo e diz:

‒ Vocês se esqueceram de levar um pedaço do bolo que fiz.

‒ Quer nos matar do coração, Roseli?

‒ Quero matar ninguém do coração não, cunhado, apenas não quero que meus sobrinhos deixem de comer aquilo que eles tanto gostam. 

‒ Vai acabar deixando-os mal-acostumados.

‒ Vou não, maninha. E, mesmo se deixar, são crianças que valem

ouro.

A mãe olha para dois deles, que estão em sono profundo, abraça

Felipe, o mais velho, e comenta:

‒ Se algo acontecer comigo ou com o Benedito, jura que vai tomar

conta deles?

‒ Nada vai acontecer com vocês, mas se alguma coisa acontecer

podem contar comigo.

‒ Obrigada, minha irmã, obrigada.

‒ Vamos, Rosália, já está ficando tarde – alerta Benedito.

Um imenso silêncio toma conta do local. Enquanto a carroça avan-

ça, Roseli vai ficando cada vez menor, até desaparecer totalmente da

vista da irmã. O trajeto, percorrido muitas vezes no escuro, hoje é iluminado pela luz da lua cheia, esplêndido. As crianças dormem com as

canções dos pais durante as duas horas da viagem. Ao retornarem para

casa, senhor Benedito tira as crianças da carroça e as leva para a cama;

cansados, o casal faz a mesma coisa. No meio da noite a pequena Juliana acorda e pela claridade do lampião vê algumas sombras passando

pela parede. Rapidamente cobre a cabeça e após alguns segundos abre

um pequeno vão no cobertor para observar; as sombras continuam a

passear, e rapidamente ela cobre a cabeça. O silêncio reinava, até que

um dos gatos da casa começou a miar e a pular na cozinha derrubando

panelas e talheres, acordando todas as pessoas, que saltam da cama. Ao

chegarem à cozinha, observam o gato arrepiado, tentando ferir com as

unhas algo que somente ele enxergava.

‒ Mãe, o que o Amarelão vê? - pergunta Ronaldo, assustado.

‒ Todos vocês voltem para cama, não deveriam ter se levantado.

‒ Estou com medo, mãe. - disse a pequena Juliana.

‒ Levem todos para o nosso quarto, Rosália. Algo muito estranho

está acontecendo aqui.

‒ Crianças, vamos dormir comigo e com o pai de vocês.

Ao voltar do quarto para chamar o marido, a esposa toma um susto

ao ver sombras passeando pela parede da cozinha, faz o sinal da cruz e

pergunta:

‒ Que coisas são essas, Benedito?

‒ Acredito que sejam coisas sobrenaturais.

‒ Nunca vi nada parecido, vamos para o quarto,... As crianças estão

com medo e eu também.

‒ Vamos, sim. - disse o esposo, que não tirava os olhos das sombras.

As crianças, umas agarradas às outras, cobertas dos pés à cabeça,

tremiam pelo que avistaram.

‒ Calma, meus filhos, mamãe e papai estão aqui, nada vai acontecer.

‒ Deitem com a gente, mãe, pai, assim vamos nos sentir seguros. -

pediu Felipe.

‒ Antes de deitarmos vamos rezar para papai do céu nos proteger.

Todos se ajoelham com os braços por cima da cama e começam a

orar.

O senhor é o meu pastor, nada me faltará.

Ele me faz repousar em pastos verdejantes.

Leva-me para junto das águas de descanso, refrigera-me a alma.

Guia-me pelas veredas da justiça, por amor do Seu nome.

Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei mal

nenhum, porque Tu está comigo, o teu bordão e o teu cajado me consolam.

Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários, unge-me a

cabeça com óleo, o meu cálice transborda.

Bondade e misericórdia certamente me seguirão todos os dias da minha

vida, e habitarei na casa do Senhor para sempre, Amém.

Ao deitarem, um barulho ensurdecedor vem da cozinha, que parecia ter ido abaixo.

‒ Fiquem aqui, vou ver o que aconteceu.

Ao chegar à cozinha, senhor Benedito não acredita no que vê, olha

tudo à sua volta, procura por alguma coisa que não está ali. Dá alguns

passos de volta para o quarto e observa a esposa, aflita. Ela Pergunta:

‒ O que aconteceu em nossa cozinha?

Senhor Benedito olha para a esposa sem nenhuma resposta.

‒ O que houve contigo, homem de Deus? Está me assustando mais

ainda.

Ainda meio abobado pelo que viu, senhor Benedito diz:

‒ Não caiu uma agulha sequer na nossa cozinha, tudo está como

estava.

A mulher arregala os olhos.

‒ Está dizendo que todo aquele barulho não foi na nossa cozinha?

Como pode?

‒ Não sei, Rosália, parecia que a cozinha tinha vindo chão abaixo,

mas está intacta.

‒ Que Nossa Senhora Aparecida esteja conosco.

‒ Tentem dormir, vou sentar na cama e ficar mais um tempo acordado atento a outros acontecimentos.

Com o passar das horas, senhor Benedito sente o sono chegar, deita

no pequeno espaço reservado a ele e só acorda no dia seguinte, com o

cantar dos galos. Olha tudo em volta, levanta da cama e caminha até a

cozinha, tudo estava do mesmo jeito. Pensativo e incomodado com alguma coisa, corre até o banheiro, mas tudo estava como havia deixado.

“Não é possível, o que causou todo aquele barulho?”

Ao olhar para o pequeno corredor da casa, lembra que não observou

o quarto das crianças e segue desesperado, pensando no pior. Chegando lá, encontra tudo do mesmo jeito que as crianças deixaram e, suspira aliviado. Ao se virar de volta, toma um susto imenso!

‒ Quer me matar, Rosália?

‒ Desculpa, não foi a minha intenção, apenas queria saber se vai

buscar o leite ou quer que eu vá.

‒ Eu vou, estava observando se foi em alguma outra parte da casa

todo aquele barulho.

‒ Vamos esquecer isso, será melhor para as crianças.

‒ Tem razão. Vamos colocar um ponto final nisso, vou buscar o

leite.

Chegando em seu quarto, dona Rosália abre um imenso sorriso ao

ver os filhos dormindo e, com um aperto no coração, diz:

‒ Crianças, acordem. Hora de ir para a escola.

‒ Só mais um pouquinho, mãe – pede Felipe.

‒ Vocês têm um grande compromisso com o colégio. Eu e o pai de

vocês queremos que conquistem o que não conquistamos, que tenham

uma vida digna, que possam dar a seus filhos o que não demos a vocês,

por isso peço que estudem. Sem os estudos não somos ninguém. Não

decepcionem pessoas que tanto lutam por vocês, como o bom pai que

Deus lhes deu.

Todos eles levantam e abraçam a mãe.

‒ Nós não vamos decepcionar vocês, podem acreditar. - disse Felipe.

‒ Que bom ouvir isso. Espero que levem estas palavras com vocês

por toda vida, porque em algum lugar do trajeto elas poderão cair e

alguns se esquecerem de pegá-las de volta.

‒ Isso jamais vai acontecer, mãe, eu te prometo. - disse Ronaldo,

com lágrimas nos olhos.

‒ O mundo lá fora é terrível e cruel, meus filhos... Quando estiverem grandes vão entender o que estou falando. Agora, todos para o

banho na ordem de sempre, do menor para o maior, Júnior, Juliana,

Ronaldo e Felipe.

Enquanto as crianças se aprontam para a escola, chega o pai com o

pão e o leite.

‒ Está tudo aqui, Rosália, depois que as crianças lancharem, vou

levá-las à escola e depois nos encontraremos na fazenda do senhor João.

‒ Estarei lá, não demore.

Assim que senhor Benedito deixa os filhos na porta da escola, faz a

pergunta do dia a dia:

‒ Regra número um?

‒ Não conversar com estranhos, não aceitar nada de estranhos e

sempre nos manter unidos. - os quatro filhos respondem.

‒ Que maravilha! Meio-dia papai vem buscar vocês. Estudem.

Subindo na carroça, senhor Benedito partiu em direção à fazenda

onde a esposa o esperava. Antes de chegar ao destino, parou em um

barzinho.

‒ Me dá uma branquinha, senhor Joaquim.

‒ O senhor mesmo não disse que vai parar de beber?

‒ Estou parando, tomando em menor quantidade.

‒ Isso não quer dizer que o senhor parou.

‒ Me serve uma logo e coloca na conta, minha esposa me espera.

O dono do bar serve senhor Benedito, faz um sinal com a cabeça

e, diz:

‒ O senhor não tem jeito mesmo. E os seus filhos, estão bem?

‒ Estão ótimos. Acabei de deixá-los na escola.

‒ São boas crianças, dê a eles um futuro brilhante, conquiste para

eles o que ainda não conquistou, esteja sempre ao lado deles.

‒ O senhor acha que não estou?

‒ Eu não acho, tenho certeza, pois o pai que deseja o bem de um

filho não valoriza mais a bebida do que o próprio filho.

‒ Olha lá como o senhor fala comigo, eu quero respeito. Trabalho

dia e noite quase como um escravo e o senhor quer me dar lição de

moral?

‒ Não, senhor Benedito, não estou lhe dando lição de moral, apenas

tentando fazer que entenda que seu tempo acabou, você já viveu o que

tinha de viver, se divertiu, namorou, bebeu... Agora está na hora de

viver para seus filhos. 

‒ Tuas palavras me ofenderam, senhor Joaquim. Final do mês acerto

o que devo, e nunca mais piso no teu estabelecimento.

‒ Se me interpretou mal,... me desculpa, não era a minha intenção.

Apenas queria que o senhor...

‒ Não diga mais nada, por favor. Já disse o bastante por hoje.

Ao beber o restante da cachaça peito a dentro, senhor Benedito sai

do estabelecimento sem dirigir uma única palavra ao proprietário.

“És um homem muito bom, Benedito, pena que a bebida não deixa

o senhor ser quem és”.

Chegando à fazenda, ele logo vai ao encontro da esposa, que, acostumada com o cheiro da bebida, indaga:

‒ Andou bebendo, Benedito. Não jurou a mim e às crianças que ia

parar?

‒ Só bebi uma dose, pode ficar despreocupada.

‒ Está mentindo para tua família. Acha isso correto?

‒ Aqui não é lugar para uma discussão, estamos trabalhando. Ou

quer ver teus filhos morrerem de fome?

‒ Vira essa boca pra lá, homem. Enquanto eu viver isso não vai

acontecer.

‒ Então vamos trabalhar, não podemos perder esse emprego, não se

encontra trabalho em fazenda alguma da região.

‒ Em casa terá que me dar uma boa explicação.

Sem mais nenhum comentário, ambos pegam no batente. O trabalho é pesado e faz as horas passarem, deixando a impressão que o

dia voou. Na pausa para o almoço, o senhor Benedito pega a carroça e

vai buscar os filhos na escola. No caminho passa novamente pelo bar,

pede uma dose da “boa” e continua seu trajeto. No percurso de volta,

animado com a cantoria das crianças, observa seus filhos e se recorda

do seu tempo. Sem que nenhum dos filhos notasse, algumas lágrimas

escorrem em seu rosto, lentamente ele passa a mão de forma discreta e

segue o seu caminho.

À tarde para a pequena Juliana era só alegria, diversas brincadeiras,

poucos afazeres e muita diversão. No meio dessa diversão, sem maldade, Juliana conta para as amiguinhas o que presenciou na noite passada.

‒ Você viu fantasmas em tua casa? Como eles são? - pergunta uma

das amigas.

‒ É verdade que eles são todos brancos? - pergunta outra amiga.

‒ Você não ficou com medo?

‒ É verdade que eles brilham como estrelas?

Foram tantas perguntas que Juliana não conseguia responder, todos

perguntavam e queriam a resposta na mesma hora.

‒ Eles são panos brancos e no lugar dos olhos têm dois buracos

enormes?

‒ Qual o tamanho deles?

‒ Eles têm cara de malvados?

‒ Têm dentes grandes?

‒ Eles somem e aparecem em vários lugares?

Quando brigou para tentar responder a primeira pergunta, os pais

estavam partindo para casa, chamando criança por criança para que

nenhuma ficasse esquecida nas plantações. Entristeceu-se rapidamente

ao perceber que a tarde estava chegando ao fim e que não conseguira

contar aos amiguinhos o que tanto queria. Ao subir na carroça, deitou

no colo da mãe, que logo nota a filha chateada, acaricia os cabelos da

menina, olha dentro dos seus olhinhos e pergunta:

‒ Por que a princesa da casa está chateada?

‒ Queria contar para os meus amiguinhos sobre os fantasmas que

vimos ontem, mas ninguém me deixou falar, mamãe.

‒ Então é isso, princesa da mamãe? Sabe filha, tem coisas que a

gente não pode sair espalhando para nossos amiguinhos, temos que

guardar conosco, por mais difícil que seja. Nem todos irão acreditar

no que você diz. O certo é você contar apenas para sua melhor amiga.

Nem sempre contamos tudo da nossa vida aos outros, filha. Algumas

coisas somente nós e Deus precisamos saber.

‒ Então tem coisas que só posso contar ao papai do céu?

‒ Sim, minha filha.

‒ E como conto para ele mamãe?

‒ Em suas orações, antes de dormir, ajoelhe no chão do seu quarto

e conte ao papai do céu, depois ore agradecendo o dia, o alimento, a

bebida... Ore agradecendo por estar viva, minha filha.

‒ A senhora me ensina, mamãe?

‒ É claro, minha princesa. Mamãe te ensina, sim.

Ao voltar para casa, senhor Benedito desce as crianças da carroça,

e solta o cavalo em uma parte do quintal feita para os cuidados dos

animais. Como de costume, o cavalo não estava tranquilo e, bravo,

corre de uma parte para a outra, relinchando assustado com algo que

somente ele viu. As crianças, sem entender o que estava acontecendo,

agarraram-se aos pais. Dona Rosália, aflita, pergunta:

‒ O que está acontecendo com o cavalo, Benedito?

‒ Também não sei, Rosália, mas pretendo descobrir.

O barulho que o cavalo fez foi um convite aos vizinhos para saírem

de suas casas a fim de assistirem ao “festival”.

‒ O que houve com o seu cavalo, vizinho?

‒ Sinceramente, eu não sei. Soltei-o como sempre faço, parece que

está vendo alguma coisa.

‒ Você está dizendo que ele está vendo coisas ruins no quintal?

‒ Não tenho certeza para poder afirmar isso. Mas, meus avós e,

meus pais sempre diziam que animais podem ver criaturas que nós,

seres humanos, não vemos.

‒ O que será que ele vê?

Todos observavam o desespero do cavalo, até que ele arrancou a cerca com o peito, rumando em disparada à rua. Muitos não acreditavam

no que estava acontecendo.

‒ O que aconteceu com o meu menino? - pergunta senhor Benedito, sem entender a cena.

Os vizinhos da casa de parede colada à de dona Rosália não comentavam uma única palavra, somente observavam a cena, assistindo ao

pobre homem correr atrás do seu cavalo, que sangrava muito.

‒ Calma, meu garoto, seu pai está aqui, calma - estas foram as palavras que os vizinhos ouviram o senhor Benedito dizer ao animal.

‒ Alguém pode me explicar o que aconteceu aqui? - pergunta a vizinha que mora na casa da frente à senhor Benedito.

‒ Ninguém vai poder te explicar detalhe algum, dona Carminha.

Não sabemos o que aconteceu. - comentou dona Rosália, abraçando

os filhos.

‒ Estamos em dívida com Deus, vizinhos. Temos que orar mais...

Essas coisas não são normais – comentou dona Carminha.

‒ Concordo plenamente com a senhora – respondeu dona Rosália.

‒ Vamos entrar, já vimos muito por hoje. - comentou o vizinho da

casa de parede colada.

‒ Benedito, vou levar as crianças para dentro – anunciou dona Rosália ao marido que já voltava com o cavalo.

‒ Vou cuidar de alguns ferimentos do meu menino, quando acabar

eu entro – ele informou.

A noite cai, o vento traz um frio e faz um barulho ouvido por todos,

Porém, no céu, estavam as mais belas estrelas, alguns planetas e cometas. Impressionantes eram os vagalumes, que mostravam toda beleza na

escura noite, luzes da direita para a esquerda, da esquerda para a direita,

mais para o alto, mais para abaixo... Era magnífico e deixava qualquer

criança encantada com o que via.

Após algum tempo, senhor Benedito entra em casa e encontra a esposa e as crianças já deitadas. Ao olhar para a parede, observa algumas

sombras passeando, pega o lampião e vai ao quintal buscar água. Ao

baixar o balde no poço, ouve pisadas vindo em sua direção, pega o lampião e ilumina ao seu redor, procurando ver algo. Em um lampejo da

iluminação, observa um vulto que olhava firmemente para ele. Assustado, olha para o vulto, que em segundos desaparece. Senhor Benedito,

dá dois passos adiante e ilumina um pouco mais à frente, mas nada

encontra. Volta para retirar a água do poço, trêmulo, sem saber no que

pensar. Ao entrar em casa, observa sombras diferentes das que havia

visto, algumas que pareciam ter chifres, outras com uma espécie de

um imenso garfo de três pontas nas mãos. Aquelas imagens o deixaram

pálido, não sabia mais o que pensar e como agir. Então, correu para o

quarto e encontrou todos dormindo. Jogou uma esteira no chão com

um lençol por cima e se deitou. As imagens não saíam de sua cabeça.

Senhor Benedito se vê novamente em frente ao poço, uma criatura

com chifres e um imenso garfo vem em sua direção. Desesperado, o

homem tenta encontrar algo para iluminar o local, mas nada encontra.

A criatura caminha calmamente, com passos curtos. Vendo que não

tinha opções, senhor Benedito correu para dentro do milharal. A criatura apenas caminhava, a escuridão reinava no local, e ele, trêmulo, não

conseguia pensar, somente corria quebrando diversos pés de milhos

que havia plantado. Em certo ponto, avistou uma imensa claridade

e, correu até lá, deparando-se com uma imensa fogueira acesa. Olhou

de um lado para o outro até constatar que cinco vultos seguiam seus

rastros. Ao tentar sair do local, foi surpreendido por uma criatura que

o esperava. Já sem saber o que fazer, gritou pela mulher. Os filhos acordaram assustados vendo senhor Benedito se contorcer na esteira.

‒ Mãe, o que está acontecendo com meu pai?

‒ Não sei, Ronaldo. Ele deve estar tendo um pesadelo.

Felipe pula da cama desesperado vendo o contorcionismo do pai e,

começa a chamá-lo.

‒ Acorda pai... Acorda pai...

Senhor Benedito dá um salto, o corpo coberto de suor, a respiração

acelerada.

‒ Benedito, vou pegar um copo de água com açúcar.

‒ Pai, o senhor está bem?

Senhor Benedito respirava assustado. Sentia como se as palavras não

entrassem em seus ouvidos. Após chegar com a água adoçada e uma

toalha, dona Rosália vagarosamente ajuda o marido a tomar a água,

em seguida, começa a passar a toalha sobre o rosto do homem, que

estava coberto de suor. Mais calmo e sem dizer uma única palavra, ele

se deita novamente. Felipe e Júnior deitam ao lado do pai, dando mais

tranquilidade a ele.

O dia amanhece e senhor Benedito dá um pequeno sorriso ao ver os

filhos dormindo ao seu lado.

‒ Que bom que tenho ótimos soldados.

‒ Eles te amam, Benedito.

‒ Deus me deu uma boa família.

‒ O que aconteceu com você? Teve pesadelo?

‒ Rosália, não quero falar sobre isso.

‒ Deus lhe deu boa família e não divide teus problemas com ela.

Veja teus filhos! Estão deitados ao seu lado para demonstrar que não

está sozinho e você simplesmente diz que não quer conversar sobre algo

que assustou a todos da boa família que Deus te deu?

‒ Já disse que não quero comentar sobre isso. Assunto encerrado.

‒ Realmente, Deus te deu uma boa família. Você bebe há anos, prometeu parar e estamos aqui contigo. Já nos deixou faltar alimentos, e

estamos aqui contigo. Nunca sequer foi a uma reunião escolar dos seus

próprios filhos, e estamos aqui contigo. Vai chegar uma hora que tudo

isso vai acabar.

‒ Está me dizendo que vai me deixar?

‒ Estou dizendo para rever seus conceitos, com muita atenção. Vou

buscar o leite, acorde as crianças e as coloque no banho.

Ao sair no quintal, dona Rosália vê o milharal todo percorrido, inú-

meras pegadas, parecia que alguém correra pela plantação durante a

madrugada.

‒ Benedito! Benedito! Venha ver isso.

‒ O que foi, Rosália?

‒ Venha ver isso, rápido!

Quando senhor Benedito sai e dá de frente com a plantação de milharal percorrida, toma um enorme susto.

‒ Meus Deus! Não pode ser.

‒ O que houve com nossa plantação? - pergunta Rosália, ainda sem

entender.

Sem dizer uma palavra, o homem entra pelo caminho percorrido e

segue como se estivesse procurando por algo.

‒ O que procura, Benedito? Por favor, diz alguma coisa...

Ele caminha até o fim do trajeto que era separado pela parede do

vizinho.

‒ Minha nossa! Isso não foi um sonho ruim. Aconteceu!

Voltou pelo mesmo caminho, encontrando a esposa e os filhos em

agonia.

‒ Benedito, o que está acontecendo?

‒ Vá buscar o leite, vou dar banho nas crianças e levá-las à escola.

Quando eu voltar vamos conversar – anunciou senhor Benedito.

‒ Venham, meus filhos, vamos para o banho. Diga-me, Ronaldo,

qual é a ordem para nos banharmos?

‒ Do menor para o maior, pai.

‒ A partir de hoje essa ordem terá uma mudança. Juliana é a menina

da casa, ela terá prioridade. Os meus três rapazinhos continuam do

menor para o maior, combinado?

‒ Sim, senhor. – responderam os três garotos.

Dona Rosália chega com o leite e encontra todos de banho tomado

e um ótimo aroma de café. A mesa feita faz Rosália sorrir; há anos casada com senhor Benedito e ela nunca tinha visto tal feito.

‒ Coloque o leite na mesa, Rosália. Vamos servir as crianças, elas

não podem se atrasar.

Assim que terminaram de tomar o café, senhor Benedito colocou os

filhos na carroça e partiu em direção à escola, as crianças cantarolando,

na divertida rotina do dia a dia. Chegando lá, desceu os filhos da carroça e perguntou:

‒ Regra número um?

‒ Não conversar com estranhos, não aceitar nada de estranhos e

sempre nos mantermos unidos. - os quatro filhos responderam.

‒ Regra número dois?

‒ Obedecer à professora, jamais levantar a voz contra ela, não entrar

nas bagunças que os outros fazem.

‒ Perfeito, meus filhos. Dêem um beijo no papai e vão estudar.

No caminho de volta, senhor Benedito nota o tempo fechar e, apressa

os cavalos, mas em certa parte do percurso começa a chover forte. Como

não havia lugar para se esconder, continua o trajeto e logo avista uma

casa. Por causa da intensidade do temporal, resolveu se esconder lá até

a chuva cessar.

 

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