Na pequena cidade de Resende, interior do Rio de Janeiro, co nhecido por seus canaviais e plantações de café, centenas depessoas trabalhavam arduamente, muitos contavam com a ajuda dospequenos filhos. Várias dessas crianças estavam no trabalho dos paispara ajudá-los e, uma grande maioria para se divertir, subir em árvores,brincar dos famosos piques da época radiando felicidades. As criançasnão tinham conhecimento do que hoje chamamos de televisão, somente de um pequeno rádio a pilha, aquele pequeno rádio era a alegriade muitas famílias. Dizem que os bons tempos não voltam mais, e amesma água não passa debaixo da mesma ponte duas vezes... Como erabom colher frutas fresquinhas, tirar leite da vaca, correr por um imensomundo verde, onde só sabíamos o início de um imenso horizonte.Nas longas estradas de terras, nos grandes rios, nas imensas planta-ções em que diversas vezes encontravam pais desesperados à procurados filhos, ora tão perto do leito que irritavam os pais, ora, tão longeque quando se encontravam era uma alegria única, expressa em umapertado abraço e em inúmeros beijos. A longa caminhada para a escola não desanimava quem tinha sonhos, e muito menos os que tinhamplanos, como tirar os pais daquela vida árdua. Como nem tudo é ruimna vida, nos finais de semana os pais levavam os filhos às feiras, aosribeirões ou as casas de familiares distantes. Acostumados a esses passeios, a família do senhor Benedito viajava quase duas horas em umacarroça com destino à casa da cunhada Roseli, situada na cidade deVolta Redonda. Lugar com mais moradias, luz elétrica e um saneamento de dar inveja a qualquer outro que ali não residisse.Em uma dessas visitas, a pequena Juliana conhece Thaís, dois anosmais velha. No primeiro encontro se tornaram amigas inseparáveis,deixando outras coleguinhas bem enciumadas. Ao longo do dia, asduas amigas construíam casinhas com as palhas dos milhos, pedaços debambu e alguns galhos de árvores. Depois de construir a pequena casinha, era hora de decidir quem iria residir nela. Outra animada festa eracom cabelos de milhos, retalhos de roupas e barros à vontade. Isso nãoimpedia que as demais crianças entrassem e animassem aquela brincadeira pura, sem maldade, onde jogavam barro e, água, umas nas outras,ao ponto de ver aqueles olhinhos brilhando de felicidade. Os sorrisosdefiniam as meninas alegres, demonstravam o tamanho da alegria naquele povoado. Ao entardecer as meninas se reuniram prometendo sever novamente, pois a caminhada para Juliana seria longa, antes mesmo que partisse. Thaís vai até a carroça dos familiares da amiga e pedepara eles voltarem logo. O pai, comovido com o acontecimento, pegaa menina no colo e pergunta:‒ Posso saber que idade tem essa menina linda?‒ Tenho sete anos.‒ E qual é o nome desta linda menina de sete anos?‒ Thaís.‒ Que nome bonito, você já sabe o nome da minha filha?A pequena menina faz movimento com a cabeça, mostrando quesim.‒ E você não vai me dizer o nome dela?‒ Juliana.Ao ouvir o nome da filha dito pela voz meiga da garotinha, começaa girar Thaís, com os braços para o alto, com um imenso sorriso. A alegria é vista a cada giro, tanto do pai de Juliana como de Thaís, que curteo maravilhoso momento. Ao sentir uma leve tontura, senhor Beneditocoloca a pequena garota no chão.‒ Isso é muito gostoso de fazer, o problema é que a tontura persegue. Diz aos risos.‒ Pai, pai, agora é a minha vez!‒ Se teu pai fazer isso novamente não vamos chegar em casa, minhafilha.A pequena menina cruza os braços e faz um biquinho. Para o climanão ficar tenso, a mãe pega a filha e gira a pequenina. Nos braços damãe se vê uma alegria e alguns gritos de encantar multidões.‒ Chega, Juliana, isso é cansativo.‒ Só mais um pouco, mãe.‒ É cansativo, filha, outra hora brincamos novamente. E não adianta reclamar, já deu para matar a vontade, vamos embora porque o caminho é longo.Após ajeitarem tudo e partirem, possível ouvir os gritos de Roselicorrendo atrás da carroça com a mão para cima.‒ O que houve, irmã, aconteceu alguma coisa? Pergunta Rosália,assustada.Ao chegar perto da carroça, Roseli respira fundo e diz:‒ Vocês se esqueceram de levar um pedaço do bolo que fiz.‒ Quer nos matar do coração, Roseli?‒ Quero matar ninguém do coração não, cunhado, apenas não quero que meus sobrinhos deixem de comer aquilo que eles tanto gostam.
‒ Vai acabar deixando-os mal-acostumados.‒ Vou não, maninha. E, mesmo se deixar, são crianças que valemouro.A mãe olha para dois deles, que estão em sono profundo, abraçaFelipe, o mais velho, e comenta:‒ Se algo acontecer comigo ou com o Benedito, jura que vai tomarconta deles?‒ Nada vai acontecer com vocês, mas se alguma coisa acontecerpodem contar comigo.‒ Obrigada, minha irmã, obrigada.‒ Vamos, Rosália, já está ficando tarde – alerta Benedito.Um imenso silêncio toma conta do local. Enquanto a carroça avan-ça, Roseli vai ficando cada vez menor, até desaparecer totalmente davista da irmã. O trajeto, percorrido muitas vezes no escuro, hoje é iluminado pela luz da lua cheia, esplêndido. As crianças dormem com ascanções dos pais durante as duas horas da viagem. Ao retornarem paracasa, senhor Benedito tira as crianças da carroça e as leva para a cama;cansados, o casal faz a mesma coisa. No meio da noite a pequena Juliana acorda e pela claridade do lampião vê algumas sombras passandopela parede. Rapidamente cobre a cabeça e após alguns segundos abreum pequeno vão no cobertor para observar; as sombras continuam apassear, e rapidamente ela cobre a cabeça. O silêncio reinava, até queum dos gatos da casa começou a miar e a pular na cozinha derrubandopanelas e talheres, acordando todas as pessoas, que saltam da cama. Aochegarem à cozinha, observam o gato arrepiado, tentando ferir com asunhas algo que somente ele enxergava.‒ Mãe, o que o Amarelão vê? - pergunta Ronaldo, assustado.‒ Todos vocês voltem para cama, não deveriam ter se levantado.‒ Estou com medo, mãe. - disse a pequena Juliana.‒ Levem todos para o nosso quarto, Rosália. Algo muito estranhoestá acontecendo aqui.‒ Crianças, vamos dormir comigo e com o pai de vocês.Ao voltar do quarto para chamar o marido, a esposa toma um sustoao ver sombras passeando pela parede da cozinha, faz o sinal da cruz epergunta:‒ Que coisas são essas, Benedito?‒ Acredito que sejam coisas sobrenaturais.‒ Nunca vi nada parecido, vamos para o quarto,... As crianças estãocom medo e eu também.
‒ Vamos, sim. - disse o esposo, que não tirava os olhos das sombras.As crianças, umas agarradas às outras, cobertas dos pés à cabeça,tremiam pelo que avistaram.‒ Calma, meus filhos, mamãe e papai estão aqui, nada vai acontecer.‒ Deitem com a gente, mãe, pai, assim vamos nos sentir seguros. -pediu Felipe.‒ Antes de deitarmos vamos rezar para papai do céu nos proteger.Todos se ajoelham com os braços por cima da cama e começam aorar.O senhor é o meu pastor, nada me faltará.Ele me faz repousar em pastos verdejantes.Leva-me para junto das águas de descanso, refrigera-me a alma.Guia-me pelas veredas da justiça, por amor do Seu nome.Ainda que eu ande pelo vale da sombra da morte, não temerei malnenhum, porque Tu está comigo, o teu bordão e o teu cajado me consolam.Preparas-me uma mesa na presença dos meus adversários, unge-me acabeça com óleo, o meu cálice transborda.Bondade e misericórdia certamente me seguirão todos os dias da minhavida, e habitarei na casa do Senhor para sempre, Amém.Ao deitarem, um barulho ensurdecedor vem da cozinha, que parecia ter ido abaixo.‒ Fiquem aqui, vou ver o que aconteceu.Ao chegar à cozinha, senhor Benedito não acredita no que vê, olhatudo à sua volta, procura por alguma coisa que não está ali. Dá algunspassos de volta para o quarto e observa a esposa, aflita. Ela Pergunta:‒ O que aconteceu em nossa cozinha?Senhor Benedito olha para a esposa sem nenhuma resposta.‒ O que houve contigo, homem de Deus? Está me assustando maisainda.Ainda meio abobado pelo que viu, senhor Benedito diz:‒ Não caiu uma agulha sequer na nossa cozinha, tudo está comoestava.A mulher arregala os olhos.‒ Está dizendo que todo aquele barulho não foi na nossa cozinha?Como pode?‒ Não sei, Rosália, parecia que a cozinha tinha vindo chão abaixo,mas está intacta.‒ Que Nossa Senhora Aparecida esteja conosco.
‒ Tentem dormir, vou sentar na cama e ficar mais um tempo acordado atento a outros acontecimentos.
Com o passar das horas, senhor Benedito sente o sono chegar, deitano pequeno espaço reservado a ele e só acorda no dia seguinte, com ocantar dos galos. Olha tudo em volta, levanta da cama e caminha até acozinha, tudo estava do mesmo jeito. Pensativo e incomodado com alguma coisa, corre até o banheiro, mas tudo estava como havia deixado.“Não é possível, o que causou todo aquele barulho?”Ao olhar para o pequeno corredor da casa, lembra que não observouo quarto das crianças e segue desesperado, pensando no pior. Chegando lá, encontra tudo do mesmo jeito que as crianças deixaram e, suspira aliviado. Ao se virar de volta, toma um susto imenso!‒ Quer me matar, Rosália?‒ Desculpa, não foi a minha intenção, apenas queria saber se vaibuscar o leite ou quer que eu vá.‒ Eu vou, estava observando se foi em alguma outra parte da casatodo aquele barulho.‒ Vamos esquecer isso, será melhor para as crianças.‒ Tem razão. Vamos colocar um ponto final nisso, vou buscar oleite.Chegando em seu quarto, dona Rosália abre um imenso sorriso aover os filhos dormindo e, com um aperto no coração, diz:‒ Crianças, acordem. Hora de ir para a escola.‒ Só mais um pouquinho, mãe – pede Felipe.‒ Vocês têm um grande compromisso com o colégio. Eu e o pai devocês queremos que conquistem o que não conquistamos, que tenhamuma vida digna, que possam dar a seus filhos o que não demos a vocês,por isso peço que estudem. Sem os estudos não somos ninguém. Nãodecepcionem pessoas que tanto lutam por vocês, como o bom pai queDeus lhes deu.Todos eles levantam e abraçam a mãe.‒ Nós não vamos decepcionar vocês, podem acreditar. - disse Felipe.‒ Que bom ouvir isso. Espero que levem estas palavras com vocêspor toda vida, porque em algum lugar do trajeto elas poderão cair ealguns se esquecerem de pegá-las de volta.‒ Isso jamais vai acontecer, mãe, eu te prometo. - disse Ronaldo,com lágrimas nos olhos.‒ O mundo lá fora é terrível e cruel, meus filhos... Quando estiverem grandes vão entender o que estou falando. Agora, todos para obanho na ordem de sempre, do menor para o maior, Júnior, Juliana,Ronaldo e Felipe.Enquanto as crianças se aprontam para a escola, chega o pai com opão e o leite.‒ Está tudo aqui, Rosália, depois que as crianças lancharem, voulevá-las à escola e depois nos encontraremos na fazenda do senhor João.‒ Estarei lá, não demore.Assim que senhor Benedito deixa os filhos na porta da escola, faz apergunta do dia a dia:‒ Regra número um?‒ Não conversar com estranhos, não aceitar nada de estranhos esempre nos manter unidos. - os quatro filhos respondem.‒ Que maravilha! Meio-dia papai vem buscar vocês. Estudem.Subindo na carroça, senhor Benedito partiu em direção à fazendaonde a esposa o esperava. Antes de chegar ao destino, parou em umbarzinho.‒ Me dá uma branquinha, senhor Joaquim.‒ O senhor mesmo não disse que vai parar de beber?‒ Estou parando, tomando em menor quantidade.‒ Isso não quer dizer que o senhor parou.‒ Me serve uma logo e coloca na conta, minha esposa me espera.O dono do bar serve senhor Benedito, faz um sinal com a cabeçae, diz:‒ O senhor não tem jeito mesmo. E os seus filhos, estão bem?‒ Estão ótimos. Acabei de deixá-los na escola.‒ São boas crianças, dê a eles um futuro brilhante, conquiste paraeles o que ainda não conquistou, esteja sempre ao lado deles.‒ O senhor acha que não estou?‒ Eu não acho, tenho certeza, pois o pai que deseja o bem de umfilho não valoriza mais a bebida do que o próprio filho.‒ Olha lá como o senhor fala comigo, eu quero respeito. Trabalhodia e noite quase como um escravo e o senhor quer me dar lição demoral?‒ Não, senhor Benedito, não estou lhe dando lição de moral, apenastentando fazer que entenda que seu tempo acabou, você já viveu o quetinha de viver, se divertiu, namorou, bebeu... Agora está na hora deviver para seus filhos.
‒ Tuas palavras me ofenderam, senhor Joaquim. Final do mês acertoo que devo, e nunca mais piso no teu estabelecimento.‒ Se me interpretou mal,... me desculpa, não era a minha intenção.Apenas queria que o senhor...‒ Não diga mais nada, por favor. Já disse o bastante por hoje.Ao beber o restante da cachaça peito a dentro, senhor Benedito saido estabelecimento sem dirigir uma única palavra ao proprietário.“És um homem muito bom, Benedito, pena que a bebida não deixao senhor ser quem és”.Chegando à fazenda, ele logo vai ao encontro da esposa, que, acostumada com o cheiro da bebida, indaga:‒ Andou bebendo, Benedito. Não jurou a mim e às crianças que iaparar?‒ Só bebi uma dose, pode ficar despreocupada.‒ Está mentindo para tua família. Acha isso correto?‒ Aqui não é lugar para uma discussão, estamos trabalhando. Ouquer ver teus filhos morrerem de fome?‒ Vira essa boca pra lá, homem. Enquanto eu viver isso não vaiacontecer.‒ Então vamos trabalhar, não podemos perder esse emprego, não seencontra trabalho em fazenda alguma da região.‒ Em casa terá que me dar uma boa explicação.Sem mais nenhum comentário, ambos pegam no batente. O trabalho é pesado e faz as horas passarem, deixando a impressão que odia voou. Na pausa para o almoço, o senhor Benedito pega a carroça evai buscar os filhos na escola. No caminho passa novamente pelo bar,pede uma dose da “boa” e continua seu trajeto. No percurso de volta,animado com a cantoria das crianças, observa seus filhos e se recordado seu tempo. Sem que nenhum dos filhos notasse, algumas lágrimasescorrem em seu rosto, lentamente ele passa a mão de forma discreta esegue o seu caminho.À tarde para a pequena Juliana era só alegria, diversas brincadeiras,poucos afazeres e muita diversão. No meio dessa diversão, sem maldade, Juliana conta para as amiguinhas o que presenciou na noite passada.‒ Você viu fantasmas em tua casa? Como eles são? - pergunta umadas amigas.‒ É verdade que eles são todos brancos? - pergunta outra amiga.‒ Você não ficou com medo?
‒ É verdade que eles brilham como estrelas?Foram tantas perguntas que Juliana não conseguia responder, todosperguntavam e queriam a resposta na mesma hora.‒ Eles são panos brancos e no lugar dos olhos têm dois buracosenormes?‒ Qual o tamanho deles?‒ Eles têm cara de malvados?‒ Têm dentes grandes?‒ Eles somem e aparecem em vários lugares?Quando brigou para tentar responder a primeira pergunta, os paisestavam partindo para casa, chamando criança por criança para quenenhuma ficasse esquecida nas plantações. Entristeceu-se rapidamenteao perceber que a tarde estava chegando ao fim e que não conseguiracontar aos amiguinhos o que tanto queria. Ao subir na carroça, deitouno colo da mãe, que logo nota a filha chateada, acaricia os cabelos damenina, olha dentro dos seus olhinhos e pergunta:‒ Por que a princesa da casa está chateada?‒ Queria contar para os meus amiguinhos sobre os fantasmas quevimos ontem, mas ninguém me deixou falar, mamãe.‒ Então é isso, princesa da mamãe? Sabe filha, tem coisas que agente não pode sair espalhando para nossos amiguinhos, temos queguardar conosco, por mais difícil que seja. Nem todos irão acreditarno que você diz. O certo é você contar apenas para sua melhor amiga.Nem sempre contamos tudo da nossa vida aos outros, filha. Algumascoisas somente nós e Deus precisamos saber.‒ Então tem coisas que só posso contar ao papai do céu?‒ Sim, minha filha.‒ E como conto para ele mamãe?‒ Em suas orações, antes de dormir, ajoelhe no chão do seu quartoe conte ao papai do céu, depois ore agradecendo o dia, o alimento, abebida... Ore agradecendo por estar viva, minha filha.‒ A senhora me ensina, mamãe?‒ É claro, minha princesa. Mamãe te ensina, sim.Ao voltar para casa, senhor Benedito desce as crianças da carroça,e solta o cavalo em uma parte do quintal feita para os cuidados dosanimais. Como de costume, o cavalo não estava tranquilo e, bravo,corre de uma parte para a outra, relinchando assustado com algo quesomente ele viu. As crianças, sem entender o que estava acontecendo,agarraram-se aos pais. Dona Rosália, aflita, pergunta:
‒ O que está acontecendo com o cavalo, Benedito?‒ Também não sei, Rosália, mas pretendo descobrir.O barulho que o cavalo fez foi um convite aos vizinhos para saíremde suas casas a fim de assistirem ao “festival”.‒ O que houve com o seu cavalo, vizinho?‒ Sinceramente, eu não sei. Soltei-o como sempre faço, parece queestá vendo alguma coisa.‒ Você está dizendo que ele está vendo coisas ruins no quintal?‒ Não tenho certeza para poder afirmar isso. Mas, meus avós e,meus pais sempre diziam que animais podem ver criaturas que nós,seres humanos, não vemos.‒ O que será que ele vê?Todos observavam o desespero do cavalo, até que ele arrancou a cerca com o peito, rumando em disparada à rua. Muitos não acreditavamno que estava acontecendo.‒ O que aconteceu com o meu menino? - pergunta senhor Benedito, sem entender a cena.Os vizinhos da casa de parede colada à de dona Rosália não comentavam uma única palavra, somente observavam a cena, assistindo aopobre homem correr atrás do seu cavalo, que sangrava muito.‒ Calma, meu garoto, seu pai está aqui, calma - estas foram as palavras que os vizinhos ouviram o senhor Benedito dizer ao animal.‒ Alguém pode me explicar o que aconteceu aqui? - pergunta a vizinha que mora na casa da frente à senhor Benedito.‒ Ninguém vai poder te explicar detalhe algum, dona Carminha.Não sabemos o que aconteceu. - comentou dona Rosália, abraçandoos filhos.‒ Estamos em dívida com Deus, vizinhos. Temos que orar mais...Essas coisas não são normais – comentou dona Carminha.‒ Concordo plenamente com a senhora – respondeu dona Rosália.‒ Vamos entrar, já vimos muito por hoje. - comentou o vizinho dacasa de parede colada.‒ Benedito, vou levar as crianças para dentro – anunciou dona Rosália ao marido que já voltava com o cavalo.‒ Vou cuidar de alguns ferimentos do meu menino, quando acabareu entro – ele informou.A noite cai, o vento traz um frio e faz um barulho ouvido por todos,Porém, no céu, estavam as mais belas estrelas, alguns planetas e cometas. Impressionantes eram os vagalumes, que mostravam toda beleza naescura noite, luzes da direita para a esquerda, da esquerda para a direita,mais para o alto, mais para abaixo... Era magnífico e deixava qualquercriança encantada com o que via.Após algum tempo, senhor Benedito entra em casa e encontra a esposa e as crianças já deitadas. Ao olhar para a parede, observa algumassombras passeando, pega o lampião e vai ao quintal buscar água. Aobaixar o balde no poço, ouve pisadas vindo em sua direção, pega o lampião e ilumina ao seu redor, procurando ver algo. Em um lampejo dailuminação, observa um vulto que olhava firmemente para ele. Assustado, olha para o vulto, que em segundos desaparece. Senhor Benedito,dá dois passos adiante e ilumina um pouco mais à frente, mas nadaencontra. Volta para retirar a água do poço, trêmulo, sem saber no quepensar. Ao entrar em casa, observa sombras diferentes das que haviavisto, algumas que pareciam ter chifres, outras com uma espécie deum imenso garfo de três pontas nas mãos. Aquelas imagens o deixarampálido, não sabia mais o que pensar e como agir. Então, correu para oquarto e encontrou todos dormindo. Jogou uma esteira no chão comum lençol por cima e se deitou. As imagens não saíam de sua cabeça.Senhor Benedito se vê novamente em frente ao poço, uma criaturacom chifres e um imenso garfo vem em sua direção. Desesperado, ohomem tenta encontrar algo para iluminar o local, mas nada encontra.A criatura caminha calmamente, com passos curtos. Vendo que nãotinha opções, senhor Benedito correu para dentro do milharal. A criatura apenas caminhava, a escuridão reinava no local, e ele, trêmulo, nãoconseguia pensar, somente corria quebrando diversos pés de milhosque havia plantado. Em certo ponto, avistou uma imensa claridadee, correu até lá, deparando-se com uma imensa fogueira acesa. Olhoude um lado para o outro até constatar que cinco vultos seguiam seusrastros. Ao tentar sair do local, foi surpreendido por uma criatura queo esperava. Já sem saber o que fazer, gritou pela mulher. Os filhos acordaram assustados vendo senhor Benedito se contorcer na esteira.‒ Mãe, o que está acontecendo com meu pai?‒ Não sei, Ronaldo. Ele deve estar tendo um pesadelo.Felipe pula da cama desesperado vendo o contorcionismo do pai e,começa a chamá-lo.‒ Acorda pai... Acorda pai...Senhor Benedito dá um salto, o corpo coberto de suor, a respiraçãoacelerada.
‒ Benedito, vou pegar um copo de água com açúcar.‒ Pai, o senhor está bem?Senhor Benedito respirava assustado. Sentia como se as palavras nãoentrassem em seus ouvidos. Após chegar com a água adoçada e umatoalha, dona Rosália vagarosamente ajuda o marido a tomar a água,em seguida, começa a passar a toalha sobre o rosto do homem, queestava coberto de suor. Mais calmo e sem dizer uma única palavra, elese deita novamente. Felipe e Júnior deitam ao lado do pai, dando maistranquilidade a ele.O dia amanhece e senhor Benedito dá um pequeno sorriso ao ver osfilhos dormindo ao seu lado.‒ Que bom que tenho ótimos soldados.‒ Eles te amam, Benedito.‒ Deus me deu uma boa família.‒ O que aconteceu com você? Teve pesadelo?‒ Rosália, não quero falar sobre isso.‒ Deus lhe deu boa família e não divide teus problemas com ela.Veja teus filhos! Estão deitados ao seu lado para demonstrar que nãoestá sozinho e você simplesmente diz que não quer conversar sobre algoque assustou a todos da boa família que Deus te deu?‒ Já disse que não quero comentar sobre isso. Assunto encerrado.‒ Realmente, Deus te deu uma boa família. Você bebe há anos, prometeu parar e estamos aqui contigo. Já nos deixou faltar alimentos, eestamos aqui contigo. Nunca sequer foi a uma reunião escolar dos seuspróprios filhos, e estamos aqui contigo. Vai chegar uma hora que tudoisso vai acabar.‒ Está me dizendo que vai me deixar?‒ Estou dizendo para rever seus conceitos, com muita atenção. Voubuscar o leite, acorde as crianças e as coloque no banho.Ao sair no quintal, dona Rosália vê o milharal todo percorrido, inú-meras pegadas, parecia que alguém correra pela plantação durante amadrugada.‒ Benedito! Benedito! Venha ver isso.‒ O que foi, Rosália?‒ Venha ver isso, rápido!Quando senhor Benedito sai e dá de frente com a plantação de milharal percorrida, toma um enorme susto.‒ Meus Deus! Não pode ser.
‒ O que houve com nossa plantação? - pergunta Rosália, ainda sem
entender.Sem dizer uma palavra, o homem entra pelo caminho percorrido esegue como se estivesse procurando por algo.‒ O que procura, Benedito? Por favor, diz alguma coisa...Ele caminha até o fim do trajeto que era separado pela parede dovizinho.‒ Minha nossa! Isso não foi um sonho ruim. Aconteceu!Voltou pelo mesmo caminho, encontrando a esposa e os filhos emagonia.‒ Benedito, o que está acontecendo?‒ Vá buscar o leite, vou dar banho nas crianças e levá-las à escola.Quando eu voltar vamos conversar – anunciou senhor Benedito.‒ Venham, meus filhos, vamos para o banho. Diga-me, Ronaldo,qual é a ordem para nos banharmos?‒ Do menor para o maior, pai.‒ A partir de hoje essa ordem terá uma mudança. Juliana é a meninada casa, ela terá prioridade. Os meus três rapazinhos continuam domenor para o maior, combinado?‒ Sim, senhor. – responderam os três garotos.Dona Rosália chega com o leite e encontra todos de banho tomadoe um ótimo aroma de café. A mesa feita faz Rosália sorrir; há anos casada com senhor Benedito e ela nunca tinha visto tal feito.‒ Coloque o leite na mesa, Rosália. Vamos servir as crianças, elasnão podem se atrasar.Assim que terminaram de tomar o café, senhor Benedito colocou osfilhos na carroça e partiu em direção à escola, as crianças cantarolando,na divertida rotina do dia a dia. Chegando lá, desceu os filhos da carroça e perguntou:‒ Regra número um?‒ Não conversar com estranhos, não aceitar nada de estranhos esempre nos mantermos unidos. - os quatro filhos responderam.‒ Regra número dois?‒ Obedecer à professora, jamais levantar a voz contra ela, não entrarnas bagunças que os outros fazem.‒ Perfeito, meus filhos. Dêem um beijo no papai e vão estudar.No caminho de volta, senhor Benedito nota o tempo fechar e, apressaos cavalos, mas em certa parte do percurso começa a chover forte. Comonão havia lugar para se esconder, continua o trajeto e logo avista umacasa. Por causa da intensidade do temporal, resolveu se esconder lá atéa chuva cessar.
Ao entrar nessa casa, senhor Benedito sentiu uma sensa-ção de incômodo e ficou arrepiado. Tinha plena certeza que alguém oobservava. Repentinamente, levou um empurrão que o jogou ao chão.Levantou-se rápido, tentando achar o autor da brincadeira de mau gosto.Olhou para os quatro cantos da casa e nada viu. Comentou:‒ Quem foi o engraçadinho que me empurrou? Apareça e vamoslutar como homens.Ao terminar de dizer a frase, levou uma rasteira que novamente ojogou no chão, formado por terra fofa. Não via ninguém, nem identificava pegadas pela terra. Ao tentar se levantar, sentiu como se alguémestivesse sentando em seu peito e, só conseguia mexer as pernas. Sentiuuma mão em sua garganta que o sufocava e, em seguida, vários socos.Tantos que senhor Benedito não aguentou e desmaiou.&
‒ Vamos, Benedito, vamos sair daqui. - pede Rosália, puxando oesposo pelos braços.Sem acreditar no que estava acontecendo, o casal parte para a casa.O que fazer? Como pagar as dívidas? Como sustentar as crianças?Como sobreviver? Essas perguntas não foram ouvidas, mas podiam serapreendidas no olhar do humilde casal. Os quilômetros ficaram maislongos, não se ouvia nenhuma palavra, apenas o som que a carroça e oscavalos faziam. Por algum tempo, o casal permaneceu de boca fechada,até que Benedito quebrou o silêncio.‒ Deve estar me odiando, Rosália.‒ Quando nos casamos, jurei estar contigo, na alegria, na tristeza,na saúde e na doença, até que a morte nos separe.‒ Ainda me ama?‒ Não estamos no melhor momento para falar de amor, Benedito.‒ Sei que este não é o moment
O marido abraça a esposa e logo em seguida dá um beijo em suaboca.‒ Obrigado, Rosália, por tanto me apoiar nas horas que mais preciso. Você, sempre está comigo, é a esposa que sempre sonhei.‒ É um bom homem, Benedito, tem uma família que o ama, isso ésinal que recebemos amor. Vou descansar, estou exausta.O dia amanheceu, Rosália levantou para preparar o café, lavar aslouças e arrumar a mesa. Ao pegar o pote de açúcar, notou que estavavazio e se lembra de que preparou o arroz-doce usando tudo o que tinha. Ela acordou o esposo para comprar açúcar e buscar o leite, depoisdespertou as crianças para que tomasse banho. Como já era de costumebuscar o leite todos os dias, Benedito foi até a fazenda. A notícia de queperdera o emprego se espalho rapidamente, e lhe avisaram
Após Cezar passar o valor dos dois produtos, Benedito colocou amão no bolso, puxou umas notas guardadas e pagou o comerciante.Retornando com o troco, o comerciante ouve as frias palavras do cliente revoltado.‒ De hoje em diante eu não piso mais aqui. Seu produto contémouro. Sou um homem pobre, mas digno e honesto. Pelo que acabei dever, aqui não é lugar para homens como eu. Passar bem.‒ Benedito, o senhor tem de entender que...‒ Por favor, a partir de hoje eu estou morto e enterrado para o senhor, assim como senhor vai estar morto e enterrado para mim.Benedito colocou a filha na carroça e partiu para casa. Durante todoo trajeto o cavalo que havia visto de manhã o acompanhava.‒ Olha, filha, que cavalo bonito.‒ Onde, papai?‒ Ao lado dos nossos.‒ Papai, só vejo os dois cavalos que puxam a carroça.Pelo fato de
‒ Tem o dom de fazer milagres?‒ A única pessoa que pode curar sua mãe é você mesmo, Benedito.‒ Sabe até o meu nome?‒ Sei seu passado, seu presente e seu futuro.‒ Como posso curar minha mãe?‒ Por amor, Benedito, somos capazes de matar, roubar, nos entregar,nos vender... Olho para você e vejo um garoto fraco, medroso, à esperade um milagre de um Deus para o qual se diz temente. Acontece queeste Deus o abandonou. Onde Ele está, quando mais precisa dele? Porque Ele não aceita suas orações? Dizem que este Deus é amor, masonde se encontra esse amor quando mais se precisa dele? Por que elenão está aqui no meu lugar tendo esta conversa com você? Entenda queeste Deus a quem teme é mitologia. O único poderoso na realidade soueu, que estou aqui trazendo a cura de sua m&at
‒ Então vamos colocar os equipamentos na carroça e partir. O diahoje promete.Enquanto a família saía para se divertir, senhor Benedito não conseguia repousar, totalmente perdido na missão para a qual foi designado.Estava agoniado em saber que teria que matar um homem que tantoo ajudou. Com todas aquelas perturbações na mente, caminhava emcírculos pelo quarto tentando encontrar respostas, até ser interrompidopor um médico, que entrou sem bater na porta.‒ Pelo que vejo, o senhor está impaciente. Algum problema?‒ Desculpe-me, senhor, estou desempregado, com filhos, e esposapara alimentar. O senhor me entende?‒ Tanto entendo que digo que não é por este motivo que está agitado dessa forma.‒ Posso garantir ao senhor...‒ A dúvida que tanto te perturba é, se deve matar ou n&atil
‒ Nossa senhora, que história horrível! – comentou Rosália.‒ Roseli, posso fazer uma pergunta? – questionou Benedito.‒ Pergunte, cunhado.‒ Você chegou a ver as mãos da menina?‒ Sim, Benedito, parecia que as mãos que a tocaram eram de ferrosem graus elevadíssimos de calor. Só você vendo para avaliar.‒ Melhor encerrarmos o assunto. Juliana, sua amiguinha mudou decidade e vocês não vão poder brincar mais, o bairro da titia é cheio degarotas da sua idade, todas querendo uma nova amiga para se divertir.‒ Eu estou com saudades da Thaís, papai.‒ Eu sei que está, princesa, assim como ela deve estar de você, só queagora ela foi morar em uma cidade muito distante daqui.‒ Ela vai voltar?‒ Como ela foi morar em uma cidade distante, acho difícil, minhafilha
Sozinho na cozinha, Benedito fechou a cara, ainda movido pela inveja que sentia pelos bens do amigo. Respirou fundo ao saber que afamília por parte de sua esposa está crescendo, enquanto ele está cada vez mais endividado. Evitou deixar que o ódio chegasse ao seu coraçãopara não afetar o jantar, comida feita sem amor é comida sem sabor.Preparou o arroz, a salada, o peixe no forno com camarão e utilizou orestante da gelatina que sobrou para a sobremesa. Serviu o jantar, quefoi aprovado por toda a família. O peixe com camarão estava tão gostoso que não sobrou nada.Após algumas horas de conversa, Antônio se retirou para tomar umbanho e dormir; seu dia começava cedo. Rosália colocou as crianças nacama e todos resolveram se retirar, pois a viagem trouxera o cansa