Capítulo Treze
Filho do Meio
Quando ouvia as pessoas dizendo que mentira tem perna curta, sempre achava engraçado. Mentira, propriamente dita, não tem perna, não tem corpo físico. Entendia, claro, que estavam dizendo que ela nunca ia muito longe, apenas de pessoas de perna curta terem a mesma habilidade de caminhar, só dão passadas menores.
A questão é que nunca me preocupei muito. No orfanato, mentia na cara dura sobre todas as besteiras que aprontava, mas depois que saí das amarras daquele lugar e fiquei rodeada de pessoas que não me julgavam e em quem eu confiava ardentemente, a mentira simplesmente esvaiu-se de mim. Não que não contasse uma mentirinha aqui e outra ali, isso já fazia parte da minha formação porque havia passado a infância inventando historietas para não apanhar, mas nada muito complexo. A omissão, em contrapartida, acontecia com mais frequência; Lisbela e Bianca não precisav
- Eu adoro boliche! - Bia riu quando contei para onde Ian havia me levado. Estava arrumada e com a bolsa atravessada em seu corpo, pronta para sair para mais uma maratona de caridade aos domingos. Aproximou-se de mim, no sofá, e me deu um beijo na bochecha. - Depois você me conta tudo, sim? - Pediu. Despediu-se de Lisbela, que estava distraida com um paddleball, com mais um beijo e saiu, enquanto eu voltava a narrar meu encontro.- Bom, e aí eu achei que ele era o Investidor - senti minhas bochechas corarem com a informação que eu ainda não tinha dividido com ninguém e Lis errou a bolinha, deixando-a cair pendurada pelo elástico ao mesmo tempo em que sua boca caia.- Como é que é? - Perguntou. - Como assim? Por quê?Apertei meus lábios um contra o outro, contendo o sorriso. Estava um pouco envergonhada da minha teoria ruim e fraca, mas querendo acreditar nela com todas as minhas fo
Capítulo QuinzePier dos PescadoresDois dias depois da minha ida à Praia do Gonzaguinha atrás do endereço do novo bordel, ainda não tinha voltado a campo. Sabia que não poderia demorar muito para voltar, mas estava tomando um cuidado extra para que não ficasse visada como a mulher que estava sempre por lá e acabar chamando atenção demais, como minha primeira vez atrás desses cafetões.Com isso, tinha tirado o tempo para comprar minha moto - recém adquirida e brilhando na garagem do prédio - e acalmar meu coração. Bianca, que estava fazendo um papel quase de psicóloga quando ouvia minhas empreitadas, estava me convencendo de nada adiantava para Estela que eu fosse com sede demais ao pote e acabasse morrendo ao inv&eacut
Capítulo DezesseisCorrendo contra o tempoO homem se aproximava vagarosamente e seu olhar estava diretamente em mim, com um sorriso leve no rosto. Ele era alto, bem apessoado, bem vestido. Branco, olhos grandes e barba modelada. Minha cabeça girou e eu me peguei lembrando da mensagem que enviei para o Investidor, falando que estaria no pier para o encontro com as meninas do bordel e me perguntei se seria possível que ele viesse ao nosso encontro para comemorar aquela pequena vitória.Ele estava se aproximando e eu precisava decidir o que iria fazer. Deveria ficar e esperar para entender o que estava acontecendo? Deveria correr e me esconder para esperar as mulheres de um lugar mais seguro? Deveria torcer que aquele homem fosse o meu Investidor e que nós pudéssemos conversar cara a cara pela primeira vez?Tive alguns segundos para de
Capítulo Dezessete Traição “Obrigada pelo presente :) Posso te ligar?” Enviei a resposta, tentando manter o sangue frio o suficiente para decidir quais emoções eu poderia deixar transparecer para o Investidor naquele momento. Estava grata, sem dúvidas, por seu apoio quase incondicional e por estar cuidando de mim com aquele afinco impressionante. Porém, também me sentia intimidada por sua personalidade misteriosa e por todas as informações que ele sempre parecia ter. Ele tinha salvado seu número como IM e era a única informação que tinha no novo aparelho. Tinha perdido todos os meus memes, fotos, conversas e contatos. Meu número, também, estava mudado e eu demoraria umas boas semanas antes que realmente pudesse dizer que tinha decorado. A parte ruim é que eu não sabia os números de Lisbela e Bianca e não poderia pedir elas para passarem no merc
Capítulo Dezoito Princesinha Minha cabeça parecia que iria explodir e todas as minhas juntas estavam gritando por atenção. Tinha algo de errado no meio das minhas costas, subindo até meus ombros e meus braços… Eu não conseguia mexer meus braços. Meu coração acelerou e os pulmões pediram por mais ar. Abri meus olhos, mas estava tão escuro quanto estivera enquanto fechados; tinha algo obstruindo minha visão. Balancei meus braços, tentando descobrir o que estava acontecendo e senti algo áspero e bruto arranhar meu pulso. Seriam cordas me mantendo amarrada? Tentei esticar minhas pernas e, apesar de conseguir, senti resistência. Havia outra corda amarrando meus tornozelos um no outro, mas não parecia presa a qualquer outro fator externo, minhas mãos por outro lado… Tateei o que conseguia e senti uma madeira. Um pé de mesa ou de cama, para que eu estivesse jogada ao c
Capítulo Dezenove Retorno Fatal Horas longas entre o cansaço, a dor e a humilhação se passaram. Tinha me encolhido ao pé da cama aonde minhas mãos estavam amarradas para aliviar a dor dos meus braços, os cortes em meus pulsos tinham se intensificado, mesmo comigo tentando não me mexer muito para não me machucar mais. Meus lábios estavam ficando ressecados e pequenas feridas de pele solta começavam a me incomodar. No fundo da minha mente, uma dor de cabeça incômoda me informava que eu estava passando dos limites de fome que meu corpo aguentava sem seqüelas. Não tinha como adivinhar as horas, mas, pelo meu relógio biológico, diria que aquela era a minha segunda manhã no cativeiro. Tentava não pensar no que as minhas irmãs estariam passando ao não ter notícias minhas, toda a concentração que eu podia juntar estava em uma só coisa. - Por favor, não me deixa agora -
Capítulo Vinte Talvez um dia Enquanto eu corria para o posto de gasolina, o carro explodiu, emanando uma onda de força que me jogou no chão. Foi quando meu estômago reclamou de tudo e eu vomitei bile, porque não havia nada mais para colocar para fora. Sentada no chão, em pânico, comecei a entender o que tinha acontecido. Ao sentir meu poder voltando para mim, perdi o medo e a insegurança e encarei o desejo de vingança com toda a força que poderia haver. Algo tinha quebrado dentro de mim porque cruzei o único limite que eu não tinha cruzado ainda, mesmo com todas as ameaças que eu havia passado. Tinha matado uma pessoa. O carro estava queimando não muito longe de mim, meu ouvido estava meio abafado por conta do barulho da explosão, já não via mais os restos mortais de Ivan se debatendo porque o fogo consumia tudo à sua vontade. Sentia-o em meus olhos, voltando pa
Capítulo Vinte e UmAtrasadaOs dias que se seguiram à minha fuga foram em total reclusão. Mal saí da cama nos primeiros dois dias, depois me mudei para o sofá, aonde poderia ver TV e tentar afastar meus pensamentos nefastos.Nathália tinha começado a trabalhar conosco e fazia tudo para mim. Nos conhecíamos muito pouco, mas ela se sentia grata à mudança em sua vida e queria ajudar de alguma forma, então era ela que estava me coordenando como se eu fosse um fantoche. “Sra. Tainá, por que não come esse mingau?”, “Sra. Tainá, suas amigas já vão chegar, por que não toma um banho?”. Sentia que ela estava falando comigo como fazia com a própria filha, mas não me importei. Eu precisava de algo assim porque por mim, tinha estacionado.<