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Havia mais de seis meses que eu me mudara para o pequeno apartamento do subúrbio. Enquanto fazia a limpeza e arrumava a mobília, pintura e outros afazeres, minha mente permanecera ocupada; depois, quando precisei entregar-me ao embalo da vida real, a dureza da minha decisão aparecia com a força devastadora das necessidades prementes. Eu precisava comer... no início comia na rua, mas o dinheiro ia se acabando e não havia reposição. Arrumar a casa e lavar a roupa tornou-se também um martírio que, somado à obrigação de procurar um emprego mudou totalmente a minha vida. Num piscar de olhos passei de moço rico e acostumado a mordomias, a ter que cuidar de mim mesmo com todas as implicações decorrentes de tal tarefa. E como eram difíceis essas tarefas ...

Ainda não arranjara o que fazer e isso, sem dúvida, constituía-se em uma grande tortura para mim. Não podia conceber uma derrota, uma volta prematura para casa. Sofrer a angústia de ver Junior com o sorriso cínico de zombaria e escárnio nos lábios, arqueando as sobrancelhas como a dizer: “Não falei que você não conseguiria”? Nesse período visitei três vezes minha família; visita rápida apenas para dizer alô. Voltava sempre com algum bolo ou torta que aplacaria meu apetite por alguns dias, mas o coração vinha constrangido por toda a angústia que me consumia.

Minha rotina agora consistia em sair cedo, comprar o jornal, sentar-me em algum cantinho tranquilo e procurar anúncios de emprego nos classificados. Marcava os que eu julgava interessantes e ia à procura.

Submeti-me a inúmeras entrevistas, mas a maioria mandava-me aguardar ou então desenganavam logo devido à minha pouca experiência, além do fato que depunha contra mim de nunca ter trabalhado até os trinta anos.

Também não quis usar influência ou qualquer privilégio de algum amigo de meu falecido pai. Queria vencer por mim mesmo, mas o tempo ia passando e nada de emprego... e com isso a desilusão pouco a pouco se instalou em meu íntimo... sentia-me deprimido e isto não era bom! Também a solidão fazia seus estragos! Pela primeira vez experimentava a sensação de que apesar dos trinta anos ainda não amadurecera completamente! Entretanto tentava manter uma postura forte, com ânimo duvidoso, mas que no fundo me mantinha preso ao ego.  Na verdade, eu estava bem mais próximo a um menino carente, cheio de “grilos” e medos, querendo voar alto, mas com as asas emperradas pela minha própria falta de habilidade no trato com a vida real; não progredia e achava-me na iminência de um surto psicótico de resultados imprevisíveis... era uma tortura passar os dias num marasmo meio doentio, atanazado pela solidão estúpida que me envolvia espremendo-me, tirando o suco da minha alma.

O apartamento ficava em um subúrbio populoso, porém com certa qualidade de vida. Era um bairro de classe média baixa, mas o sentido comunitário predominava e havia bastante solidariedade entre os moradores, resguardando-se, claro, os parâmetros advindos da sociedade moderna.

Mas eu não me sentia bem ali! Acho que o pior era mesmo a solidão, visto que minha natureza arredia e introvertida, encerrava uma grande dificuldade em fazer amizades. Mesmo assim consegui enxergar certo aconchego entre as pessoas, embora me mantivesse afastado delas e concluí que essas comunidades mais proletárias são, também, as mais solidárias com o seu próximo, mesmo que a situação econômica da maioria seja crítica, fato comum entre os moradores do subúrbio.

De um jeito ou outro me conservava afastado sem fazer qualquer amizade! Porém, se evitei o contato com as pessoas, foi mais por timidez do que por preconceito! Como nas comunidades de boa-vizinhança, em pouco tempo eu já era reconhecido pelos moradores que me cumprimentavam com alegria sempre que cruzavam comigo. Contudo eu permanecia triste e casmurro e nem percebia os avisos que o “céu” me enviava. E veio o Natal e o Ano Novo e eu atravessei essas datas encerrado na minha prisão! Nem fui à casa de minha mãe... passei sozinho mesmo!

Ah, quantas vezes eu chorei!... Geralmente esgotava o meu tempo sem conversar com qualquer pessoa, a não ser comercialmente nos bares e restaurantes, nas bancas de jornal ou outros estabelecimentos comerciais... ou nas entrevistas que fazia.

Muitas vezes, quando voltava de minhas frustradas buscas pelo emprego pegava um transporte e ia até o fim da linha às vezes em outros municípios vizinhos e ficava sentado em algum canto, sozinho, esperando pela condução que me levaria de volta. Essa rotina sem sentido ia, aos poucos, empurrando-me para a depressão e tirando-me totalmente a vontade de viver.

Um dia, quando curtia as mágoas no banco de um jardim público bem afastado, numa vila já na zona rural, observei uma senhora idosa a qual alguns meninos, seguiam e perturbavam com chistes inconvenientes e ruidosos. Com pena dela levantei-me e corri em direção ao bando que, rapidamente, se dissipou com a minha presença. Ajudando à senhora levei-a ao banco onde eu estivera sentado.

Ela me agradeceu bastante. A velha mostrava uma idade avançada e vestes bastante desgastadas e puídas, apesar de não estarem rasgadas ou sujas; isso revelava a condição social a que ela pertencia.

Sem ter muito o que falar fiz um comentário sobre a má-educação da juventude atual. Ela olhou-me com seriedade e surpreendeu-me com a sua resposta:

― Meu filho, obrigado por ajudar esta velha, mas não se engane: não é a primeira vez e nem será a última que eles farão isso. Eu tenho as minhas esquisitices, reconheço, e a sociedade não perdoa aqueles que são diferentes. Mas eu não me importo... continuo vivendo e deixando viver...

Pensou um pouco e depois continuou com voz calma:

― Dizem muitas coisas de mim! Talvez porque eu sou velha e more sozinha num quartinho aqui perto. Como eu gosto de ajudar as pessoas, me chamam de curandeira, macumbeira ou vários outros nomes pejorativos. A verdade é que na minha juventude fui rica e dona de um dancing no centro. Mas a vida levou tudo... inclusive a minha juventude... marido, filhos... tudo se foi no redemoinho do tempo. Hoje vivo só! Sobrevivo da caridade de uns poucos que se condoem da minha pobreza e pagam o quartinho onde moro. A comida quando falta eu mendigo!

― Mas eu não reclamo ― prosseguiu. ― Aprendi que felicidade é apenas um estado de espírito. Você escolhe ser feliz ou não... eu escolhi ser feliz e, por isso, vou carregando o restinho da minha vida da melhor maneira possível. Veja bem: isso não é conformismo. É opção! Viver não é difícil, conviver sim, é muito difícil! Se eu me zangar com os meninos serei a mais prejudicada, pois minha saúde na certa se ressentirá produzindo desgastes no meu organismo, já velho e doente...

― A senhora vem sempre aqui? ― Perguntei com ansiedade, tal a minha necessidade de falar.

― Sim, moro aqui perto! ― Respondeu.

Ela ajeitou-se no banco; olhando profundamente nos meus olhos, disse:

― Você ainda é muito jovem! Não deixe que a tristeza e o desengano tomem conta de sua vida. Às vezes achamos que os nossos problemas são os maiores do mundo..., mas podemos olhar em volta e ver tantos outros... pessoas que sofreram muito mais do que podemos imaginar e continuam firmes em suas caminhadas buscando elevar a alma e o espírito.

Fiquei meio constrangido com as palavras da pobre mulher, pois, sem dúvidas, meu pensamento era de tendência puramente materialista, sem preocupação com instantes transcendentais que, geralmente, eu catalogava como arroubos fanáticos de crédulos extremados que não tinham acesso ao conhecimento científico.

Entretanto fiquei, é verdade, profundamente impressionado com aquela mulher!... Na situação precária em que se encontrava, com evidentes problemas de saúde, ainda descobria um tempo para mostrar otimismo...

― Não é normal pensar como a senhora; a maioria das pessoas vive de mal com a vida...

Ela sorriu e respondeu-me:

― Nem sempre fui assim! ― Falou num suspiro. ― Já fui uma pessoa rica, porém leviana e inconsequente. Gastei tudo que ganhei com prazeres, jogo e outros vícios que corroeram-me o corpo e, muito mais, a alma. Quando me vi quebrada, recorri aos amigos... todos viraram-me as costas. Fui vendendo meus bens até ficar na miséria... fundo do poço! Aí descobri, depois de muito sofrimento, que rico não é o que tem mais, mas o que precisa menos...

Fez uma pausa e ficou bastante tempo com o olhar parado, em cismas, como a se recordar de um tempo distante. Lentamente retomou a conversação.

― Você acredita em anjos? ― Perguntou.

Meio sem jeito e pego assim de surpresa, gaguejei um pouco, mas neguei:

― Não... não creio no que não posso ver...

― Uma pena! ― Respondeu. ― As crenças ajudam a gente a prosseguir e enfrentar melhor as adversidades e os dissabores. Mas... perguntei por que apareceu um anjo em minha vida que mudou tudo!... No momento em que o desespero total se apoderou de mim, conheci Guida...

Seus olhos umedeceram um pouco com a recordação:

― Você gostaria de conhecê-la? ― Inquiriu.

Sem esperar minha resposta foi dizendo:

― Se tiver interesse venha no domingo e eu a trarei aqui. Quem sabe ela pode lhe ajudar?

Levantou-se, despediu-se rapidamente e seguiu seu caminho sem que eu pudesse articular qualquer palavra.

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