Bela foi ao estábulo e em poucos minutos voltou com a charrete; subi e fomos a trote pelo caminho que levava à vilazinha. Durante o trajeto eu não abri a boca, apesar de sentir vontade de conversar com a moça, mas fiquei observando seu semblante de esguelha, disfarçadamente. Ela não era uma beleza clássica, mas tinha traços bem regulares: cabelos castanhos aloirados ligeiramente ondulados, mas sem serem crespos, nariz bem feito, um pouquinho arrebitado, lábios nem muito finos e nem muito grossos, de uma cor natural tendendo ao coral, não era alta, contudo, devido ao corpo esguio dava impressão de ser de uma estatura maior. O conjunto era bem agradável à minha vista, e não pude conter um ligeiro tremor por estar tão perto de seu corpo, na boleia da charrete.
Ao chegarmos à praça onde eu pegaria a condução saltei e ela disse:
― Tia Guida fa
Saí bem cedinho de casa... cheguei à praça da vila pouco depois das nove e Bela já estava me esperando. Quando a avistei ela fez sinal para que eu subisse à boleia e explicou:― Tia Guida quer que eu passe na feira para entregar algumas verduras e frutas. É aqui pertinho.Entrou por algumas ruas até desembocar em uma que estava fechada e onde acontecia a feira. Bela apeou da charrete e perguntou se eu queria acompanhá-la; aceitei o convite e saltando fui com ela até uma barraca. Ela conversou com o dono que, após um instante, mandou um garoto até a charrete de onde ele voltou com dois grandes sacos cheios de verduras e legumes. Havia alface, couve, cenoura, quiabo, feijão verde, ovos, mel e vários outros produtos da roça. O dono da barraca conferiu tudo, contou o dinheiro correspondente e pagou a Bela pelo produto. A moça sorriu e falou:― Obrigado seu Borges
No meu primeiro dia de trabalho acordei cedo. Aliás, foi difícil pegar no sono, pois a ansiedade martelava-me o espírito trazendo secura à boca e ardor nos olhos, mas às seis e meia em ponto estava na mesa para o café, de banho tomado, barba feita e roupa limpa. Após o café seguimos para a secretaria afim de verificar nosso plano de aula; eu e Bela passáramos a tarde anterior bolando o assunto que apresentaríamos. Fiquei revendo meus apontamentos e, confesso, estava extremamente nervoso; tinha dúvidas se conseguiria emitir um som sequer, na hora H.Pouco depois das sete e meia rumamos para o pavilhão onde os hóspedes nos aguardavam. Guida foi comigo para fazer a minha apresentação formal aos hóspedes e Bela ficou na secretaria fazendo o trabalho burocrático.Doze hóspedes nos aguardavam no salão principal. Guida passou os olhos pela turma
Deixei o alojamento e caminhei em direção à casa. Guida me aguardava na secretaria e ao ver minha fisionomia um tanto transtornada arriscou um comentário:― Você está com cara de que viu o que nunca tinha visto...― E você tem razão ― disse eu.E contei tudo que havia presenciado, ouvido e dito.― Não disse que quando você tentasse ensinar iria aprender? Você pode estudar exaustivamente um assunto, porém o verdadeiro entendimento só acontecerá quando você procurar nos escaninhos de sua mente as palavras, os conceitos, os exemplos, as notações e as ideias necessárias para explicar ou manter seu ponto de vista para alguém. Como dizia o refrão daquela música “... aprendendo e ensinando uma nova lição...”― Mas porque a vida é cruel para alguns enquanto para outros oferec
Semanas passaram-se! Aos poucos fui me adaptando ao novo estilo de vida. Na hora do almoço conversávamos sobre as atividades da chácara e no descanso eu e Bela corríamos para as poltronas da varanda para uma conversa descontraída.Maricá estava superando o vício aos pouquinhos e isso me alegrava. Tivera ainda mais duas crises, mas, segundo ele próprio, já conseguia perceber aquilo que queria... e isso, sem dúvidas, era livrar-se das drogas.Certo dia após as aulas, fui procurado por Solange, uma das hóspedes. Como todos os outros ela era magra e mostrava estar saindo recentemente do vício funesto que a acompanhava desde a adolescência; como a maioria, tinha tatuagens esparsas nos braços e nas costas, pois trajava sempre uma blusa decotada e sem mangas que deixavam à mostra tais desenhos. O sorriso era falhado pela falta de alguns dentes e o corpo fazia l
E o tempo foi passando! Eu aprendendo com aquela gente diferente que gastava as suas horas, minutos e segundos tentando fazer com que o próximo se sentisse importante e feliz.Num dado domingo quando a chácara ficava mais calma e eu me preparava para aproveitar uma folga, Guida e Bela vieram me convidar para sair com elas; segundo disseram iam fazer algumas visitas a pessoas da vizinhança, visitas corriqueiras... um programa leve para um dia de domingo.Haviam preparado algumas cestas de alimentos que explicaram ser praxe distribuí-las a famílias já cadastradas para receber o benefício. Também levavam um farnel bem caprichado para almoçarem em algum local predeterminado. Como iríamos os três e ainda levaríamos o peso das cestas, Guida resolveu que iríamos de carro. Ela possuía um automóvel, só que o utilizava apenas quando saía da vila ou ia
Na varanda dos fundos que dava para uma floresta distante uns quinze a vinte metros, havia uma mesa grande com o tampo feito de uma só peça de jaqueira; ao lado uns bancos compridos onde cabiam facilmente quatorze pessoas, seis de cada lado e ainda mais dois, um em cada cabeceira. Guida sempre arguia Julião sobre a necessidade de uma mesa tão grande, já que ele morava sozinho.― Eu é que preciso de uma mesa assim ― dizia ela. ― Lá na chácara ficaria perfeita no pavilhão, pois meus treze hóspedes estariam bem instalados nela.Guida e Bela trouxeram o farnel preparado na chácara e distribuíram sobre a mesa. Era bem farto e tinha arroz, salada, filé de peixe, legumes e frutas. O almoço foi alegre e participativo; Julião contribuiu com um saboroso refresco de pitanga bem gelado e revigorante.Após o almoço sentaram-se todos embaixo do caramanch&atil
Lá pelas cinco e meia da tarde retornamos à chácara. Como Rute estava recolhida a seus aposentos, Bela foi para a cozinha preparar um café. Serviu-o na mesa da varanda, café, leite, pão, manteiga, biscoitos e bolinho de chuva.No início comemos calados e de olhos postos no lanche... depois de algum tempo quebrei o silêncio e perguntei à Guida:― Não entendi muito quando o doutor Julião disse que a humanidade estava com câncer e que o tratamento seria doloroso. Você poderia explicar melhor?Guida sorriu divertida com o tratamento de “doutor Julião” que eu dei ao novo amigo. Mas com toda a condescendência procurou responder:― Uma forma alegórica de dizer que o mundo de hoje se encontra em desordem moral e psíquica é compará-lo a um imenso organismo. Quando um organismo está em desequilíbrio dizemos que e
Bela e eu, depois que ficamos a sós, levantamo-nos e fomos sentar em nosso lugarzinho predileto: a varanda.Eu fiquei durante alguns minutos calado, em cismas. Depois fui voltando da minha abstração enquadrando-me novamente ao estado de vigília característico de quem está desperto. E então comentei com Bela― Puxa! Eu recebi mais informação no pouco tempo em que estou aqui do que nos trinta anos anteriores da minha vida! Jamais havia discutido ou participado de conversas tão profundas sobre a filosofia, e por consequência, a maneira e a ótica de encarar o mundo, ou simplesmente a nossa existência fora da superficialidade que sempre fez parte da minha educação. Em casa nunca se comentava nada, a não ser situações que poderiam comprometer a saúde financeira da Viola, e na faculdade o único fato que interessava à “