Lá pelas cinco e meia da tarde retornamos à chácara. Como Rute estava recolhida a seus aposentos, Bela foi para a cozinha preparar um café. Serviu-o na mesa da varanda, café, leite, pão, manteiga, biscoitos e bolinho de chuva.
No início comemos calados e de olhos postos no lanche... depois de algum tempo quebrei o silêncio e perguntei à Guida:
― Não entendi muito quando o doutor Julião disse que a humanidade estava com câncer e que o tratamento seria doloroso. Você poderia explicar melhor?
Guida sorriu divertida com o tratamento de “doutor Julião” que eu dei ao novo amigo. Mas com toda a condescendência procurou responder:
― Uma forma alegórica de dizer que o mundo de hoje se encontra em desordem moral e psíquica é compará-lo a um imenso organismo. Quando um organismo está em desequilíbrio dizemos que e
Bela e eu, depois que ficamos a sós, levantamo-nos e fomos sentar em nosso lugarzinho predileto: a varanda.Eu fiquei durante alguns minutos calado, em cismas. Depois fui voltando da minha abstração enquadrando-me novamente ao estado de vigília característico de quem está desperto. E então comentei com Bela― Puxa! Eu recebi mais informação no pouco tempo em que estou aqui do que nos trinta anos anteriores da minha vida! Jamais havia discutido ou participado de conversas tão profundas sobre a filosofia, e por consequência, a maneira e a ótica de encarar o mundo, ou simplesmente a nossa existência fora da superficialidade que sempre fez parte da minha educação. Em casa nunca se comentava nada, a não ser situações que poderiam comprometer a saúde financeira da Viola, e na faculdade o único fato que interessava à “
Na terça-feira Jane me procurou após as aulas:― Professor ― disse ela ― já estou há algum tempo sóbria; nada de drogas, bebidas, cigarros... resolvi abandonar de vez essa vida miserável, mas queria pedir um conselho ao senhor... Tem uma igreja lá na vila que já faz um tempinho eu estou indo nela; o pastor fala umas coisas que mexem lá dentro de mim e ele pergunta se eu quero receber Jesus... eu falo que quero e aí ele pede para “mim” contar a história da minha experiência nas ruas... O que o senhor acha?Pego assim de surpresa fiquei calado durante algum tempo. O que eu diria? Apesar do verniz de educação que eu recebera desde que me mudara para a chácara, ainda tinha um ranço de ateísmo que me fazia embirrar com qualquer religião.Jane ficou aguardando a minha resposta; como ela demorou, repetiu:― E a&i
Afinal chegou o domingo! Eu estava bastante animado; já há algum tempo todas as vezes que me aproximava de Bela, sentia uma espécie de corrente elétrica me percorrendo a espinha. Nunca fui bom no trato com as mulheres... minha vivência resumia-se a algumas tentativas de namoro na faculdade que não se desenvolviam e deixavam-me um tanto frustrado. Mas também nunca sentira por ninguém o que eu estava experimentando por Bela... só que esbarrava na minha timidez. E quando aparecia uma oportunidade para me declarar, perdia o folego, suava frio e dava uma desculpa para me ausentar até voltar ao normal.A possibilidade de sair sozinho com ela mexia com o meu sistema nervoso, mas me dava um prazer inefável. Eu me sentia como o menino que vai pela primeira vez ver Papai Noel no shopping.Saímos às nove horas. Bela já tinha alertado Julião que iríamos passar o domingo n
Após o almoço Julião nos convidou para um passeio no sítio. Era o seu pedacinho de Mata Atlântica todo replantado por ele; sentamo-nos em um banco rodeado de frondosas árvores, espécimes raros, alguns em vias de extinção. Havia ali Jequitibás, perobas, ipês, sucupiras e até jacarandás... árvores de madeira nobre que despertam cobiça em exploradores e ladrões da floresta.Bela provocou Julião com a seguinte pergunta:― Tio, você nos deu uma profunda aula de ciência, falando de átomos, física quântica... e muitas coisas mais. Mas a ciência não engole o ocultismo... por quê? Onde está o gargalo?Julião riu bastante com a brejeirice da moça. Depois começou a responder a questão:― A pergunta “Quem somos? De onde viemos? Para onde vamos?...&rdqu
A rotina na chácara prosseguia!Algumas vezes em minha folga visitei meus familiares, mas foram momentos breves com intuito de matar as saudades que eu sentia de minha mãe. Aproveitei para devolver as chaves do apartamento visto que eu não utilizava mais o mesmo e ― confesso com uma pontinha de vergonha ― foi para fazer uma raivinha a Junior. Não abri o jogo de onde eu estava nem o que fazia. Mencionei apenas que conseguira um emprego decente que me oferecia as comodidades que eu precisava.Numa segunda-feira depois que todas as aulas terminaram fui até o pavilhão para pegar um livro que eu esquecera ali. Estava justamente à procura quando Mércia entrou e, pela atitude dela, percebi que alguma coisa grave tinha acontecido.― O que foi Mércia, aconteceu alguma coisa? ― Perguntei solícito.― Aquela safada vai ver só com quantos paus se faz uma canoa... ― vociferou a mo&cce
O mês de dezembro chegou anunciando os festejos de Natal, a festa máxima da cristandade; Guida, auxiliada por Bela, dirigia e orientava a decoração da chácara, pois programava-se uma comemoração reunindo todos os participantes daquela comunidade. Dentro das minhas possibilidades também procurei ajudar da melhor maneira possível pendurando enfeites e luzes.Para mim era uma novidade! Sempre achei o Natal muito chato e minha família não tinha tradição com tais festejos, apesar de meu pai como bom carcamano cultivar a tradição cristã..., porém, trabalhando como ele trabalhava não sobrava qualquer tempo para nenhuma outra atividade que não fosse a fábrica. Por isso tínhamos no máximo uma pequena árvore em um canto escondido da sala sem qualquer destaque. Na véspera cada um ia para seu lado cuidar de seus compromisso
Acordei tarde, aliás, quase não dormi tal o deslumbramento daquele momento mágico da madrugada. A partir daquela hora bendita esqueci-me de toda e qualquer birra que eu pudesse ter quanto ao significado do Natal que passou a figurar como o dia mais feliz da minha vida.Logo que me vesti procurei Guida; ela levantara-se cedo e mesmo sendo feriado já comandava a labuta diária verificando as necessidades da chácara. Contei a ela o acontecido, exprimindo-me com toda a franqueza e sem omitir qualquer detalhe.Ela me pegou pelo braço e levou-me até a mesa na sombra onde nos sentamos. A seguir comentou:― Desde o dia em que nos encontramos na pracinha da vila eu sabia disso. Estava escrito no destino de vocês! Eu fico muito feliz, pois amo Bela e nesses meses de convívio aprendi a amar você, também. Você mudou muito Antônio; e para melhor! Que diferença do homem de onte
Eu e Bela resolvemos passar o fim de ano na praia, já que ela não se recordava de ter alguma vez rompido o ano dessa forma. Eu também precisava visitar minha mãe e, portanto, resolvemos matar “dois coelhos de uma cajadada só’. Iríamos no carro de Guida que se prontificou a cedê-lo para fazermos a visita. O duplex da família tinha direito a quatro vagas na garagem e, por isso o carro seria guardado ali sem problemas enquanto rompíamos o ano na praia que ficava em frente.Durante a semana liguei para minha mãe e verifiquei se ela iria sair. Disse-me que não, que ficaria tomando conta dos netos enquanto Junior e Amélia iriam passar o réveillon com amigos.No dia trinta e um à tardinha saímos para a residência de minha mãe. O trânsito estava pesado, principalmente quando começamos o percorrer o extenso acesso à beira-