METAL E CARNE

Foi-se o tempo em que as possibilidades encontraram seu fim; a temporada de sonhar está aberta.

Yanna Schanny olhou com apreensão para as montanhas muito lá embaixo. Entorpecida, subiu os olhos dos vales fracamente delineados para a nave de escolta que ia um pouco à frente. As duas rapidamente ganhavam o espaço, o que era denunciado pelo negror que ia se descolando do azul, que se tornava lentamente uma bolha pincelada de várias cores.

Yanna mandou o piloto emparelhar com a outra. Seu coração disparou enquanto ficava observando a distância ir diminuindo sensivelmente, enquanto a outra nave ia se agigantando, até tomar todo o seu visor. Firmou um pouco mais a mão no braço da poltrona, seu corpo tenso, os músculos retesados. Girou a cabeça e ficou observando o distante firmamento onde a longa faixa da cidade orbital, que cortava toda a extensão do céu, cintilava como um fino colar de diamantes. Lá o sol ainda batia, observou enlevada, imaginando o tempo de menina quando se deitava sobre a relva e ficava sonhando com ela, imaginando como seria a vida lá, tão distante da terra, tão dentro do céu.

Com receio arriscou olhar novamente para o visor mais baixo, de onde podia ver o longínquo chão, tão longe de seu corpo. Sorriu confiante. Depois de tanto insistir podia começar a sentir a vitória mais perto. Ainda sofria com a altura, ainda seu ser inteiro agonizava quando não conseguia sentir o chão duro sob os pés, ainda sentia sua alma gritar literalmente de pavor, mas agora sentia que assumira um mínimo de controle. Determinada dominou o mal-estar e o suor frio, isolando a mente do balouçar abandonado do vazio revestido de metal que levava o seu corpo por um vazio ainda maior.

- Talvez não te vença, medo, mas te colocarei sob grilhões e te lançarei num poço escuro ou te manterei preso numa masmorra da qual ninguém saberá a localização.

A dor a fez observar que seus dentes estavam rilhados, os músculos doloridos e suas mãos crispadas nos braços da cadeira. Relaxou o corpo e se obrigou a não fugir das cenas rápidas que a envolviam.

As naves terminaram a ascensão no arco do voo orbital, enquanto o planeta girava abaixo no sentido contrário ao avanço das naves. Então tudo ficou paralisado, entre o subir e o descer, a estação faiscando de encontro ao fundo negro, tudo suspenso. No momento seguinte a descensão, a estação diminuindo ao longe, o silêncio sepulcral. Repentinamente um tranco, o retorno gritante ao planeta, as naves perfurando a atmosfera superior.

Em pouco tempo aterrissariam, e tudo estaria terminado.

Yanna olhou demoradamente para a TV, cismando sobre qual seria o motivo de tanta revolta. Talvez o medo todo de uma raça, talvez o despeito recolhido ao saber que um homem, qualquer um, até mesmo aquele que fosse sabedor do que acontecia, possivelmente não teria tido qualquer chance com aquela menina linda e desejável, que preferia se rebaixar para aquele monte de ferro e circuitos. Apostava que eles ficavam se perguntando o que eles faziam de noite, imaginando cenas de como ele poderia tratar seus desejos carnais e como ela incutia nele a satisfação de seus próprios desejos reprováveis, pois que sem dúvida os seriam.

- Ponha-me a par de toda a situação, sim? - pediu ao policial tenso numa cadeira ao lado. - O relatório foi muito... sucinto, inconclusivo. Parece que quem o preparou estava um pouco perturbado - observou deixando de lado a tv.

O detetive olhou para o seu lado, uma expressão curiosa e sardônica no rosto.

- Uma pena não ter gostado - reclamou com voz aveludada e cínica.

- Muito cheio de ses... - devolveu com voz maviosa.

- Isto é um absurdo... - ouviu um outro policial olhando com rancor e escárnio para a pequena tela - Como podem ficar mostrando isso? É uma baixaria... Esse, esse robô tem que ser derretido e...

- Já provaram que houve o rapto? - perguntou com a voz impassível.

- Ainda não... - respondeu o detetive, a face agora tranquila e um pouco sonhadora - Dizem que há grande possibilidade de isso ser verdade, de que ele a raptou, possivelmente para se sentir humano.

- Que tipo de persuasão poderia ter usado? - perguntou voltando novamente a atenção para a cena, atenta aos mínimos indícios da moça que denunciavam que aquela não deveria ser a verdade. Para ela, ela parecia estar realmente preocupada com a situação em que o robô se encontrava.

- O que apuramos é que ele é um robô militar, com altíssima capacidade de reação. Além disso, ele recebeu circuitos de negociador...

- “Robô localizado” - Yanna transmitiu a mensagem de texto no celular e suspirou profundamente. Novamente voltou os olhos para a tragédia que estava se desenrolando na tv: um homem, um homem de puro metal, gigantesco, a face poderosa e caucasiana com uma larga faixa negra pintada que começava em sua cabeça luzidia e descia pelo seu lado direito até envolver completamente a perna e o pé direitos, pelo menos era o que sugeria, pois a visão, um pouco acima da cintura, era interrompida por andrajos, não que ele tivesse necessidade de esconder algo, pois nem as partes sexuais e pudentas possuía. O mesmo acontecia com a mulher, só que era seu lado esquerdo que se mostrava enfaixado na faixa negra.

Algo naquelas duas criaturas, aparentemente tão diferentes e ao mesmo tempo tão idênticas, tocou seu ser. Os dois estavam lá, dentro daquele estacionamento subterrâneo, perto daquele beco carcomido, encolhidos num canto escuro à frente de uma grossa parede onde o revestimento se desfazia com a umidade, os jeitos tristes e acabrunhados, esperando. Ele sentado, encostado na parede puída, mantendo-a segura e protegida entre seus braços, a cabeça em seu peito, o corpo entre suas pernas dobradas.

- Uma promessa, possivelmente. Um juramento de amantes... - suspirou Yanna, os olhos tristes. - Pelo que entendi ele não é um robô sexual.

O detetive deu um risinho disfarçado.

- Não, ele não é um robô de prazer. Ele foi construído para ser militar. Todo seu cérebro é voltado para essa função.

- Está bem... Então, acho que está na hora de ir até o local onde eles estão encurralados - decidiu Yanna levantando-se.

O detetive, num movimento seco, desligou o aparelho e levantou-se também.

- Deseja ser acompanhada, doutora? Afinal, para ir até lá será necessário tomar uma nave e...

Yanna parou, os olhos frios no sorriso sarcástico do policial.

- Eu estava do outro lado do mundo, tomei uma nave que foi acima da estratosfera, e você acha que pode sapatear sobre meus medos? Eu os estou vencendo, e você, está vencendo os seus?

- Mantenho a oferta – continuou o policial, mantendo o mesmo ar de sarcasmo.

- Se prontifica sua ajuda por saber que tenho algum... algum problema com altura, saiba que esse medo não me impede de fazer o que devo fazer. Em todo o caso, agradeço... A situação aqui está por demais conturbada para que vocês possam dispensar alguém - agradeceu observando o grande movimento na delegacia.

- Não ligue não... Todo o dia é sempre a mesma coisa. Vários dos que estão aqui, sempre estão aqui - sorriu.

- Em todo o caso estou agradecida pelo seu oferecimento, senhor, mas não há necessidade. Apenas avise aos policiais que estou indo para lá, sim?

- Eles já sabem, e a estão esperando, doutora.

- Obrigada, então.

- Estamos ao seu inteiro dispor - despediu-se, observando a mulher rechonchuda e baixinha desaparecer pela porta.

A rua dos latoeiros estava tranquila, bem como a travessa dos pintores. Yanna fechou a porta, entrou no veículo e subiu para quinze metros, deixando-se levitar por alguns momentos, tentando decidir quais seriam as suas táticas, o que sempre a ajudava a esquecer onde estava.

O gigantesco robô, chamado Melchior, o porquê desse nome não desconfiava, continuava a envolver de forma protetora a belíssima morena, encolhida, assustada e de olhar feroz. Os homens continuavam a agir como se o cercassem para proteger a mulher daquela máquina descontrolada, recusando-se a ver que a menina é que desejava estar ali, junto daquele que amava no momento, talvez para a vida inteira. Mas o fim se aproximava, e seria doloroso demais.

É certo que os robôs adaptados para satisfazer as paixões humanas, paixões carnais, eram fato conhecido e bastante divulgado, tornando-se até mesmo lugar comum em lojas especializadas em objetos sexuais. Mas um caso de paixão, de um aparente amor sincero, onde um ser humano dizia estar apaixonado por uma máquina, era... perturbador e constrangedor. Em todos os olhos, pelo menos nos masculinos, segundo observação da doutora Yanna, havia aquela desconfiança se ele teria mexido com as ondas cerebrais dela.

Yanna, irritada, fechou os punhos com força e olhou para o horizonte de agulhas de concreto e metal. Com decisão marcou o destino para a rua dos alfaiates, onde estava se desenrolando aquele estranho caso.

- Se fosse um homem apaixonado por uma robô todos iriam chamá-lo de louco e ririam e deixariam para lá. Mas é uma mulher, uma linda mulher que está lá... O sentido de proteção e o próprio desejo, ambos machistas e ignóbeis, não vão deixar barato essa situação - Yanna ligou o automático e ficou pensativa. - Neste momento as imagens já devem ter se espalhado rapidamente pelos planetas.

Tinha que concordar que aquela era uma visão tocante: a bela morena coberta por tiras de panos, quase nua, abraçada ao robô, cercados pela turba raivosa. Aquele amor era execrado, e o poderoso robô nada poderia fazer, porque reagir colocaria em risco a mulher que protegia. Agora o escândalo ultrapassava todas as fronteiras.

> Por que o homem se recusa a perceber que uma alma vicejou naquele corpo de metal? O homem não constrói um novo corpo quando ama, um corpo que uma alma se aproxima para habitar? E agora o homem aprendeu a construir um corpo de metal... Por que estranham que uma alma o habite?

Assim que a pequena nave pousou na avenida bloqueada Yanna saltou para o solo com alguma dificuldade e deu um longo suspiro, batendo os pés suavemente contra o solo, sentindo-se bem por o ter bem ali, onde se sentia protegida e firme.

Muitos homens e mulheres, policiais e repórteres, se postavam atentos à frente de um velho prédio condenado. Vários se voltaram para olhá-la com curiosidade e respeito. Quanto mais se aproximava mais podia ver esse respeito estampado nos rostos. Ali estava a grande Yanna, a incrível psicóloga de robôs, ouvia as vozes cochichando, apesar dos rostos estarem mostrando um que de decepção. Como sempre esperavam que ela fosse maior... e mais esbelta.

- Sou uma anti-heroína - sorriu para si mesma, a face controlada e dura.

> Peça que todos se afastem, sim? - pediu ao policial mais graduado.

- Sabe que não posso, minha senhora. Ele pode tornar-se perigoso e...

- Não é só ele que pode tornar-se perigoso, meu rapaz - o semblante sério fincou toda sua atenção nos olhos do homem, que apenas sorriu de volta.

- Ah, sei... E quem mais poderia se tornar perigoso por aqui?

- Eu, meu caro. Eu poderia...

- Ah, eu imaginava... Só para esclarecer, eu deveria temê-la?

- Deveria, meu amigo... Caso não lhe tenham repassado, devo avisá-lo de que ajo sob a autoridade do Escritório.

- Sei, sei... Só que, neste caso, a autoridade policial sobrepõe-se à autoridade do Escritório de Assuntos Robóticos.

- Acha mesmo? - sorriu tomando o celular e ligando para o número do Escritório.

- Sim, é o que eu preciso que seja feito - falou no telefone sob o olhar de sarcasmo do policial. - Ainda mais: mandem isolar completamente a área e retirar as escutas. Os robôs dessa série podem identificar aparelhos de escuta e controle de uma grande distância.

> Hum, hum...

> Eu recebi seu texto, e estava certo. A polícia não está muito cooperativa.

> Sei, sei disso. Só que parece que eles não sabem. Acho que devemos relembrá-los. Está certo, eu aguardo...

Com a face impassível desligou o aparelho e aguardou, a atitude imóvel e fria, sob o olhar desafiador e divertido do policial.

Minutos depois o policial encarregado carregou o cenho e olhou-a com desprezo ao atender uma ligação da delegacia, antes de mandar que todos os policiais recuassem para longe.

Yanna devolveu um sorriso frio para o policial.

- Espero que não precise de nós, doutora – falou o policial enquanto ia se afastando. – Estaremos longe, sabia?

Certificando-se de que a área estava isolada Yanna caminhou tranquilamente até a entrada da garagem subterrânea e desceu ao encontro do estranho casal.

No ambiente parcamente iluminado Yanna identificou os dois. O robô já a tinha localizado, e estava com a atenção de caçador fixa sobre cada movimento seu enquanto ela avançava na direção do casal.

Yanna viu o momento em que ele, acessando os vários arquivos militares que deveriam fazer parte de seus arquivos pessoais, a identificou. Yanna até pensou poder sentir que ele relaxava e colocava de volta toda sua atenção na garota.

A mulher lindíssima, observou, estava ainda sentada no chão, as pernas recolhidas, aninhada entre os braços do gigante que continuava a observar com tranquilidade a sua aproximação.

Yanna parou na frente dos dois, a mulher agora a examinando atentamente. Yanna desconfiou ver um ódio controlado em seu jeito e em seus olhos, antes que voltasse a aninhar a cabeça no peito da máquina.

Yanna arrumou a saia ao seu lado assim que se acomodou no chão.

- Demorei muito?

- Não muito, Yanna. O tempo suficiente... - falou o robô com a voz amigável.

- Também acho - aquiesceu deixando os olhos perambularem por todo o ambiente. Ignorou a garota que a examinava intrigada.

- Então? Veio experimentar seus dotes psicológicos neste caso?

- Precisa deles, algum de vocês?

O robô observou seu olhar atento na moça.

A moça abriu os olhos e com eles perfurou os de Yanna, para fechá-los segundos depois, como se tivesse perdido inteiramente o interesse.

- Vocês sabem o que está acontecendo, diferente dos homens... Somente alguns sabem, e mesmo assim não conseguem entender, não é mesmo?

- Então você sabe?

- Eu desconfiei, e tive certeza quando os vi. Por que não expôs a verdade?

- Sabe muito bem que nossa sobrevivência pelo tempo que necessitamos baseia-se, ou baseava-se, em eles continuarem a acreditar.

- Sei... Essa é uma verdade... Há alguns boatos de que você não é inteiramente robótico...

- Ora, essa eu gostaria de ouvir... Essa área foi isolada, e não sei de tudo quanto seria interessante saber. Operação policial padrão de isolamento...

- Hum, hum,... Operação padrão... Bem, correm alguns boatos de que sua memória foi implantada por um Soul Catcher, um capturador de almas, imprecisamente colocado num corpo metálico.

- Assim justificam um metal pensar como carne... - resmungou a moça, os olhos fixos em Yanna.

Yanna sentiu um frio percorrer sua espinha. Ali, bem à sua frente, estava uma força controlada, um ódio arrasador que não conseguiu medir.

- Simmm, provavelmente... - concordou retirando lentamente os olhos da moça, passando a ignorá-la intencionalmente após, apesar de continuar a medir sua reação dissimuladamente.

- Uma pena não é mesmo Yanna? As almas terem que, necessariamente, ser humanas...

- Tem medo, Melchior R-125?

- Meu nome não é mais Melchior R-125... - sussurrou de olhos fixos na face da mulher. - Agora, eu e os meus me conhecem por Titonus, pois que sou o imortal que sempre ficará velho...

- E eu sou Tantedera Umbegon, a oradora dos mortos - falou a jovem se abraçando mais fortemente ao robô.

- Nomes imponentes e de impacto numa estória triste e fadada a um desenlace perigoso.

- Perigoso para todos que se aproximam do palco - silvou a mulher, logo acalmada pelo andróide.

Quando os olhos dele tocaram os de Yanna ela sentiu seu coração se apertar, pois havia identificado neles uma dor monumental.

- Medo, Titonus? - sussurrou Yanna por sua vez, o coração tomado de dor sobre o que via um pouco no futuro. Sua alma gritou que ela poderia fazer algo para mudar, mas mandou-a calar-se, porque aquilo não estava em suas mãos.

- Eu tenho sim, Yanna. - concordou acariciando com extrema suavidade os cabelos da moça, meio perdidos na escuridão. - Tenho medo da insegurança com respeito ao dia em que vou morrer. Olho e não há, por enquanto, nada lá que me dê conforto. Desde há muito, sabe, eu me esforço em segurar com mais força esse raio de luz que é a vida. No entanto fico pensando, quando chegar lá e descobrir que há continuidade,... Tenho fortes dúvidas se gostaria de retornar - falou o robô sob o olhar curioso e apaixonado da moça.

- Essa, meu amigo, não é uma dúvida só sua...  Vocês são filhos do homem, que são os filhos dessa dúvida. Vocês robôs têm esse poder fantástico de sentir o gosto de uma determinada cor, de ver um determinado som, de ouvir uma determinada luz... São mágicos, filhos do homem e da luz,... São bênçãos ainda não compreendidas, que causam medo e pânico quando sorriem porque é quando denunciam com suavidade, amarga para os homens, toda a solidão e limitação de seus criadores.

- Você sabia? - a pergunta triste rolou lenta pelo ar, as mãos avançando até a nuca da mulher.

> Eu só soube quando vi na tv. Mas você sim, você sabia e trouxe, dessa forma tão... tão meiga, a verdade, obrigando-a a expor-se. Mágicos,... - falou Yanna apertando com cuidado o botão do pequeno aparelho que estava em seu bolso.

- Sim, mágicos, mágicos protetores... No entanto há aqueles que têm uma pequena disfunção, um poder de amar possessivo - e suas mãos dissimularam os sentidos quando inseriram uma pequena lâmina por uma ranhura de inspeção na base da coluna da jovem. - Muitas tristezas,... muitas tristezas a passar.

A garota voltou os olhos para o homem de metal, um sorriso substituindo o pânico. Vagarosamente segurou a mão que acariciava seus cabelos e fechou os olhos. Um pequeno tremor, doído e em paz, e o brilho da vida se foi.

O homem fechou os olhos por uns longos minutos. Quando os abriu viu Yanna com o semblante pesado olhando para algum lugar perdido nas costas de uma joaninha estática no chão de concreto.

- Obrigado por distraí-la...

- Não foi nada, Titonus - falou tirando a mão do bolso e olhando triste para o pequeno aparelho, que dera o tempo necessário para Titonus atingir sua mente. - Mas ela o afetou, o atingiu, não é Titonus...

- Ao menos destruiu só a mim. Ela tinha muito poder. Minha menina agora poderá descansar - falou, passando a mão com esforço sobre a face dura. Ao olhar para Yanna a face ficou um tanto ainda mais abatida. - Ah, não deixe, Yanna, não deixe a dor te dominar.

- Sabe por que me tornei psicóloga de robôs, Titonus?

Vendo que o homem permanecia em silêncio continuou:

- Porque é em vocês que o homem, talvez sem saber, colocou as suas melhores partes, os seus melhores pensamentos, mesmo nos robôs aparentemente frios de soldados de metal. Não é difícil descobrir essa parte nobre,... e altruísta... Quantas dessas almas somou à sua, meu nobre Titonus?

- Sinto-me honrado em conhecê-la, minha amiga - sussurrou o robô, as mãos tombando lentamente ao longo do corpo.

> Titonus,... - sussurrou pesaroso e cambiante - não, não mais Titonus. Titonus era para ela, para acalmar sua dor, acreditando que uma velhice poderia vir a gastar nossos corpos... Talvez o melhor nome para mim seja mesmo... seja... só... R... R-125...

Yanna coçou os olhos com as costas das mãos. Os olhos estavam inchados, sentia. Com impaciência secou-os, mantendo-os fixos no casal inerte à sua frente; o silêncio denso sendo quebrado apenas por sua respiração, contida e abafada. Longos e extensos minutos passaram. Lentamente o corpo reclamou sua atenção, e Yanna despertou de sua catarse. 

- Como fazer o relatório, meu amigo? - sussurrou para os metais adormecidos pela eternidade. - O que seria o correto? Amor demais, por quem? Os homens quiseram acreditar que um robô raptara uma mulher por amá-la demais... Não foi assim, não é mesmo? Foi por eles, por esses mesmos homens, que você a escondeu por tanto tempo, não foi?

> Por muitos meses eu a vinha procurando, até vê-la na Tv. O destino é um jogador notável, não é mesmo, meu amigo? Um jogo estranho, é sim... No entanto, eu fico pensando aqui comigo... Sua programação em negociação, uma fugitiva com alto grau de periculosidade, construída para ser uma matadora de robôs e homens... Como conseguiu esconde-la, como conseguiu controlá-la? Porém o controle estava ficando difícil, a rebelião amorosa e protetora aparecendo nos olhos que transbordavam de admiração... Ela estava se tornando impaciente, aguardando sua revolta destruidora. Você sabia, não sabia? Sabia que ela precisava ser parada. Pequenas atitudes, parecendo desmedidas, mas trazendo em si tal poder comovente... Que grande alma o construiu, meu amigo? - murmurou.

Pesadamente Yanna levantou-se, arrumou o vestido rodado que a fazia parecer mais gorda e tomou o caminho da saída. Assim que se acostumou com o sol viu o carro de polícia parar bem à sua frente, o oficial saltando, calmamente caminhando ao seu encontro, observando-a cuidadosamente.

> Ah, Titonus, será que doeu, quando a mente dela se cravou na sua, no momento em que a silenciava?

- Ora, ainda viva, e sem ferimentos... Sei! Então, minha senhora, conseguiu? O desgraçado de ferro está morto? - Por um momento parou, o olhar observando com estranheza a boca da estranha caverna. - E a mulher? Cadê a mulher?

- Eles estão lá dentro - apontou com a cabeça para a boca da caverna. - E quanto a sua “mulher”, caso não tenha percebido, meu caro policial - e seu sorriso tornou-se amargo, - ela era um robô, o robô fugitivo de numero C-140...

Ao menos um prazer, sentiu, ao observar a cara de espanto do policial. Mas foi um prazer efêmero, que logo desapareceu.

- O que??? O que você está dizendo?

- O que ouviu, meu amigo - disse dirigindo-se para o seu veículo.

Sob os olhos espantados do oficial, que apressara seu efetivo ao encontro dos robôs, virou-se da porta.

- Quando chegar lá dentro agradeça a Titonus a vida que ainda têm. O C-140 poderia ter destruído inúmeras vidas nessa cidade, pois que a cada dia ficava mais demente. Sua vida também, meu caro amigo, seria destroçada com uma facilidade descomunal, se ele não a estivesse controlando há algum tempo.

- O que? Você está me dizendo que ela é...

- Sim, a própria. O robô experimental, fugitivo, caçado pelo país inteiro.

- Você está me dizendo que o robô de alta performance militar está ali dentro? O maldito C-140? Espere, por que não nos avisaram de que um maldito C-140 estava na cidade?

- Porque vocês poriam tudo a perder, e morreriam na tentativa imbecil de tentarem. Foi o exército, meu filho, que encomendou a missão, e exigiu silêncio absoluto.

Sob o olhar apalermado do policial, com movimentos lentos retirou seu celular e completou a mensagem anterior, que enviou para o Escritório: “Fugitiva C-140 desativada. Missão completada”.

Devagar, cansada como há muito não se sentia, ligou o veículo, e devagar alçou voo. Com a mente amortecida nem mesmo se deu conta em que altura estava quando arremeteu em direção à capital.

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