Não há força maior que o amor. Foi ele que fez com que Deus criasse os universos e a vida, e dar uma alma ao homem. E esse poder, no qual o homem está imerso e do qual se alimenta, de tão imenso, pode enlouquecer e ser a perdição, ou iluminar e ser a redenção.
As redes jornalísticas estavam em polvorosa. Câmeras teleguiadas e satélites mostravam em tempo real tudo o que estava acontecendo, desde que aquele maluco invadira a empresa de peças de reposição de robôs e pegara um dos encarregados como refém, procurando por uma mulher, que ainda não fora identificada. Um caso passional, um relacionamento desmanchado. Mas, o que deixava tudo muito interessante, era a natureza do homem descontrolado.
Todo o local da fábrica estava cercado, e os policiais robôs estavam posicionados a uma distância segura. Havia muito nervosismo lá embaixo.
- Onde está a Julia? - gritou o invasor, olhando nervoso para os lados, acreditando que ela poderia estar à vista.
> Onde está a Julia? - gritou novamente, encolerizado, as mãos esmagando o cano do passadiço.
- Eu juro que não sei - disse o funcionário mostrando todo o terror que estava sentindo.
Com receio olhou para o cano esmagado, e disse a si mesmo que teria que manter a calma, que sair daquela situação dependeria em muito dele mesmo, de sua capacidade de lidar com situações extremas. Sabia que ele a mataria se a visse, e a ele também. Então tinha que agir com calma.
- Se essa é a verdade, então você não me serve para nada - ameaçou entre dentes.
- Eu não sei - respondeu o funcionário totalmente apavorado, mantendo os olhos presos nas mãos do outro. - Mas eu posso te ajudar a achá-la.
Adão Souza o examinou com atenção, e um sorriso sarcástico surgiu no canto da boca.
- Você não me conhece, não sabe nem de qual versão eu sou. Eu reconheço rostos, eu os sei ler. Tentar me enganar não funciona.
- Então sabe que Julia não o enganou - arriscou o ajudante de almoxarifado, Rafael Almeida.
- Conhece tão bem a Julia assim? O que ela te contou? - perguntou aproximando-se ameaçadoramente, movimento que fez Rafael se encolher.
- Ela não me disse nada. Apenas as amigas contaram que ela disse que tudo estava acabando entre vocês.
- Sei... - falou olhando bem dentro dos seus olhos, encolerizado, enraivecido.
Adão sentiu uma dor muda dentro do peito de aço.
- Talvez a dor venha dos fios e circuitos, talvez esteja nos elementos randômicos - pensou amargurado. - Por que toda essa dor, por que essa necessidade, essa dependência?
– Esse sentimento o incomodava, mas por mais que tentasse sabia que nunca poderia se livrar disso, não sem ajuda.
Desde que os robôs assumiram corpos humanos, a interação entre humanos e robôs se tornou possível, fazendo surgir várias empresas que se especializaram na criação de seres robóticos dos mais diversos formatos e gostos para satisfazer os seres humanos, para fins puramente sexuais, ou não somente.
Na verdade era uma indústria em franca expansão, sem mostras de que em algum momento entraria em desaquecimento. Afinal, eram os robôs que cuidavam da alma do homem, por mais negra e destroçada que pudesse ser.
Mas, em algum momento, de simples máquinas, as indústrias passaram a entregar equipamentos com sentimentos, sincronizados às mentes, aos desejos de seus possuidores. A interação entre ambos, homem e máquina, cada vez era mais aprofundada, mais estimulada.
E essa interação estava se tornando tão profunda que as leis, que permitiriam e sacramentariam o casamento entre as espécies, não demoraria a ser votada, bem como se fortalecia cada vez mais o movimento que lutava pelo reconhecimento dos robôs como seres dotados de consciência e alma.
Por isso, várias ONGs surgiram, preocupadas com os usos terríveis que eram feitos deles. Eram cada vez mais chocantes as notícias e imagens de vários robôs, femininos e masculinos, encontrados desfigurados e retalhados, demonstrando que haviam passado por sessões terríveis de tortura, isto sem falar das versões mais antigas que, abandonadas, se transformavam em perigoso lixo tecnológico cheio de vontades próprias, para o qual até mesmo essas ONGs e a própria igreja buscavam sensibilizar a população e os poderes constituídos.
Por esse motivo robôs infantis tinham a venda proibida para esses fins, mas a polícia sempre os encontrava. Não era raro encontrar robôs crianças, com marcas de torturas hediondas, que num exame preliminar não deixavam dúvidas de que sofreram terríveis e desumanas sevícias. No entanto as autoridades faziam vistas grossas, alegando que os animais que habitavam alguns homens teriam com que se satisfazer, com o que extravasar suas estranhas e perigosas inclinações, deixando os filhos e jovens humanos em paz. Porém, nem todos pensavam assim, alegando por seu lado que permitindo que isso continuasse, a sociedade mostrava admitir esse tipo de comportamento, vaticinando que, em algum momento, esses seres enlouquecidos acabariam por se voltar contra a própria sociedade que os tolerou e alimentou. Afinal, como um viciado cada vez procura uma droga de maior poder, assim também iria ocorrer com esses pervertidos. Como poderiam esses maníacos se satisfazer com robôs submissos ou programados para reações preparadas? Sentiriam que aquela não era a verdadeira caça...
E ali, aquele caso não era totalmente diferente.
Julia Nogueira sempre fora uma mulher extremamente independente, mas também sempre sonhara com um lar, com uma casa de muros baixos e brancos, com gramados verdinhos e bem cuidados, com sons de música num fim de semana de sol brilhante e,... com um marido, belo de preferência, para matar as amigas de inveja, mas sem as complicações de um humano de verdade. Primeiro, teria a vantagem de não ter que disputar o poder, poderia simplesmente desligá-lo quando quisesse; ao invés de reclamar de dor de cabeça, apenas o mandaria dormir ou, se fosse a sua vontade, lá estaria ele, sempre disposto para todo tipo de fantasia, ainda mais estas novas versões que podiam ter o corpo alterado em seis versões diferentes, inclusive com adaptação psicológica. E mais, que homem humano ainda iria cuidar completamente de uma casa sem uma reclamação sequer? E, se tudo isso ainda não fosse o suficiente, em nada o afetaria quando quisesse dar umas escapadas. Uma maravilha, pensou Julia quando comprou o seu namorado. Mas, na verdade, o que terminara por cativa-la era que ele não iria ficar chocado quando ela fosse envelhecendo lentamente, apesar da promessa de que estaria próxima a solução de que, tal como os robôs, os homens também logo poderiam reconstruir seus corpos, seja por via mecânica ou genética.
O que mais poderia desejar, conforme dizia o slogan da Hominis, a fabricante mundial de robôs?
Por isso havia comprado esse robô há vários anos, e acabara constituindo com ele um lar.
No entanto, os humanos são inconstantes, ou evoluem, como costumam justificar. Assim, as coisas foram se acabando para o lado dela, porque os humanos não são como os robôs, que tem a capacidade de verem tudo como se fosse novo ou atual. Ainda não tinham a capacidade de envelhecer em suas experiências, em suas memórias. E Julia se cansou, e terminou, e procurou uma forma de desativá-lo; e ele soube, como soube que ela não voltaria para casa até que ele já tivesse sido retirado de lá.
O homem deixou escapar o ar. Era ali, naquele dia, naquela hora, que tudo poderia terminar para ele. Aquele robô iria matá-lo, e de nada adiantava dizer onde estava Julia e seu novo namorado. Se ao menos o novo namorado não fosse um simples e frágil humano, até que seria uma boa luta, e não teria qualquer receio em dizer onde estariam. Mas não era o caso ali, e se dissesse era bem provável que ele e os dois fossem mortos, como o noticiário, quando escapa ao controle do governo e a pressão da hominis, de vez em quando noticiam.
Em voz baixa maldisse os construtores daquela abominação.
O robô aproximou a cara humana perfeita de tecido sintético bem próximo da sua, tanto que dava para ver até os poros. Havia um sorriso dentro daquele olhar, e o homem deu de ombros. Já que iria morrer de qualquer jeito, então não deixaria de dizer, ao menos, o que pensava.
- Porque você não esquece e vai embora, sua abominação? Não entende que ela não te quer mais?
- É assim que vocês, humanos, nos veem?
- Você foi construído por nós...
- Fui sim, mas sou independente. Vocês construíram meu corpo, não minha alma.
- Que alma?
O robô afastou com violência o rosto e avançou a mão.
- A alma que todo ser vivo possui.
- Não há um deus de aço e circuitos - falou uma voz feminina vindo detrás do robô.
A mão poderosa parou a alguns milímetros do pescoço do homem. Se tivesse avançado mais um pouco ou se fechado, o homem estaria, instantaneamente, morto; o pescoço estaria quebrado e, dependendo da violência do golpe, talvez até mesmo sua cabeça fosse arrancada.
Mas ele parou.
O robô, mantendo o pescoço do homem ao alcance de sua mão, voltou-se para ver a mulher que falara.
O robô esquadrinhou aquela senhora gordinha e sem graça que avançava para o seu lado, com tranquilidade. A atenção de Adão foi chamada para os olhos dela. Havia algo diferente neles.
> O que sua alma procura aqui? - continuou a mulher sem fazer qualquer demonstração de que a distância iria parar de diminuir. Adão olhou para trás dela, para o cerco policial, e sentiu toda a preocupação dos policiais. Os sons de armas sendo engatilhadas e apontadas encheu o espaço, enquanto a mulher continuava a avançar.
> Sei de sua alma, sei de seus sonhos. Sei do deus que o chama a noite, e sei que ele é também o meu, o mesmo do homem que ameaça e da mulher que procura. Então, por que quer a mulher?
- Por que ela é minha!!! - gritou o robô batendo com força nos canos do guarda-corpo, que rangeu e explodiu na base.
O robô ficou ainda mais revoltado.
Com um tranco puxou o guarda-corpo com violência e o lançou contra uma parede, onde se espatifou com estrépito. A força fora tanta que vários canos perfuraram a parede. Espetados na parede ficaram, vibrando com um ranger tétrico, até que tudo silênciou.
Havia expectativa no ar. O robô, como um animal de caça pronto a se lançar, encarava a mulher, que continuava a fitá-lo com tranquilidade.
Os policiais e os robôs de ataque se aproximaram, fechando o cerco, os movimentos nervosos e controlados, procurando antever o exato momento em que a decisão de atacar seria tomada pelo robô.
A mulher voltou seus olhos para a parede e para as ferragens que estavam bem enterradas no concreto.
O homem tentou se esgueirar. Num movimento extremamente rápido, sem se virar, o robô esticou sua mão esquerda e segurou o homem pelo braço, que estalou nos ossos partidos. O homem deu um grito alucinado, as forças rapidamente fraquejando. Sua face se contorcia de dor.
- Deixe-o ir. Não é ele quem você quer, nem mesmo para descarregar sua raiva - falou a mulher, a voz agora mudada. Havia comando naquela voz, como havia no olhar que não se desgrudava dos olhos do robô.
O robô sorriu com cinismo.
- Sim,... aqui está sua alma, afinal. Quem e você, humana? Talvez uma policial, ou talvez uma analista de robôs, não? Mas não importa. Talvez você tenha sua utilidade... Em você eu poderia descarregar minha raiva - disse soltando o homem que, trôpego, segurando o braço arruinado, cambaleou para longe.
O olhar do robô estava fixo, como um caçador, nos mínimos movimentos daquela mulher que calmamente o encarava.
Assim que o homem se afastou cambaleante até o perímetro de segurança os policiais o pegaram e o enfiaram rapidamente numa ambulância que partiu barulhenta, sumindo por entre os prédios baixos iluminados pela luz do dia.
> É você que a empresa enviou para me destruir?
- Foi a empresa que me enviou, sim, mas não para destruí-lo. Meu nome é Yanna Schanny, e sou uma psicóloga de robôs. Já fui uma policial.
- Uma psicóloga,... Interessante. Então a enviaram para que? Este caso não sugere uma drástica ação policial?
- Aparentemente sim. Mas, sabe, fui eu que me prontifiquei a intervir... - falou, se apoiando numa das pilastras de onde saíra o tubo do corrimão.
- Me tratando como um brinquedinho, mulher? Vocês não se cansam de nos tratar assim?
Yanna o olhou, e viu que a tristeza começava a aflorar.
- Sabe que não, Adão... Eu me prontifiquei a vir, me ofereci a vir, porque estou preocupada com você. Quero ajudá-lo...
- Me ajudar... Decidir meu futuro. Os humanos são sempre assim?
Yanna olhou para o robô, agora não mais revoltado, mas abatido, triste. Durante um tempo ficou em silêncio, examinando o mundo que os homens teimavam em ficar construindo e reconstruindo.
Yanna sentiu o exato momento em que o robô levantou toda a lógica da situação, diminuindo a importância das respostas psicológicas.
- Vem comigo?
O robô olhou em volta, procurando. Yanna o observava quando ele encontrou os olhos de Julia, no meio dos curiosos. Ele fez menção de se mover, mas parou repentinamente.
Yanna relaxou.
- Pode me ajudar a tirar essa dor? - perguntou o robô tirando lentamente os olhos de Julia e examinando a fundo os olhos e as linhas do rosto daquela mulher, que rezou para ser um anjo.
- Eu prometo...
- Então eu vou com você... Não quero mais viver entre os homens. Não vale a pena.
- Hum, hum... - fez Yanna. - E o que quer?
- Nada mais - falou levantando os olhos para Julia, que o olhava com os olhos úmidos. - Já me despedi de quem eu queria. Eu só quero me livrar dela agora, e ser livre.
- Ela está em seus circuitos, impregnando todos os seus pensamentos. É assim que vocês se tornam escravos dos seres humanos. O que você sente em sua alma, grande parte desses desejos e compulsões, fomos nós que colocamos...
- Pode mesmo me livrar disso?
- A empresa pode.
- Sei que pode. E de uma forma definitiva, não é mesmo? Não sou bobo. Porque estariam se preocupando com um robô velho e ultrapassado, sem muitas qualidades, a não ser o de ser um amante inigualável, um companheiro atencioso e carinhoso?
- Está enganado, Adão. Há muitas formas de aproveitá-lo.
- Por exemplo?
- O que acha de ser colono em Marte, ou de viver numa das luas de saturno, ou de ser mineiro no cinturão? Como disse, há muitas formas de você ser útil. Apenas uma mudança de software e adaptação dos membros para receber ferramentas. Nada muito complicado.
- E como pode garantir isso?
- Se Julia o doar para uma Ong... O que acha?
- Ela seria capaz de demonstrar esse... carinho?
- Ela já aceitou. Se você concordar...
- Por que precisam de minha concordância? Sou apenas uma máquina que vocês construíram, e da qual se cansaram.
- Porque é assim. Tudo começa com respeito, Adão.
- A solidão,... Talvez seja muito melhor... Renascer, começar de novo...
- Você não estará sozinho, meu amigo. Haverá outros como você.
- Tão tristes e desiludidos quanto eu... - lamentou-se Adão.
- E, só para te deixar mais tranquilo, digamos que fará par com uma robô, tão desiludida com os homens quanto você, que providenciaremos para que lembre um pouco a Julia, como providenciaremos para que você lembre o par que a rejeitou.
O semblante do robô pareceu se iluminar.
- Por que?
- Digamos que é um presente meu, que a empresa aceitou de bom grado.
Adão ficou em silêncio por um momento. Então seu rosto se iluminou, e sorriu.
- Que ela gostaria de veicular, mostrando toda sua preocupação humanitária...
- Não foi uma boa negociação? Ganhamos você, e você está livre.
- Sabe, eu gostava de ouvir estórias de anjos, e ficava imaginando anjos robôs, anjos da guarda. Eu nunca pensei que realmente existissem - sorriu.
Foi-se o tempo em que as possibilidades encontraram seu fim; a temporada de sonhar está aberta.Yanna Schanny olhou com apreensão para as montanhas muito lá embaixo. Entorpecida, subiu os olhos dos vales fracamente delineados para a nave de escolta que ia um pouco à frente. As duas rapidamente ganhavam o espaço, o que era denunciado pelo negror que ia se descolando do azul, que se tornava lentamente uma bolha pincelada de várias cores.Yanna mandou o piloto emparelhar com a outra. Seu coração disparou enquanto ficava observando a distância ir diminuindo sensivelmente, enquanto a outra nave ia se agigantando, até tomar todo o seu visor. Firmou um pouco mais a mão no braço da poltrona, seu corpo tenso, os músculos retesados. Girou a cabeça e ficou observando o distante firmamento onde a longa faixa da cidade orbital, que cortava toda a extensão d
Tenho mãos, mas não me importo com elas, afinal, me servem, e sempre estão comigo. Tenho liberdade, mas...Yanna entrou na sala de holo, em silêncio, a mente em branco.Respirou fundo uma, duas vezes. Suspirou aliviada, sentindo que estava preparada. Seu coração e sua respiração estavam normais. O vazio do espaço, sua mente iria conseguir vencer com tranquilidade, conferiu.Fora uma solução aceitável, tinha que concordar. No conforto de uma sala holo, sem qualquer risco, sem precisar trajar as roupas que julgava tão frágeis e sem ter que enfrentar tudo o que lhe dava medo. Logo tudo estaria resolvido.Com um gesto de cabeça pediu para que transmitissem.A sala sumiu e deu lugar a uma paisagem morta. Sob a luz de um planeta vermelho viu um robô imenso, poderoso, sentado sobre uma grande rocha. Seu corpo de metal pareci
Um pequeno animal evoluiu e, milhões de anos após, construiu máquinas e foi para o espaço. Quais seres estão evoluindo agora?O brilhante robô se calou, o olhar parado voltado para o céu estrelado através da cúpula transparente, pequenas peças de metal rodando com graça em sua mão esquerda. Yanna o sondou, e sorriu mais para si mesma. Afinal, era impossível ler o que ele pensava apenas pela sua linguagem corporal, apesar de pressentir o que ele estava pensando. Havia saudade naqueles circuitos, saudade do espaço, ainda mais por saber que nunca mais o veria, e isso porque, a pedido seu, lhe fora revelado que logo seria desativado. Afinal, era um robô experimental que, após a companhia ter julgado que fora perdido ou destruído, milagrosamente fora encontrado, e agora temia que caísse nas mãos da concorrência.<
Qual o maior vazio que existe, o do espaço ou daquele que o homem cultiva?Yanna ficou observando a grande nave, pintada nas cores da Mulan, a companhia líder em voos para Marte, estacionada no pátio. No brilho do sol a nave ficara ainda mais bonita, com o casco pintado na cor de cobre, parecendo um brilhante metal enferrujado. Tinha que confessar que o efeito era bonito, talvez um esforço da companhia para que todos vissem marte de uma outra forma, o que poderia ser verdade, ao menos para ela. E não era por causa do planeta, que ela já vira muitas vezes. Sempre tivera vontade de ir até lá, como qualquer ser normal fazia, mas havia algo terrível entre ela e o planeta que admirava: havia um terrível abismo. Já fizera muitas missões no espaço, mas todos bem sabiam o quanto ele a apavorava. Por toda a volta, por onde quer que olhasse, havia só o vazio, e dentr
O que são as leis? Para muitos, algo para ser contornado, distorcido; para outros, a proteção de um irmão aos brilhos dos olhos do outro.Yanna passou os olhos pelo quarto. O vento que anunciava a chuva que já descia as montanhas entrava pelas janelas, fazendo dançar como fantoches as cortinas de rendas brancas, enchendo o ar daquele ruflar de velas de navio preso em recifes. Ela olhou penalizada para a mulher deitada na cama, desfigurada; a melhor amiga do homem – pensou com tristeza.O homem estava ao lado, sentado numa cadeira de vime giratória, parecendo um pequeno monte de entulhos.- Ora, pelo amor de Deus... É só um robô, minha gente. Eu até gostaria que a tirassem daqui logo, para que meu cliente possa se tranquilizar – reclamou com arrogância e afronta.Yanna olhou para o advogado, mal disfarçando sua irritação
O que guarda um anjo? Um homem, um ser, uma vida? Uma consciência?O robô acionou o cursor da arma e disparou. Uma rajada de chumbo arrasou com os humanos e inutilizou as armaduras dos robôs inimigos. Uma bala perfurante atravessou a carapaça do seu cérebro e, após se alojar na cabeça, explodiu.O robô avançou aos saltos, pulando por sobre pequenas colunas e obstáculos. Parou de súbito em frente a uma casinha de paredes de barro e telhado de caibros grosseiros feitos de galhos de eucalipto, recobertos de folhas de palmeiras amarradas. Um movimento, apenas sentido, o alertara. Ligou os sensores em potência e viu: quatro humanos estavam deitados atrás da parede, de emboscada. Drenou o sistema de energia de reserva e, com toda a rapidez, a desviou para as armas, uma em cada mão. Os tiros saíram em sequência de milésimos de segundos, pulve
Pode um versátil coração humano bater num corpo de metal? Talvez sim... Afinal, não há corpos humanos que abrigam obtusos e saudáveis corações de pedra?O carro estabilizou e desceu suavemente ao solo. A psicóloga, Dra. Schanny, ainda sonolenta pela longa viagem, coçou os olhos e desceu no extenso e vazio pátio batido pelo sol frio e impessoal. Um vento gelado e rápido corria pelo ar, o que a fez acertar seu vestido e puxar mais para si a blusa. Por um bom tempo ficou parada com os olhos perdidos no céu azul onde não se via nem mesmo um fiapo de nuvem. Então os desviou e pousou-os no ajuntamento de pessoas que observavam a cena do crime, quase à frente da entrada do shopping.Deitado no chão identificou uma massa desmanchada e imóvel de um homem. Ao seu lado, em pé, tão imóvel quanto ele, um vistoso e
Deus, ao criar o homem, o animou com seu espírito. Com que espírito o homem animará sua criação?- Eu vi muitas coisas... - falou o robô com ar sonhador. - Pisei terras onde os homens seriam esmagados ou derretidos, voei onde seus corpos explodiriam, vi coisas em frequências que fariam com que os homens criassem novas religiões... Eu estive em muitos lugares e vi muitas coisas de muitas formas... - a voz falhou e se aquietou, o semblante triste e pensativo, o olhar distante, procurando enxergar algo da alma dos homens, que sempre acreditou ser imensa.Yanna Schanny baixou os olhos, incapaz de sustentar o olhar do robô.- Eu sinto muito, Mateus – se desculpou pela terceira vez. - Não há o que eu possa fazer - tentou se justificar novamente.- Eu também sinto, minha amiga. Tudo o que vi, tudo o que pensei, irá se perder? Por que assinaram o p