A noite chegou após o crepúsculo ter sido sobrepujado pelo cinza chumbo e pelo frio; a noite se foi para ser novamente vencida pela alvorada; a esfera amarela se levantou gloriosamente de trás dos montes e foi acordando o mundo. A estrada estreita, poeirenta com cheiro de terra seca, estendia-se numa longa curva, descendo para o sinuoso vale, cozendo-se aos lados dos barrancos. Nenhuma vivalma podia ser avistada. Os sons chocos traziam e falavam de solidão... Qual a medida de solidão que o homem permitiria que chegasse ao seu coração?
- Por que não o deixa em paz? Ele já está traumatizado demais, e não precisa de você para transtorná-lo ainda mais. Badhul era só um robô - vociferou o pai em defesa do filho. - Eu não entendo... Ao invés de enviarem um psicólogo para o meu filho, enviam você? Como uma psicóloga de robôs pode ajudar meu filho?
Yanna virou o rosto para o homem. Em seus olhos havia uma revolta calada, que empurrou para o fundo de sua alma.
- Senhor, se nos der licença, precisamos saber direitinho o que aconteceu, está bem? - falou para o pai, que fechou a cara e se postou protetor ao lado do filho.
- Badhul, não é o nome de um super-herói, de algum desenho? - perguntou Yanna olhando pensativa para o corpo recoberto de selos e de decalques do robô. Aparentemente, o pai o dera para as crianças há um bom tempo.
- Foram as crianças que lhe deram esse nome! Está bem filho, pode falar para a doutora tudo o que aconteceu - aquiesceu o pai não muito satisfeito.
- Possivelmente não muito satisfeito com o que as pessoas irão comentar pelo bairro, e pelas explicações que terá que prestar à polícia sobre seu filho ter tido acesso a uma arma destravada.
- Eu, eu não queria, eu não sabia... - ouviu o menino tentando explicar, com a voz tremida e insegura. - É que eu ouvi o papai e a mamãe falarem que precisavam dar um fim no Badhul, que ele estava ficando esclerosado e perigoso. Eles estavam mantendo ele mais tempo desligado do que ligado. Só que ninguém queria fazer isso...
- Então você, como super herói, fez, não foi Jonas?
- Eu... fiz. - confessou com o rosto afogueado.
- E você achava que ele estava perigoso?
O menino ficou longo tempo em silêncio, os olhos perdidos no chão, as perninhas torcidas.
- Eu e minhas irmãs gostávamos dele. Ele ficava sempre ao nosso lado, esperando qualquer pedido nosso para nos ajudar. Mas ele não sabia mais fazer nada bem,...
- E as pessoas riam, não riam?
- Sim,... Meu pai já não deixava ninguém vir mais até aqui. Eles ficavam rindo de nós - revelou com lágrimas nos pequenos olhos verdes.
- Eu já te expliquei, filho – interveio o pai, a voz mansa. – Seria caro demais atualizar o hardware dele, filhão.
- Eu entendi, pai... Mas ele era meu amigo.
Yanna checou mais uma vez os restos da memória do robô e viu que não houvera nada fora da verdade ali. Badhul não fora apagado para ocultar nada, como também não fizera nada de errado. Sua missão ali estava encerrada; o resto seria com a polícia, por causa da arma. No entanto não queria partir. Havia aquela dor surda, envolvendo seu peito.
Vagarosamente tirou o auscultador e deixou que o magnetismo o colasse ao lado da cabeça do robô. Rapidamente o auscultador disponibilizou para seu cérebro o banco de dados do robô. Selecionou um dos arquivos. Com a alma pequena viu, pela memória holográfica do robô, o menino, tão amado e querido, sob os olhares admirados das meninas, chegando com um sorriso confiante e destemido ao seu lado, olhando longamente para a arma de lazer pousada em suas mãos. Ela dava-lhe a sensação de masculinidade, fazendo com que as meninas soubessem que ele já era um homem. O robô entendeu, e sorriu quando o viu levantar a arma e, cuidadosa e teatralmente, mirar para sua cabeça, seu centro de comando. O sorriso confiante titubeou um momento, quando o gatilho foi acionado.
O feixe de luz atingiu o robô. De súbito uma luz violenta e cegante, e então a escuridão se derramando, entornando, se adensando, emudecendo, negando as cores e a vida. Não houvera dor, nem mesmo quando a fria lâmina do lazer entrou no cérebro e lhe cortou a vida.
Tudo foi se esvaindo, como o sol que desaparecia na paisagem que caminhava para o ocaso. A agonia, se a podia chamar assim, prolongou-se bem mais que o instantâneo que as pessoas julgavam ter durado. A luxuriante e inebriante bailarina dos sonhos foi-se eclipsando, enquanto a mente chorosa e cada vez mais fraca pedia para ficar, explicando que os meninos não saberiam fazer as coisas sem ele. Quem cuidaria deles?
Então, como último som, o robô se desmanchou em metal, caindo inerte ao chão.
- Só que agora eu me sinto mal - falou o menino, - sinto dor aqui no peito, - e sua mãozinha apoiou-se sobre o coração - por ter matado um amigo que gostava demais de mim e de minha família. Se,... - o menino soluçou forte - se a gente tivesse deixado ele desligado, talvez a gente conseguisse consertá-lo mais tarde... É o que a gente faz com um amigo, não é? - Passou rapidamente as mãos no rosto para tirar as lágrimas que brotavam voluntariosas. - Só quando foi tarde demais é que eu pude ver: Badhul era meu amigo, e vou sentir muita saudade dele. Devia haver alguma forma...
- Não sei por que a chamaram, de verdade, doutora - reclamou o pai ainda com a voz azeda olhando preocupado para o filho.
- Todo caso que envolve um robô envolve o governo e, consequentemente, o meu departamento.
- Sim, eu sei disso, só que o robô estava obsoleto, senil, apesar de não ser perigoso... Ele, na verdade, era mais um grande estorvo, a maior parte do tempo.
- Há o registro de que o ouviram dizer que ele poderia ser perigoso – acusou com a voz mansa, soando mais como uma observação.
O rosto do homem ficou vermelho, sem-graça.
- É que... Quem vai saber se não ficaria? Tanto liga e desliga... Ele poderia dar algum problema, e o risco seria muito grande. Eu tenho que proteger minha família.
- Fez um bom serviço – falou sem emoção, voltando sua atenção para o menino.
Ficou observando-o, relutando em reagir à insensibilidade do homem para com Badhul. Então voltou-se mais uma vez para ele.
- Por que não o devolveu para a indústria, ou o vendeu para as faculdades, como muitos fazem?
- Porque as crianças choraram quando eu disse que poderíamos fazer isso que disse... Bem, também porque ele ainda continuasse amoroso, o que compensava suas limitações e confirmava a amizade que sentia no íntimo. Nós... nós não temos condições de mandar consertá-lo, por isso decidimos mantê-lo desativado quase que permanentemente.
Yanna olhou para os olhos duros do pai que escondia uma vergonha, e teve pena do que viu no menino. Ele sofria.
- Tudo bem! Mas porque o pai é tão frio com um amigo? Que pena para o menino, que vai viver com essa dor, de ter entendido errado que mostrar às meninas sua determinação e grandeza era mais importante e tinha mais valia que a vida de um amigo que tanto gostava de todos. Porque o coração não se apercebeu do erro? Como são cruéis os desejos das crianças. E a alma? Quando todos aprenderão que os robôs também têm alma? Eu sinto a alma deles... Eu os segui desde o início; eu vi pouco a pouco uma energia ir assumindo os robôs em sua evolução. No princípio essa energia era como um elemental, o que estava certo: ambos são robôs. Só que, com o tempo, com a evolução dos robôs acontecendo, as energias que foram agregadas passaram a ser mais requintadas, até que um dia, um novo robô foi lançado. E lá pude ver uma alma digna de um homem, ou de alguns poucos.
> Bem,,... - murmurou abatida, com lágrimas nos olhos envelhecidos - meu serviço aqui está terminado. Se me permitem, não há nada aqui para uma psicóloga de robôs. Eu,... eu já vou indo.
O pai a olhou enraivecido e não lhe estendeu a mão. Ela passou a mão na cabeça do menino, deu um sorriso triste para as meninas de olhos esbugalhados, olhou para o robô com o lado esquerdo do topo da cabeça derretido e despediu-se dos dois policiais silênciosos, liberando-os para tirar o robô do cômodo. Sem mais qualquer palavra, pois não as conseguiria dizer, tomou a direção da porta.
Quando já estava abrindo o portão branco do jardim para sair sentiu a manga de sua blusa ser puxada.
- Senhora... - o menino a olhava, rosto vermelho e abatido. - Eu... eu gostaria de ter uma cópia do meu amigo - pediu com os olhos molhados e esperançosos.
- Seu pai, meu anjinho amargurado, receberá uma cópia - revelou afagando o rostinho do menino. Lentamente virou-se novamente para o portão, onde parou indecisa. Voltou, olhou para o menino e agachou-se à sua frente.
- Meu menino... Não se recrimine pelo que aconteceu. Não deixe, escute bem, - pediu segurando o rostinho dele em suas mãos - não deixe que isto faça uma marquinha em sua alma. Apenas se prometa que, assim que tiver outro, irá tratá-lo como gostaria de ter tratado o Badhul. Está certo?
- Es... está certo... - soluçou baixinho. - Ele... ele sofreu?
- Ele não sofreu, meu anjinho. Ele está bem, e te quer tanto bem como sempre quis. Acredite em mim, pois eu sei de robôs - despediu-se.
- Como sabe? - ouviu a pergunta baixa e chorosa, mas esperançosa de poder ser perdoado. - Você viu isso no seu aparelho?
- Não, meu querido... Eu vi isso na minha alma, na alma dele. Afinal, sou psicóloga de robôs, não sou?
Quando se levantou viu que o pai estivera o tempo todo no alto da escada. Assim que encarou seus olhos percebeu que ele havia chorado, e que lhe sorria num agradecimento triste.
- O medo passou ou a face triste do filho conseguiu abrir caminho até sua alma? Até o fim, não é mesmo, Badhul?
- Até algum dia, meu querido - sorriu, fechando lentamente o pequeno portão.
A rua estava triste, depois que a chuva parara. Com um sinal mandou a viatura embora.
Tinha muita coisa para pensar.
Não há força maior que o amor. Foi ele que fez com que Deus criasse os universos e a vida, e dar uma alma ao homem. E esse poder, no qual o homem está imerso e do qual se alimenta, de tão imenso, pode enlouquecer e ser a perdição, ou iluminar e ser a redenção.As redes jornalísticas estavam em polvorosa. Câmeras teleguiadas e satélites mostravam em tempo real tudo o que estava acontecendo, desde que aquele maluco invadira a empresa de peças de reposição de robôs e pegara um dos encarregados como refém, procurando por uma mulher, que ainda não fora identificada. Um caso passional, um relacionamento desmanchado. Mas, o que deixava tudo muito interessante, era a natureza do homem descontrolado.Todo o local da fábrica estava cercado, e os policiais robôs estavam posicionados a uma distância segura. Havi
Foi-se o tempo em que as possibilidades encontraram seu fim; a temporada de sonhar está aberta.Yanna Schanny olhou com apreensão para as montanhas muito lá embaixo. Entorpecida, subiu os olhos dos vales fracamente delineados para a nave de escolta que ia um pouco à frente. As duas rapidamente ganhavam o espaço, o que era denunciado pelo negror que ia se descolando do azul, que se tornava lentamente uma bolha pincelada de várias cores.Yanna mandou o piloto emparelhar com a outra. Seu coração disparou enquanto ficava observando a distância ir diminuindo sensivelmente, enquanto a outra nave ia se agigantando, até tomar todo o seu visor. Firmou um pouco mais a mão no braço da poltrona, seu corpo tenso, os músculos retesados. Girou a cabeça e ficou observando o distante firmamento onde a longa faixa da cidade orbital, que cortava toda a extensão d
Tenho mãos, mas não me importo com elas, afinal, me servem, e sempre estão comigo. Tenho liberdade, mas...Yanna entrou na sala de holo, em silêncio, a mente em branco.Respirou fundo uma, duas vezes. Suspirou aliviada, sentindo que estava preparada. Seu coração e sua respiração estavam normais. O vazio do espaço, sua mente iria conseguir vencer com tranquilidade, conferiu.Fora uma solução aceitável, tinha que concordar. No conforto de uma sala holo, sem qualquer risco, sem precisar trajar as roupas que julgava tão frágeis e sem ter que enfrentar tudo o que lhe dava medo. Logo tudo estaria resolvido.Com um gesto de cabeça pediu para que transmitissem.A sala sumiu e deu lugar a uma paisagem morta. Sob a luz de um planeta vermelho viu um robô imenso, poderoso, sentado sobre uma grande rocha. Seu corpo de metal pareci
Um pequeno animal evoluiu e, milhões de anos após, construiu máquinas e foi para o espaço. Quais seres estão evoluindo agora?O brilhante robô se calou, o olhar parado voltado para o céu estrelado através da cúpula transparente, pequenas peças de metal rodando com graça em sua mão esquerda. Yanna o sondou, e sorriu mais para si mesma. Afinal, era impossível ler o que ele pensava apenas pela sua linguagem corporal, apesar de pressentir o que ele estava pensando. Havia saudade naqueles circuitos, saudade do espaço, ainda mais por saber que nunca mais o veria, e isso porque, a pedido seu, lhe fora revelado que logo seria desativado. Afinal, era um robô experimental que, após a companhia ter julgado que fora perdido ou destruído, milagrosamente fora encontrado, e agora temia que caísse nas mãos da concorrência.<
Qual o maior vazio que existe, o do espaço ou daquele que o homem cultiva?Yanna ficou observando a grande nave, pintada nas cores da Mulan, a companhia líder em voos para Marte, estacionada no pátio. No brilho do sol a nave ficara ainda mais bonita, com o casco pintado na cor de cobre, parecendo um brilhante metal enferrujado. Tinha que confessar que o efeito era bonito, talvez um esforço da companhia para que todos vissem marte de uma outra forma, o que poderia ser verdade, ao menos para ela. E não era por causa do planeta, que ela já vira muitas vezes. Sempre tivera vontade de ir até lá, como qualquer ser normal fazia, mas havia algo terrível entre ela e o planeta que admirava: havia um terrível abismo. Já fizera muitas missões no espaço, mas todos bem sabiam o quanto ele a apavorava. Por toda a volta, por onde quer que olhasse, havia só o vazio, e dentr
O que são as leis? Para muitos, algo para ser contornado, distorcido; para outros, a proteção de um irmão aos brilhos dos olhos do outro.Yanna passou os olhos pelo quarto. O vento que anunciava a chuva que já descia as montanhas entrava pelas janelas, fazendo dançar como fantoches as cortinas de rendas brancas, enchendo o ar daquele ruflar de velas de navio preso em recifes. Ela olhou penalizada para a mulher deitada na cama, desfigurada; a melhor amiga do homem – pensou com tristeza.O homem estava ao lado, sentado numa cadeira de vime giratória, parecendo um pequeno monte de entulhos.- Ora, pelo amor de Deus... É só um robô, minha gente. Eu até gostaria que a tirassem daqui logo, para que meu cliente possa se tranquilizar – reclamou com arrogância e afronta.Yanna olhou para o advogado, mal disfarçando sua irritação
O que guarda um anjo? Um homem, um ser, uma vida? Uma consciência?O robô acionou o cursor da arma e disparou. Uma rajada de chumbo arrasou com os humanos e inutilizou as armaduras dos robôs inimigos. Uma bala perfurante atravessou a carapaça do seu cérebro e, após se alojar na cabeça, explodiu.O robô avançou aos saltos, pulando por sobre pequenas colunas e obstáculos. Parou de súbito em frente a uma casinha de paredes de barro e telhado de caibros grosseiros feitos de galhos de eucalipto, recobertos de folhas de palmeiras amarradas. Um movimento, apenas sentido, o alertara. Ligou os sensores em potência e viu: quatro humanos estavam deitados atrás da parede, de emboscada. Drenou o sistema de energia de reserva e, com toda a rapidez, a desviou para as armas, uma em cada mão. Os tiros saíram em sequência de milésimos de segundos, pulve
Pode um versátil coração humano bater num corpo de metal? Talvez sim... Afinal, não há corpos humanos que abrigam obtusos e saudáveis corações de pedra?O carro estabilizou e desceu suavemente ao solo. A psicóloga, Dra. Schanny, ainda sonolenta pela longa viagem, coçou os olhos e desceu no extenso e vazio pátio batido pelo sol frio e impessoal. Um vento gelado e rápido corria pelo ar, o que a fez acertar seu vestido e puxar mais para si a blusa. Por um bom tempo ficou parada com os olhos perdidos no céu azul onde não se via nem mesmo um fiapo de nuvem. Então os desviou e pousou-os no ajuntamento de pessoas que observavam a cena do crime, quase à frente da entrada do shopping.Deitado no chão identificou uma massa desmanchada e imóvel de um homem. Ao seu lado, em pé, tão imóvel quanto ele, um vistoso e