O sol queimava seu rosto, o suor escorria pela face e lhe pingava nos lábios. O gosto salgado e o calor o fez despertar. A visão embaçada dificultava sua orientação. Piscou algumas vezes e só então percebeu vozes. Sua visão voltara ao normal gradativamente; olhou ao redor e se viu perdido no meio de uma grande floresta, com árvores colossais, cheias de cipós, flores, frutos e pássaros canoros, além de macacos e outros bichos correndo pelos galhos. Seu olhar desceu até o nível do solo e deparou-se com três jovens garotas, sendo uma delas, uma bela indígena aos moldes estereotipados e as outras duas pareciam garotas da cidade com um leve parentesco indígena.
— O que aconteceu? Como vim parar aqui? — perguntou Bira levantando-se devagar se apoiando num tronco caído e coberto de musgo e líquen.
— Ao que parece você é mais um dos sequestrados — disse a garota de cabelos compridos, sentada numa pedra e esfregando as têmporas em movimentos circulares enquanto mantinha os olhos fechados.
— Sequestrado? Como assim? — Levantou-se com um pouco de dificuldade e olhou ao redor. Apesar de toda beleza daquele lugar, o sentimento de aflição lhe atingiu e logo ele começou a pensar nos motivos que levaria alguém a sequestrá-lo. — Vocês… Vocês também?
— Ela não — afirmou a garota de cabelos curtos apontado para a indígena. — Ela trouxe a gente aqui. Não quis nos dizer nada até que você tivesse acordado.
Ubirajara espantado olhou para a mulher e por conta de sua timidez, um rubor lhe tomou a face. Ele arrumou a camisa e tocou em algo familiar guardado no bolso frontal. Pegou o pequeno objeto de bambu enfeitado e mostrou para a indígena.
— É por causa disso? Eu... Eu não sei como isso foi parar na minha casa. Juro mesmo.
A mulher sorriu e assumiu uma postura mais relaxada. Caminhou até um tronco grande coberto por um carpete verde de musgo, sentou-se com as pernas flexionadas contra o peito e disse:
— Não precisam ter medo de mim. Não sequestrei vocês. Apenas os trouxe aqui, conforme me foi ordenado. Quanto ao objeto que segura, é o Oke Mboia; chave, na sua língua.
— Chave? Chave de quê? — perguntou Ubirajara abrindo os braços.
— Essa não é a pergunta. O que nós estamos fazendo aqui? Essa é a pergunta. – A garota de cabelos curtos parecia calma e concentrada.
Anahí sorriu e esticou as pernas. Levantou-se, caminhou em círculos lentamente no espaço entre eles, fechou os olhos e virou o rosto para cima, de modo que fosse banhado pelos raios do Sol. Depois de algum tempo ela olhou para os três ali e explicou calmamente:
— Vocês são os escolhidos! Anhangá me ordenou que os buscassem para libertarem Monã da prisão a qual o confinou Tupã. O Oke Mboia é a chave para o mundo além do véu, lugar onde terão de ir para libertar o criador e supremo regente de tudo.
— Espera, espera! — Bira verbalizou em tom agressivo e impaciente. — Tá zoando com a minha cara? Está pensando que sou otário, ou que sou um maluco lunático que acredita nessas palhaçadas?
— Então, você é o descrente? Interessante! — sussurrou e observou-o com um fino sorriso. — Deveria acreditar, afinal, viestes dessas origens, não?
— Sou neto de índio sim, e daí? Por causa disso sou obrigado a acreditar que Tupã é o deus do trovão? Sou um homem das ciências, minha senhora. Como é que vou embora? Anda me diz! — vociferou girando ao redor de si próprio buscando uma saída.
— Este objeto que segura… Ele é a maior prova do digo. Tente se livrar dele e verá que o que digo é verdade. — Anahí usou um tom provocativo.
— Espera! O que temos a ver com isso? — a garota de cabelos compridos perguntou cerrando os olhos, tentando protege-los da menor presença da luz.
— Cada um de vocês possui um papel importante, mesmo que não se deem conta disso. “Três filhos Yebá Bëló enviará para que libertem Monã.” — citou um trecho qualquer de alguma profecia antiga. — “Eles virão de terras e povos distintos. Trarão consigo as marcas de Andurá, Akuanduba e Yorixiriamori. A espiritualidade, a razão e a paixão”.
— Do que é que está falando? Por favor... — bradou Bira quase implorando.
Anahí observou o semblante impaciente de Ubirajara e depois fitou a garota sentada esfregando as têmporas, como se estivesse enferma. Voltou o olhar para o professor e assumindo um tom de voz quase melancólico disse:
— Tupã aprisionou Monã e depois ficou descontrolado. A fúria o dominou e começou a castigar todos os guardiões do mundo. Jaci temendo sua fúria decidiu fugir de Tupã e assim se afasta dele, deixando-o cada vez mais furioso. Anhangá vendo o caos do mundo implorou à Yebá Bëló para que o ajudasse a libertar Monã, então com sua benção Anhangá localizou os escolhidos da deusa e enviou-me para reuni-los. Agora vocês possuem a missão sagrada de libertar o grande criador do céu, da terra, do mar, da vida e dos deuses.
— Isso é um absurdo! — gritou Ubirajara apoiando uma mão no quadril.
— Não é não! — protestou a garota de cabelos compridos, interrompendo sua massagem nas têmporas. Levantou-se devagar, olhou para as moças, depois para o professor e apontou para cada um deles. — Somos nós! Você é o homem da razão, tal qual Akuanduba que tocava sua flauta para trazer ordem ao mundo e aos homens. Janaina capotou meu carro quando viu na beira da estrada uma árvore em chamas, que é a imagem de Andurá. Para mim, sobrou Yorixiriamori, o toque da paixão, não é? — perguntou sorrindo para a companheira, e ao vê-la corar, virou-se para o homem e prosseguiu. — Você é daqui, Janaina é filha de remanescentes Quéchuas e eu venho de uma linhagem dos Dakota, que originou meu nome.
— Pronto! Agora deu mesmo, outra maluca — praguejou Bira enquanto caminhava em círculos. — Então, espertalhona… Prove-me que vocês estão certas.
— Ora essa professor, você mesmo já provou. — disse a garota de cabelos compridos colocando as mãos na cintura.
— Co...Como sabe que sou professor? — indagou Bira apontando o dedo para ela.
— Li um dos seus artigos na Science. Aquele que o senhor intitulou de “Afastamento lunar”. Isso não lhe diz nada? Jaci, lua… Afastando-se de Tupã, da Terra — especulou a garota balançando as mãos no ar, desenhando círculos invisíveis.
Ubirajara foi tomado por um sentimento estranho. Um grande vazio lhe invadiu o estômago e uma tontura repentina o atingiu. Ele se apoiou numa árvore próxima e abaixou a cabeça, puxou ar para suprir seus pulmões, enxugou o suor e ponderou sobre tudo aquilo. Depois de alguns segundos, já recuperado ele olhou para as garotas, pensativo e procurando uma resposta lógica para acabar com o assunto, mas por fim soltou as palavras a esmo.
— É absurdo! Absurdo! Absurdo! – Caminhando em círculo e bufando enquanto gritava. — Tá... Então mostre! Mostre-me! — berrou ele irritado.
Anahí aproximou-se do homem furioso. Pousou a mão sobre seu ombro e pegou o Oke Mboia de sua mão. Levantou-o até a altura dos olhos de Ubirajara e perguntou:
— O que você vê?
Como foi que não percebi isso antes? Furos parecidos com os de uma flauta. Será que... Não!
Ele tomou o objeto em suas mãos e o analisou por alguns segundos. Instintivamente levou-o aos lábios e assoprou. Um som fino e contínuo pairou no ar.
— Toque com o coração! — orientou a moça indígena sorrindo e afastando-se dele com as mãos cruzadas atrás do corpo.
Ubirajara a encarou por cima dos óculos e franziu o cenho. Respirou fundo e mais uma vez assoprou o pequeno bastão oco enfeitado com penas coloridas e sementes. Fechou os olhos e se concentrou no som doce que a flauta produziu, mesmo acreditando que aquilo não passava de uma técnica para acalmá-lo. Seus dedos obedeceram a um comando místico tapando e destampando os furos da flauta. Produzira assim uma melodia relaxante que agradava a todos que ouviam. Quem diria? Ao menos um talento a pessoa tem que ter na vida. Pensou enquanto tocava uma bela melodia.
O clima mudou repentinamente. O sol fora encoberto por grandes nuvens escuras, um vento forte começou a soprar trazendo com ele o gélido ar com aspecto de morte. Os animais fugiram gritando e a terra começou vibrar. Ubirajara olhou ao redor tentando ver de onde vinha o furacão, mas não o encontrou. Ao invés disso a árvore mais próxima dele começou a tremer e soltar folhas como se fossem flocos de neve numa tempestade. Um buraco do tronco que antes servia de casa para alguns roedores começou emitir uma luz vibrante de cor branca. Ubirajara parou de tocar e observou aquele estranho fenômeno que para ele era inexplicável. O tronco da árvore trincou de cima a baixo, como se fosse feita de vidro. Os veios brilhantes lembravam filetes de magma sobre as costas de um vulcão, mas na cor branca. O tronco da grande árvore inchou e se contorceu, Bira correu e escondeu-se atrás de um cepo caído no qual a indígena sentara há pouco.
— Vai explodir! — gritou ele.
As garotas se protegeram no mesmo esconderijo, e o tronco da árvore se fragmentou em diversas lascas numa poderosa e estrepitosa explosão. Quando se sentiu seguro para observar, Ubirajara levantou-se e espiou.
— Não é possível... — disse o professor incrédulo e estático.
As garotas levantaram-se sacudindo a poeira e as farpas de madeira que havia sobre elas. O que viram impressionou a todos. No lugar onde estava a árvore, havia um grande círculo alvo de luz, cálida e pulsante.
— E agora professor, acredita em mim? — perguntou a moça indígena pousando a mão sobre seu ombro. — A propósito, sou Anahí a mensageira de Anhangá. Acredito que nosso destino está adiante.
Anahí caminhou para dentro do círculo de luz e desapareceu em seguida. A garota de cabelos curtos se aproximou e parou diante do majestoso círculo luminoso. Banhou as mãos com a luz e sorrindo ultrapassou a barreira cálida e alva. A garota de cabelos compridos se aproximou da luz, olhou para trás sobre os ombros e questionou:
— Você não vem professor?
Ao atravessar o feixe de luz Janaina deparou-se com um lugar sinistro tomado por uma atmosfera tenebrosa e com sutil aspecto de morte, como nos filmes antigos de terror.Ela olhou para Anahí e tentou decifrar as emoções estampadas no rosto da mulher. Era quase impossível, pois, seu semblante apresentava muitas facetas, cada uma com uma emoção diferente.O ar era pesado e frio, a neblina dificultava a visão de média e longa distância, o cheiro de podridão era nauseante, as sombras dançando sob os escassos feixes de luz que dardejavam através das imensas copas das árvores ao redor, aumentavam a tenebrosidade local, mas nada era pior que os guinchos e uivos que vinham das entranhas da floresta. A pele de Janaina arrepiou-se completamente; seus pés travaram e ela não conseguiu sentir nada além de pavor.Uma mão pousou em seu ombro e imediatamente ela
Horas depois de atravessarem o rio com a ajuda de Anhangá, o grupo encontrava-se na tal clareira descrita por Anahí. Estavam sentados ao redor de uma fogueira assando peixes e preás. Anahí sentara ao lado do velho índio que parecia estar mergulhado num profundo transe. Ubirajara atiçava as brasas com uma vareta, e quando as fagulhas luminosas subiam com o ar quente, ele as acompanhava até que deixassem de existir. Dakota sentou-se em frente à Janaina e a observava comer com muito cuidado para não se sujar. Sorriu secretamente dos hábitos “frescos” da companheira.Ao contrário de Dakota, Janaina Quispe não era muito tolerante ao ambiente fora das grandes capitais. Não suportava vermes e tão pouco insetos. No entanto, sua companheira não se importava com isso, essa era uma característica dela e ninguém pode negar sua essência; talvez possa mud
Ubirajara jamais imaginou sair da academia para viver uma grande aventura, viajar para longe ou mesmo fazer amizade com pessoas tão distintas, na verdade, tão excêntricas quanto ele. Em todos os seus quarenta e seis anos sempre optou pela segurança, nunca agindo por impulso ou por intuição, esse comportamento o levou às suas conquistas acadêmicas. Mas naqueles últimos dias, tudo havia mudado. Encontrou um estranho objeto em sua casa, fora retirado de sua zona de segurança, atirado num mundo cheio de inconstâncias e principalmente… Passou a correr perigos reais, algo que jamais cogitou acontecer.Bira é um homem alto, pele escura por conta da miscigenação, olhos castanho-escuro, descendente indígena, cabelos lisos, curtos e grisalhos. Seu porte físico é de um típico cientista sedentário, barba rala e óculos velhos; na verdade, em estad
O sol brilhava avermelhado por trás das copas das árvores mais altas marcando o entardecer. Logo a noite chegaria e os envolveria com seu frio, escuro e infinito manto salpicado de diamantes luminosos.— Iara, o que dizem de você é verdade? — perguntou Ubirajara nas costas do grande jacaré.Ela nadava de costas habilmente ao lado do imenso réptil, observou Bira por alguns instantes e então disse:— A verdade é complicada. Mas garantidamente há verdade em tudo o que é dito sobre mim.— Então… Você afoga homens propositalmente? — indagou o professor meio receoso com a resposta.— Sim, mas só se merecerem. Está com medo? — provocou ela iniciando um fino e sedutor sorriso. Depois mergulhou por algum tempo e emergiu com um enorme sapo nas mãos. Aproximou-o de seu ouvido, meneou com a cabeça e larg
A sensação de dormência se estendia por todo o corpo e as terminações nervosas formigavam insuportavelmente. A cabeça parecia inchada e vazia, os olhos doíam ao ponto de causar náuseas. As mãos estavam trêmulas e a garganta seca com gosto azedo.Assim despertou Ubirajara, em meio a uma enorme mata fechada, sombria e fria. Ele levantou-se devagar ainda meio zonzo e observou ao redor. Não havia ninguém ali além dele, sem trilhas, não havia saída, pouca luz e o ar gelado. Tentou escutar algo que o pudesse guiar para fora daquele lugar, mas tudo o que ouvia eram araras e periquitos cantando. Vez ou outra, um arbusto farfalhava por conta de algum animal que o atravessava. Vendo-se totalmente sozinho, sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha.Bira pôs-se a caminhar pela mata usando seu cajado para abrir caminho entre os cipós e arbustos. Saltou grandes ra&iacu
Janaina acordou com o ombro ardendo e com a boca seca. Passou a língua sobre os lábios e sentiu-os arder, deu-se conta que estavam rachados, talvez por exposição ao frio, ou, porque estava desidratada. Abriu os olhos lentamente e sentiu a luz do Sol incidir sobre eles gerando certo desconforto.Sentou-se e sentiu o tecido que lhe cobria correr por seu peito e cair sobre seu colo, só então se deu conta de que estava nua, numa cama feita de palha e dentro de uma cabana do mesmo material. Enrolou-se com o cobertor fino e pôs-se de pé olhando seus arredores. A cabana era pequena, chão de terra firme, havia uma janela de madeira, mas estava fechada, assim como uma porta feita com galhos secos e amarrados com cipós.Dentro da cabana havia o catre onde dormira, potes feitos de barro e pintados à mão, alguns possuíam gravuras toscas feitas com técnicas rudimentares, outros eram t&a
Dakota acordou com o céu claro acima de si, o vento forte e o ar rarefeito a fez perceber-se no alto de uma montanha, sob o sol escaldante e cercada por pássaros que se aproximavam cuidadosamente de seu corpo. Ela sentou-se e espantou os animais com gritos e gestos, agarrou seu arco, olhou ao redor e viu a imensidão plana e rochosa ondular sob o calor e caminhou até à beirada do abismo. Vai ser uma longa descida.Olhou de volta para o local onde acordara e notou algumas poucas árvores secas e arbustos frutíferos. Coletou algumas amoras e as comeu saboreando-as como se fossem as últimas da Terra. Em seguida quebrou alguns galhos e com o auxílio de pequenos seixos, os transformou em setas para o arco.Depois de prender as flechas com um cipó e ata-las às costas, Dakota caminhou pela montanha em busca de uma trilha que a levasse para baixo. O sol castigava sua pele, estava suada e
O trio estava reunido ao redor de uma fogueira vívida e crepitante. Seus corpos iluminados pela luz alaranjada e bruxuleante estavam diferentes desde que se reuniram pela última vez. Embora não houvesse nenhuma mudança física permanente, suas almas haviam se transformado. O conceito que cada um aceitou para si, engendrou-se de tal maneira à sua realidade espiritual, que as mudanças mentais e espirituais acabaram por iluminar a forma física deles ao ponto de parecerem diferentes aos olhares uns dos outros.Ubirajara havia pintado seu corpo com urucu e argila preta, desenhando pequenos símbolos que se uniam uns aos outros e se tornavam uma grande e única pintura tendo como tela toda a extensão de sua pele. Ele segurava um graveto e cutucava as brasas do fogo para que as fagulhas subissem com o ar quente. Olhava-as subindo e desaparecer no céu. Com exceção ao crepitar do fogo e o cr