Capítulo 3

O sol queimava seu rosto, o suor escorria pela face e lhe pingava nos lábios. O gosto salgado e o calor o fez despertar. A visão embaçada dificultava sua orientação. Piscou algumas vezes e só então percebeu vozes. Sua visão voltara ao normal gradativamente; olhou ao redor e se viu perdido no meio de uma grande floresta, com árvores colossais, cheias de cipós, flores, frutos e pássaros canoros, além de macacos e outros bichos correndo pelos galhos. Seu olhar desceu até o nível do solo e deparou-se com três jovens garotas, sendo uma delas, uma bela indígena aos moldes estereotipados e as outras duas pareciam garotas da cidade com um leve parentesco indígena.

— O que aconteceu? Como vim parar aqui? — perguntou Bira levantando-se devagar se apoiando num tronco caído e coberto de musgo e líquen.

— Ao que parece você é mais um dos sequestrados — disse a garota de cabelos compridos, sentada numa pedra e esfregando as têmporas em movimentos circulares enquanto mantinha os olhos fechados.

— Sequestrado? Como assim? — Levantou-se com um pouco de dificuldade e olhou ao redor. Apesar de toda beleza daquele lugar, o sentimento de aflição lhe atingiu e logo ele começou a pensar nos motivos que levaria alguém a sequestrá-lo. — Vocês… Vocês também?

— Ela não — afirmou a garota de cabelos curtos apontado para a indígena. — Ela trouxe a gente aqui. Não quis nos dizer nada até que você tivesse acordado.

Ubirajara espantado olhou para a mulher e por conta de sua timidez, um rubor lhe tomou a face. Ele arrumou a camisa e tocou em algo familiar guardado no bolso frontal. Pegou o pequeno objeto de bambu enfeitado e mostrou para a indígena.

— É por causa disso? Eu... Eu não sei como isso foi parar na minha casa. Juro mesmo.

A mulher sorriu e assumiu uma postura mais relaxada. Caminhou até um tronco grande coberto por um carpete verde de musgo, sentou-se com as pernas flexionadas contra o peito e disse:

— Não precisam ter medo de mim. Não sequestrei vocês. Apenas os trouxe aqui, conforme me foi ordenado. Quanto ao objeto que segura, é o Oke Mboia; chave, na sua língua.

— Chave? Chave de quê? — perguntou Ubirajara abrindo os braços.

— Essa não é a pergunta. O que nós estamos fazendo aqui? Essa é a pergunta. – A garota de cabelos curtos parecia calma e concentrada.

Anahí sorriu e esticou as pernas. Levantou-se, caminhou em círculos lentamente no espaço entre eles, fechou os olhos e virou o rosto para cima, de modo que fosse banhado pelos raios do Sol. Depois de algum tempo ela olhou para os três ali e explicou calmamente:

— Vocês são os escolhidos! Anhangá me ordenou que os buscassem para libertarem Monã da prisão a qual o confinou Tupã. O Oke Mboia é a chave para o mundo além do véu, lugar onde terão de ir para libertar o criador e supremo regente de tudo.

— Espera, espera! — Bira verbalizou em tom agressivo e impaciente. — Tá zoando com a minha cara? Está pensando que sou otário, ou que sou um maluco lunático que acredita nessas palhaçadas?

— Então, você é o descrente? Interessante!  — sussurrou e observou-o com um fino sorriso. — Deveria acreditar, afinal, viestes dessas origens, não?

— Sou neto de índio sim, e daí? Por causa disso sou obrigado a acreditar que Tupã é o deus do trovão? Sou um homem das ciências, minha senhora. Como é que vou embora? Anda me diz! — vociferou girando ao redor de si próprio buscando uma saída.

— Este objeto que segura… Ele é a maior prova do digo. Tente se livrar dele e verá que o que digo é verdade. — Anahí usou um tom provocativo.

— Espera! O que temos a ver com isso? — a garota de cabelos compridos perguntou cerrando os olhos, tentando protege-los da menor presença da luz.

— Cada um de vocês possui um papel importante, mesmo que não se deem conta disso. “Três filhos Yebá Bëló enviará para que libertem Monã.” — citou um trecho qualquer de alguma profecia antiga. — “Eles virão de terras e povos distintos. Trarão consigo as marcas de Andurá, Akuanduba e Yorixiriamori. A espiritualidade, a razão e a paixão”.

— Do que é que está falando? Por favor... — bradou Bira quase implorando.

Anahí observou o semblante impaciente de Ubirajara e depois fitou a garota sentada esfregando as têmporas, como se estivesse enferma. Voltou o olhar para o professor e assumindo um tom de voz quase melancólico disse:

— Tupã aprisionou Monã e depois ficou descontrolado. A fúria o dominou e começou a castigar todos os guardiões do mundo. Jaci temendo sua fúria decidiu fugir de Tupã e assim se afasta dele, deixando-o cada vez mais furioso. Anhangá vendo o caos do mundo implorou à Yebá Bëló para que o ajudasse a libertar Monã, então com sua benção Anhangá localizou os escolhidos da deusa e enviou-me para reuni-los. Agora vocês possuem a missão sagrada de libertar o grande criador do céu, da terra, do mar, da vida e dos deuses.

— Isso é um absurdo! — gritou Ubirajara apoiando uma mão no quadril.

— Não é não! — protestou a garota de cabelos compridos, interrompendo sua massagem nas têmporas. Levantou-se devagar, olhou para as moças, depois para o professor e apontou para cada um deles. — Somos nós! Você é o homem da razão, tal qual Akuanduba que tocava sua flauta para trazer ordem ao mundo e aos homens. Janaina capotou meu carro quando viu na beira da estrada uma árvore em chamas, que é a imagem de Andurá. Para mim, sobrou Yorixiriamori, o toque da paixão, não é? — perguntou sorrindo para a companheira, e ao vê-la corar, virou-se para o homem e prosseguiu. — Você é daqui, Janaina é filha de remanescentes Quéchuas e eu venho de uma linhagem dos Dakota, que originou meu nome.

— Pronto! Agora deu mesmo, outra maluca — praguejou Bira enquanto caminhava em círculos. — Então, espertalhona… Prove-me que vocês estão certas.

— Ora essa professor, você mesmo já provou. — disse a garota de cabelos compridos colocando as mãos na cintura.

— Co...Como sabe que sou professor? — indagou Bira apontando o dedo para ela.

— Li um dos seus artigos na Science. Aquele que o senhor intitulou de “Afastamento lunar”. Isso não lhe diz nada? Jaci, lua… Afastando-se de Tupã, da Terra — especulou a garota balançando as mãos no ar, desenhando círculos invisíveis.

Ubirajara foi tomado por um sentimento estranho. Um grande vazio lhe invadiu o estômago e uma tontura repentina o atingiu. Ele se apoiou numa árvore próxima e abaixou a cabeça, puxou ar para suprir seus pulmões, enxugou o suor e ponderou sobre tudo aquilo. Depois de alguns segundos, já recuperado ele olhou para as garotas, pensativo e procurando uma resposta lógica para acabar com o assunto, mas por fim soltou as palavras a esmo.

— É absurdo! Absurdo! Absurdo! – Caminhando em círculo e bufando enquanto gritava. — Tá... Então mostre! Mostre-me! — berrou ele irritado.

Anahí aproximou-se do homem furioso. Pousou a mão sobre seu ombro e pegou o Oke Mboia de sua mão. Levantou-o até a altura dos olhos de Ubirajara e perguntou:

— O que você vê?

Como foi que não percebi isso antes? Furos parecidos com os de uma flauta. Será que... Não!

Ele tomou o objeto em suas mãos e o analisou por alguns segundos. Instintivamente levou-o aos lábios e assoprou. Um som fino e contínuo pairou no ar.

— Toque com o coração! — orientou a moça indígena sorrindo e afastando-se dele com as mãos cruzadas atrás do corpo.

Ubirajara a encarou por cima dos óculos e franziu o cenho. Respirou fundo e mais uma vez assoprou o pequeno bastão oco enfeitado com penas coloridas e sementes. Fechou os olhos e se concentrou no som doce que a flauta produziu, mesmo acreditando que aquilo não passava de uma técnica para acalmá-lo. Seus dedos obedeceram a um comando místico tapando e destampando os furos da flauta. Produzira assim uma melodia relaxante que agradava a todos que ouviam. Quem diria? Ao menos um talento a pessoa tem que ter na vida. Pensou enquanto tocava uma bela melodia.

O clima mudou repentinamente. O sol fora encoberto por grandes nuvens escuras, um vento forte começou a soprar trazendo com ele o gélido ar com aspecto de morte. Os animais fugiram gritando e a terra começou vibrar. Ubirajara olhou ao redor tentando ver de onde vinha o furacão, mas não o encontrou. Ao invés disso a árvore mais próxima dele começou a tremer e soltar folhas como se fossem flocos de neve numa tempestade. Um buraco do tronco que antes servia de casa para alguns roedores começou emitir uma luz vibrante de cor branca. Ubirajara parou de tocar e observou aquele estranho fenômeno que para ele era inexplicável. O tronco da árvore trincou de cima a baixo, como se fosse feita de vidro. Os veios brilhantes lembravam filetes de magma sobre as costas de um vulcão, mas na cor branca. O tronco da grande árvore inchou e se contorceu, Bira correu e escondeu-se atrás de um cepo caído no qual a indígena sentara há pouco.

— Vai explodir! — gritou ele.

As garotas se protegeram no mesmo esconderijo, e o tronco da árvore se fragmentou em diversas lascas numa poderosa e estrepitosa explosão. Quando se sentiu seguro para observar, Ubirajara levantou-se e espiou.

— Não é possível... — disse o professor incrédulo e estático.

As garotas levantaram-se sacudindo a poeira e as farpas de madeira que havia sobre elas. O que viram impressionou a todos. No lugar onde estava a árvore, havia um grande círculo alvo de luz, cálida e pulsante.

— E agora professor, acredita em mim? — perguntou a moça indígena pousando a mão sobre seu ombro. — A propósito, sou Anahí a mensageira de Anhangá. Acredito que nosso destino está adiante.

Anahí caminhou para dentro do círculo de luz e desapareceu em seguida. A garota de cabelos curtos se aproximou e parou diante do majestoso círculo luminoso. Banhou as mãos com a luz e sorrindo ultrapassou a barreira cálida e alva. A garota de cabelos compridos se aproximou da luz, olhou para trás sobre os ombros e questionou:

— Você não vem professor?

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