A música alta, os flashes coloridos e freneticamente pulsantes ditavam o ritmo em que os corpos deveriam se movimentar. O cheiro de fumaça química misturava-se ao odor de suor dos corpos dançantes. Cada movimento selava o destino do inevitável choque com outro corpo. Pele deslizava sobre pele por conta da camada escorregadia de suor que se formava sobre a cútis.
O ar era pesado e doce. As bocas abertas esperavam que outros lábios viessem aplacar a sede de beijo e os olhos fechados davam asas à imaginação guiada pelo prazer químico. Janaina abria os olhos esporadicamente, apenas para se guiar e não se perder da companheira. Seus braços e pernas se moviam instintivamente, sua cabeça chacoalhava de um lado para o outro fazendo seu cabelo suado chicotear o próprio rosto.
Aos poucos o volume diminuiu até que a música cessou e seu corpo parou junto. Ela abriu os olhos vagarosamente e eis que varreram a multidão em busca de Dakota. Seus olhares se cruzaram e ela sorriu. Moveu-se devagar abrindo caminho entre as pessoas no grande salão. Agarrou a mão da outra moça e aproximou os lábios do ouvido dela.
— Quer beber algo? — Na verdade havia sido quase uma súplica.
Dakota meneou com a cabeça afirmando que sim. As duas afastaram algumas pessoas usando os braços para empurrá-las para os lados e caminharam até o balcão, sentam-se nos banquinhos tripé e pegaram o catálogo. Dakota rapidamente colocou o dedo sobre uma palavra e declarou:
— Quero essa!
— Mas você nem olhou, nem ao menos sabe qual é — questionou Janaina, largando o catálogo sobre o balcão de vidro com diversas manchas líquidas.
— E daí? Quero essa e pronto!
Janaina observou a companheira e percebeu o olhar levemente estrábico por conta da grande quantidade de álcool que ela havia consumido, mas aquele era um dia especial, podiam comemorar, pois, no dia seguinte Dakota receberia a notícia que tanto esperou; a nota de sua dissertação de mestrado. Não era sempre que faziam loucuras dessa natureza, então decidiu que não bancaria a chata e fez o pedido de duas bebidas iguais.
— Vamos tomar só mais essa e vamos embora. Tudo bem? — impôs Janaina, olhando a fixamente.
— Por quê? A noite mal começou — redarguiu Dakota, apoiando os cotovelos sobre o balcão e encaixando o queixo nas mãos em forma de concha.
— É... Eu sei. Mas você já está bêbada e isso não vai ser bom para você. Amanhã é seu grande dia, lembra?
— Ai Janaina, às vezes você é um porre! Parece uma velha. Que saco! — reclamou a moça gesticulando uma das mãos.
O barman serviu as bebidas e discretamente colocou um lenço de papel com seu telefone anotado, bem debaixo de um dos copos.
Dakota pegou sua bebida e virou o copo com imensa ansiedade. Janaina, por outro lado tomou um gole e percebeu o lenço sobre o balcão. Sorriu, balançou a cabeça para os lados e discretamente jogou o guardanapo no lixo. Tomou o restante da bebida e colocou o copo sobre o balcão. Dakota levantou-se abruptamente e bateu o copo no balcão, porém, com força demais. O copo se quebrou e as lascas de vidro cortaram sua mão. O sangue rubro e quente brotou do fundo da carne e escorreu pela palma da mão aberta enquanto a garota apenas observava sem reação. Janaina apressadamente segurou sua mão e levara-a ao banheiro.
— Olha só o que você fez! Isso foi fundo. Temos que lavar — disse Janaina preocupada. Ligou a torneira e enfiou a mão da namorada na água.
— Ai! Para! — reclamou Dakota após sentir a água entrar em seu ferimento. — Estarei bem amanhã. Relaxa!
Janaina procurou no bolso algo que pudesse colocar sobre o corte e encontrou um adesivo próprio para curativos. Ela era um poço de desastres, sempre se cortava das formas mais imprevisíveis e por conta disso, sempre andava com alguns desses adesivos. Colocou-o sobre o corte e beijou suavemente a mão da garota.
— Pronto, vai sarar!
As duas se olharam profundamente e o momento regado com o silêncio fez com que seus lábios se aproximassem e se tocassem com suavidade, depois com vontade e por fim com um ardente desejo e paixão.
Após alguns minutos, as garotas se encontravam do lado de fora da balada. Caminhavam solitárias pela calçada rumando para o local onde deixaram o carro. Dakota estava mais bêbada que de costume e apoiava-se em Janaina para manter o equilíbrio.
Depois de contornar a esquina Janaina avistou o SUV vermelho da companheira, parado ao lado de uma árvore de Ipê-rosa. O carro estava coberto por flores recém-caídas. A garota não se incomodava com aquilo, na verdade, pensava que as flores davam um charme extra ao veículo. Dakota não tinha condição alguma de dirigir. Então Janaina a colocou no banco do carona e a prendeu com o cinto de segurança. Assim que a garota foi acomodada no carro, caiu em sono profundo.
Janaina dirigiu calmamente por ruas e avenidas completamente vazias ao som dos clássicos do rock transmitidos toda madrugada por uma determinada rádio local. A paisagem monótona a fazia relaxar e por vezes piscar demoradamente. O medo de sofrer um acidente fez seu coração acelerar. O nível de adrenalina aumentou e o sono passou. No entanto, Janaina viu à margem da estrada uma coisa que lhe chamou a atenção. Seus olhos fixaram na paisagem lateral, sua mente viajou para um mundo distante enquanto ela observava a grande árvore em chamas. Não era como um incêndio, a árvore estava tomada pelas chamas de maneira sobrenatural e inexplicável, como se o fogo fosse sua aura, seu perfume exalando, seu próprio brilho celestial, como se fogo e madeira fosse uma coisa só.
— Você foi escolhida! – Uma misteriosa voz ecoou em sua mente.
Ela passou tempo demais focada na árvore envolta em chamas e esqueceu-se da estrada, quando retomou sua atenção, percebera que era tarde demais. Inevitavelmente o carro chocou-se contra a mureta de proteção, girou sobre ela e desceu capotando pelo barranco até parar num charco aos pés da grande árvore seca. Janaina olhou para a companheira inconsciente, mas protegida pelo airbag e respirou aliviada.
Do lado de fora um par de pernas se aproximou da janela do carro sorrateiramente. A moça pendurada de cabeça para baixo procurou a trava do cinto, tentando se soltar antes que aquela pessoa chegasse perto demais. O desespero a tornou incapaz de realizar tal ação. O par de pés parou rente à porta.
O corpo se dobrou e se abaixou para observar o interior do veículo. Um rosto jovem e bonito de uma mulher indígena se revelou na penumbra. Ela estendeu a mão para dentro do carro e destravou o cinto de segurança. A mulher ajudou Janaina a sair do automóvel e a colocou sentada no chão, afastada do acidente. Retirou Dakota do veículo e a colocou deitada na relva com bastante delicadeza.
— Obrigada! — Janaina agradeceu tentando iniciar um diálogo. — Quem é você?
A mulher aproximou-se dela parecendo uma personagem de histórias em quadrinhos. Pele avermelhada, cabelos negros, lisos e compridos, olhos tão escuros como a noite, lábios carnudos cor de jambo, adornos artesanais enfeitando punhos, pescoço e tornozelos, e só vestindo uma saia curta feita com um tecido escuro. Abaixou-se próximo a ela e disse:
— Anahí é meu nome. Fui enviada para buscá-las.
— Buscar-nos? Do que está falando? Eu morri por acaso? Você é tipo um anjo? — perguntou Janaina meio confusa com a fala da mulher.
— Vocês foram escolhidas!
— Do que é que você está falando? — questionou Janaina levantando-se devagar, olhando em volta para tentar se localizar.
— Monã clama por ajuda! Não há tempo a perder, o mundo todo corre perigo. Vocês precisam abrir a passagem.
— Mas do que é que você está falando? — Janaina olhou para o carro capotado e sorriu. — Entendi. Eu estou sonhando. Devo ter batido a cabeça e estou delirando. Você é fruto da minha imaginação.
— Chame como quiser. Mas preciso levá-las agora. — Imediatamente a mulher gritou algumas palavras incompreensíveis para Janaina, bateu o pé no chão e tudo o que a outra moça enxergou foi um grande clarão alaranjado, e depois, tudo se apagou.
O sol queimava seu rosto, o suor escorria pela face e lhe pingava nos lábios. O gosto salgado e o calor o fez despertar. A visão embaçada dificultava sua orientação. Piscou algumas vezes e só então percebeu vozes. Sua visão voltara ao normal gradativamente; olhou ao redor e se viu perdido no meio de uma grande floresta, com árvores colossais, cheias de cipós, flores, frutos e pássaros canoros, além de macacos e outros bichos correndo pelos galhos. Seu olhar desceu até o nível do solo e deparou-se com três jovens garotas, sendo uma delas, uma bela indígena aos moldes estereotipados e as outras duas pareciam garotas da cidade com um leve parentesco indígena.— O que aconteceu? Como vim parar aqui? — perguntou Bira levantando-se devagar se apoiando num tronco caído e coberto de musgo e líquen.— Ao que parece você &eac
Ao atravessar o feixe de luz Janaina deparou-se com um lugar sinistro tomado por uma atmosfera tenebrosa e com sutil aspecto de morte, como nos filmes antigos de terror.Ela olhou para Anahí e tentou decifrar as emoções estampadas no rosto da mulher. Era quase impossível, pois, seu semblante apresentava muitas facetas, cada uma com uma emoção diferente.O ar era pesado e frio, a neblina dificultava a visão de média e longa distância, o cheiro de podridão era nauseante, as sombras dançando sob os escassos feixes de luz que dardejavam através das imensas copas das árvores ao redor, aumentavam a tenebrosidade local, mas nada era pior que os guinchos e uivos que vinham das entranhas da floresta. A pele de Janaina arrepiou-se completamente; seus pés travaram e ela não conseguiu sentir nada além de pavor.Uma mão pousou em seu ombro e imediatamente ela
Horas depois de atravessarem o rio com a ajuda de Anhangá, o grupo encontrava-se na tal clareira descrita por Anahí. Estavam sentados ao redor de uma fogueira assando peixes e preás. Anahí sentara ao lado do velho índio que parecia estar mergulhado num profundo transe. Ubirajara atiçava as brasas com uma vareta, e quando as fagulhas luminosas subiam com o ar quente, ele as acompanhava até que deixassem de existir. Dakota sentou-se em frente à Janaina e a observava comer com muito cuidado para não se sujar. Sorriu secretamente dos hábitos “frescos” da companheira.Ao contrário de Dakota, Janaina Quispe não era muito tolerante ao ambiente fora das grandes capitais. Não suportava vermes e tão pouco insetos. No entanto, sua companheira não se importava com isso, essa era uma característica dela e ninguém pode negar sua essência; talvez possa mud
Ubirajara jamais imaginou sair da academia para viver uma grande aventura, viajar para longe ou mesmo fazer amizade com pessoas tão distintas, na verdade, tão excêntricas quanto ele. Em todos os seus quarenta e seis anos sempre optou pela segurança, nunca agindo por impulso ou por intuição, esse comportamento o levou às suas conquistas acadêmicas. Mas naqueles últimos dias, tudo havia mudado. Encontrou um estranho objeto em sua casa, fora retirado de sua zona de segurança, atirado num mundo cheio de inconstâncias e principalmente… Passou a correr perigos reais, algo que jamais cogitou acontecer.Bira é um homem alto, pele escura por conta da miscigenação, olhos castanho-escuro, descendente indígena, cabelos lisos, curtos e grisalhos. Seu porte físico é de um típico cientista sedentário, barba rala e óculos velhos; na verdade, em estad
O sol brilhava avermelhado por trás das copas das árvores mais altas marcando o entardecer. Logo a noite chegaria e os envolveria com seu frio, escuro e infinito manto salpicado de diamantes luminosos.— Iara, o que dizem de você é verdade? — perguntou Ubirajara nas costas do grande jacaré.Ela nadava de costas habilmente ao lado do imenso réptil, observou Bira por alguns instantes e então disse:— A verdade é complicada. Mas garantidamente há verdade em tudo o que é dito sobre mim.— Então… Você afoga homens propositalmente? — indagou o professor meio receoso com a resposta.— Sim, mas só se merecerem. Está com medo? — provocou ela iniciando um fino e sedutor sorriso. Depois mergulhou por algum tempo e emergiu com um enorme sapo nas mãos. Aproximou-o de seu ouvido, meneou com a cabeça e larg
A sensação de dormência se estendia por todo o corpo e as terminações nervosas formigavam insuportavelmente. A cabeça parecia inchada e vazia, os olhos doíam ao ponto de causar náuseas. As mãos estavam trêmulas e a garganta seca com gosto azedo.Assim despertou Ubirajara, em meio a uma enorme mata fechada, sombria e fria. Ele levantou-se devagar ainda meio zonzo e observou ao redor. Não havia ninguém ali além dele, sem trilhas, não havia saída, pouca luz e o ar gelado. Tentou escutar algo que o pudesse guiar para fora daquele lugar, mas tudo o que ouvia eram araras e periquitos cantando. Vez ou outra, um arbusto farfalhava por conta de algum animal que o atravessava. Vendo-se totalmente sozinho, sentiu um arrepio lhe percorrer a espinha.Bira pôs-se a caminhar pela mata usando seu cajado para abrir caminho entre os cipós e arbustos. Saltou grandes ra&iacu
Janaina acordou com o ombro ardendo e com a boca seca. Passou a língua sobre os lábios e sentiu-os arder, deu-se conta que estavam rachados, talvez por exposição ao frio, ou, porque estava desidratada. Abriu os olhos lentamente e sentiu a luz do Sol incidir sobre eles gerando certo desconforto.Sentou-se e sentiu o tecido que lhe cobria correr por seu peito e cair sobre seu colo, só então se deu conta de que estava nua, numa cama feita de palha e dentro de uma cabana do mesmo material. Enrolou-se com o cobertor fino e pôs-se de pé olhando seus arredores. A cabana era pequena, chão de terra firme, havia uma janela de madeira, mas estava fechada, assim como uma porta feita com galhos secos e amarrados com cipós.Dentro da cabana havia o catre onde dormira, potes feitos de barro e pintados à mão, alguns possuíam gravuras toscas feitas com técnicas rudimentares, outros eram t&a
Dakota acordou com o céu claro acima de si, o vento forte e o ar rarefeito a fez perceber-se no alto de uma montanha, sob o sol escaldante e cercada por pássaros que se aproximavam cuidadosamente de seu corpo. Ela sentou-se e espantou os animais com gritos e gestos, agarrou seu arco, olhou ao redor e viu a imensidão plana e rochosa ondular sob o calor e caminhou até à beirada do abismo. Vai ser uma longa descida.Olhou de volta para o local onde acordara e notou algumas poucas árvores secas e arbustos frutíferos. Coletou algumas amoras e as comeu saboreando-as como se fossem as últimas da Terra. Em seguida quebrou alguns galhos e com o auxílio de pequenos seixos, os transformou em setas para o arco.Depois de prender as flechas com um cipó e ata-las às costas, Dakota caminhou pela montanha em busca de uma trilha que a levasse para baixo. O sol castigava sua pele, estava suada e