Assim que entramos no carro e Gabriel deu ré, o som inconfundível de um pneu estourando cortou o ar, deixando um silêncio pesado no ambiente. Antes que ele pudesse reagir, um segundo estrondo ecoou, e eu congelei por um momento, tentando manter a expressão o mais natural possível. Meu coração acelerou um pouco, mas mantive a calma. Eu tinha feito minha parte, e agora o resto estava nas mãos do destino. Gabriel saiu do carro e foi até os pneus, encarando-os com um rosto fechado, quase implacável. Sofia e eu descemos do carro em seguida e eu fiquei analisando aquele homem. Seu olhar percorria os cacos de vidro espalhados ao redor, e pude ver a frustração crescendo nele. — Que azar, senhor Gabriel! — exclamei, tentando disfarçar o nervosismo com um tom de surpresa. — Dois pneus furados de uma vez! — Cacos de vidro? Aqui na grama, bem na entrada da pousada? — ele murmurou, a voz tensa, quase como se estivesse falando para si mesmo, tentando compreender o que
Uma tempestade? Eu não me lembro de ter visto uma tempestade na previsão do tempo. Mas estávamos afastados da cidade, então não seria surpresa que aqui o clima fosse outro. Enquanto eu fazia o check-in, analisava a situação com cuidado. Sem celular, sem internet e, segundo a senhora nervosa à minha frente — que já havia pedido desculpas umas cinco vezes —, sem telefone também. Maravilha. Sem conexão com o mundo. Respirei fundo, mantendo o rosto impassível, mas o incômodo era real. Esse dia se tornava cada vez mais imprevisível e isso me irritava profundamente. Olhei ao redor e reparei nas paredes antigas da pousada, adornadas por móveis que pareciam ter resistido a uma década de tempestades como aquela. Sofia e Celina estavam sentadas no sofá gasto do saguão com as roupas ainda úmidas. — O senhor deseja um quarto ou dois? — perguntou a mulher. Olhei para a Celina e Sofia. Dividir o quarto não fazia sentido. Eu tinha dinheiro para pagar três quartos se qu
O quarto era maior do que eu esperava, mas ainda assim não parecia suficiente para acomodar tanto desconforto não dito. Duas camas, uma de casal e uma de solteiro, dividiam o espaço com um banheiro minúsculo e uma poltrona que parecia mais decorativa do que funcional. O ambiente estava pesado. Eu estava irritado pois esse dia não saia não saía nada certo, ainda mais com a tempestade lá fora, cujos ventos faziam as janelas tremerem com a força do vendaval. Sofia foi a primeira a quebrar o silêncio que dominava o ambiente. Seu entusiasmo, embora deslocado pela situação, trouxe uma leveza que contrastava com o clima denso. Ela pulou na direção da cama, sorrindo, sem perceber o peso do momento. — Vamos dormir aqui hoje, papai? — ela perguntou, com um brilho nos olhos, já correndo para testar a cama de solteiro, como se o desconforto da tempestade fosse apenas uma brincadeira. — Com sorte, não — respondi, aproximando-me. — Ah, papai. Tomara que sim
Estava ansiosa, esperando a resposta da Celina e do papai sobre o que faríamos até a luz voltar. Na verdade, na verdade mesmo, eu estava com fome. Acho que já tinha passado da hora do almoço há muito tempo, mas eu não queria estragar esse momento. Não podia fazer nada errado. Eu estava com medo da tempestade sim, mas eu sinto que papai me protegeria dela, assim como me protegeu no parque. Como eles não diziam nada sobre o que fariamos, eu sugeri: — Vamos contar histórias dos contos de fadas! Meu pai me repreendeu com o olhar e eu tive medo. Esqueci que ele não gostava mais dessas coisas… mas antes até inventávamos histórias juntos. — Sofia… o que eu te disse sobre conto de fadas? — perguntou ele, sem olhar para mim. — Mas antes você gostava… Me contava tantos… — Eu estava errado em encher a sua cabeça com aquilo. E você deve focar nas coisas reais. Entendeu? — sua voz ficou mais séria e ele olhou para mim. Fiquei em silêncio, imaginando que tinha m
“Eu também sinto falta da minha mãe. Todos os dias.” A frase de Sofia continuava ressoando na minha cabeça, como um eco impossível de silenciar. Eu precisei sair do quarto, encontrar um momento para respirar. Inventei uma desculpa qualquer, dizendo que ia buscar algo para comermos. Sofia não tinha almoçado. Quando cheguei à recepção, a dona da pousada me entregou alguns sanduíches, desculpando-se por não ter nada melhor. Eu assenti, mas minhas palavras soaram distantes, como se viessem de um lugar muito longe de mim. Minha mente ainda estava presa naquelas palavras de Sofia. Voltei ao quarto, subindo os degraus, cada passo pesado, arrastado pela dúvida que parecia se acumular mais a cada instante. Quando abri a porta, encontrei Sofia já adormecida, sua respiração suave cortando o silêncio. Celina estava sentada na beirada da cama, com um olhar que parecia carregar mais perguntas do que julgamentos. Eu fiquei parado, com os sanduíches nas mãos, incapaz de me
Já passava das cinco da tarde quando voltamos para casa. Como era de se esperar, todos estavam em pânico procurando por Gabriel. Meu celular registrava cinquenta e quatro chamadas perdidas, mas a tempestade havia deixado o aparelho sem sinal. Para piorar, depois a bateria acabou, e ninguém conseguiu contato conosco. Só na mansão descobri o motivo de tanto desespero: Gabriel havia quebrado o celular. Ele não revelou em que circunstâncias isso aconteceu, mas, em menos de quarenta minutos, já haviam providenciado um novo aparelho para ele, completo com backup de todos os dados. Cerca de duas horas depois, ele estava atualizado sobre tudo o que havia perdido naquele dia. Assim que cruzamos a entrada da mansão, a realidade nos atingiu com força. Gabriel mal teve tempo de tirar o paletó antes que a casa se transformasse em uma extensão da empresa. Funcionários entravam e saíam com papéis, relatórios e problemas que pareciam urgentes demais para esperar. Ele havia passado
Gabriel não precisou dizer nada; eu sabia o que fazer. Permaneci no quarto com Sofia. Ajudei-a a tomar banho, servi o jantar ali mesmo, e depois a acompanhei enquanto escovava os dentes no pequeno banheiro ao lado. Brincamos juntas, rindo de coisas simples, tentei criar um mundo só nosso, um refúgio temporário em meio ao caos lá fora, para evitar que ela ficasse triste. Mas depois de um tempo, percebi que eu não conseguia decifrar as emoções de Sofia. Sei que estava chateada pelo pai estar distante outra vez, mas seu rosto não apresentava a expressão de decepção. Sentada em seu quarto, diante do espelho, enquanto eu penteava seu cabelo, notei algo diferente. Havia um brilho em seu olhar que eu não consegui compreender. Percebendo que eu a observava com atenção, ela quebrou o silêncio: — Sabe de uma coisa, babá Celina? Hoje não foi tão ruim. A declaração de Sofia me pegou de surpresa. Pisquei algumas vezes, tentando processar o que acabara de ouvir.
Sofia lançou um último olhar para o espelho, examinando o reflexo com atenção, antes de sorrir, como se estivesse satisfeita com o meu trabalho ao pentear seu cabelo. Em seguida, deitou-se na cama sem reclamar. Dei um beijo em sua testa, ajeitando os lençóis ao redor do seu pequeno corpo. — Boa noite, Celina — murmurou, a voz arrastada pelo sono. — Boa noite, Sofia — respondi, tentando transmitir toda a calma que ela parecia precisar. Enquanto apagava a luz e fechava a porta, me permiti um instante de silêncio no corredor. A pequena Sofia, com sua força e resiliência, conseguia enfrentar um vazio que até eu achava esmagador. Mas Gabriel... ele parecia estar à deriva, incapaz de encontrar o caminho de volta para a filha. Mas na pousada, eu tive a sensação de que Gabriel se importava com Sofia. Suas ações eram de um homem que amava a filha. Eu vi amor nas pequenas coisas que ele fazia, na maneira como olhava para Sofia, como se estivesse tentando, com todas as f