Rafael travou ao ouvir o nome da minha irmã. Seus dedos afundaram nos ombros da moça enquanto a envolvia no próprio casaco com movimentos mecânicos. O tecido ainda guardava o calor do corpo dele quando encostou nela.— Eu e a Aurora somos amigos de infância. — Ele disse como se recitasse um mantra. A mão esbranquiçada de Mariana subiu até seu antebraço num gesto de lagarta. — É minha obrigação proteger a irmã dela.Meus dedos encontraram sangue morno escorrendo da orelha. A ferroada aguda me fez rir com amargura.— Proteger de quem? De mim? Até bandido tem direito a defesa. Você me esmurrou sem perguntar nada. Aurora nunca levantou a mão para mim. Quem é você para fazer isso?A intervenção veio em sussurros melífluos:— Rafa, não precisa brigar. Não culpe a Natália. Eu só acho que ela não deveria ter postado minhas fotos na internet. Eu... Eu...— Fotos? — O grito ecoou nas paredes de azulejo. Seu empurrão me arremessou contra o reboco áspero. O tornozelo estalou sob meu peso. — Nojent
Dei um leve balanço de cabeça, confirmando com frieza na voz: — Pode jogar tudo fora mesmo. — Tudo isso? Vai virar lixo assim de uma vez? — O rapaz de mudança arregalou os olhos, incrédulo.Fiz que sim com um aceno curto, com um olhar firme.— Esse relacionamento sempre foi lixo. O que vem do lixo pro lixo volta. Não tem nada que mereça ficar. Dois dias. Só faltavam dois dias pro dia que combinei com a Aurora: minha viagem internacional.Naquela noite, Rafael não apareceu.Uma mensagem da Aurora piscou na tela: [Natália, amanhã te busco no aeroporto. Manda os dados do voo.]Respondi seca: [Beleza.]O voo era de madrugada. Passei minha última noite na casa que agora parecia um casarão abandonado. Decidida a cortar tudo, faltava só resolver o tal "Fundo Familiar para o Futuro".— Fundo Familiar para o Futuro... — Repeti baixo e dei uma risada ácida.Rafael, claro, deu mais um de seus desaparecimentos. Ignorou todas ligações. Até que caiu uma mensagem: [Natália, já te dei 24h. Se não v
Enquanto isso, no Brasil.Rafael segurava o celular com as mãos trêmulas, os olhos vermelhos de ansiedade. Discou para o amigo antes mesmo de raciocinar, pressionando o aparelho contra o ouvido.Do outro lado, a voz rouca respondeu: — Natalia não me mandou nada. O que aconteceu entre vocês?— Nada... Foi mal, cara. — A resposta saiu em tom áspero. Ele desligou bruscamente, os dedos deixando marcas de suor na tela escura.Quando o décimo contato da lista também desconhecia o meu paradeiro, algo estalou nas têmporas dele. O aparelho voou contra o azulejo num arco perfeito, se estilhaçando em mil pedaços de vidro temperado que dançaram sob a luz.Nos meus aniversários passados, Rafael surgia como relógio suíço, sempre um dia antes, grudado em mim até a última badalada. Mas esse ano, que devia ser o mais importante, o mundo virou de ponta-cabeça.Naquela manhã, acordava com o braço dormente sob o peso do corpo de Mariana. Ao estender a mão para o criado-mudo, a tela fria do celular confir
A cuidadora afastou Rafael com o quadril, dizendo com uma voz prática de quem entrega encomenda: — Ô moço, confundiu a funcionária com esposa? Vim trazer os exames da Natália. Ela está em casa? Rafael agarrou a pasta com as mãos tremendo. Ao abrir, travou naquele monte de termo médico - os dedos brancos de tanto pressionar a pasta. Laudo claro: [Natália Andrade, fratura exposta de tornozelo, 5 pontos por corte de vidro.]A cuidadora cruzou os braços, com aquele jeito de quem já viu tudo. — Anteontem ela me fez levar ela para casa e esqueceu isso no meu carro. Ah, você é o marido dela? Então por que não foi buscá-la quando ela quebrou a perna e perdeu tanto sangue?O estômago de Rafael embrulhou. Anteontem era o dia que levou Mariana para jantar. Só agora ligou: foi justamente na saída do hospital, depois de deixar Natália...Um nó de culpa apertou o peito. Sem pensar, esmurrou a parede. O suor escorria pela nuca, a respiração falhando entre os dentes cerrados.Do meu lado, Aurora ar
A porta se abriu de repente. O sorriso fácil de Aurora se petrificou ao avistar Breno estendido na cama. Vacilou por um instante, mas logo ergueu a voz: — Breno, seu sem-vergonha! Disse que prepararia surpresa para minha irmã, mas pelo visto é pior que susto! Me interpus rápido, tentando remediar: — Aurora, não é como pensa, nós só... Breno se levantou com desenvoltura, cantarolando com leveza: — Aurora, cada casal tem seus segredinhos, não é mesmo? Aurora esfregou a testa, meneando a cabeça com resignação. Estendeu a mão para acariciar meu rosto, mas interceptei seu gesto: — Ele estava dopado! Só dei uma ajudinha manual. Seu semblante endureceu de repente, perguntando:— Esses malditos fizeram isso com você outra vez? Sobre Breno, Aurora já me havia contado toda a trama. A família Valente tinham dois herdeiros. Com o pai gravemente enfermo, o irmão mais velho se empenha em macular a reputação do caçula, o retratando como playboy inconsequente para desagradar acionistas. Noss
No dia seguinte, quando experimentava um vestido de noiva, o barulho lá fora me fez congelar. — Amor! Amor, estou aqui! Natália, sou eu, o Rafael!Apoiada na enfermeira, saí cambaleando do quarto. Lá estava ele de terno completo, segurando com uma mão, buquê de gardênia branca e na outra aquela caixinha azul de joalheria. O rosto marcado de cansaço tentava disfarçar com sorriso forçado, parado na soleira como estátua.— Me perdoa, foi tudo culpa minha. Nem imaginava que seu pé estava nesse estado! — Os olhos dele escorregaram para o meu tornozelo engessado, e sua voz carregada de remorso teatral. — Fui um babaca. A Mariana... Aquilo já acabou faz tempo, juro! Apenas somos amigos. Se você quiser, nem olho mais na cara dela! Senti um nó na garganta, metade vontade de rir, metade nojo.— Amigos? — A palavra saiu com gosto amargo. Todo mundo sabia que Mariana era o amor da vida dele. Começou comigo por pirraça, e agora que eu estava saindo de cena para deixar o caminho livre, ele vinha
Rafael se ajoelhou, a voz rouca e teimosa rasgando o ar: — Só pode me amar nessa vida! Você não tem capacidade para amar mais ninguém! Olhei para ele com frieza, um sorriso de desprezo brotando o fundo do peito. Esse homem sempre foi assim, achando que me tinha na palma da mão. Contudo, desde quando eu seria marionete dele?— Engolir barata e dizer que é caviar nunca foi meu forte. — Soltei gelada. — Então pode pegar sua barata podre e vazar de uma vez. Foi quando Rafael desmontou. Nunca tinha visto aquilo - soluços convulsivos, mãos tremendo, a postura desmanchando feito açúcar na chuva.— Natália, eu te amo. — Ele engasgou entre lágrimas. — Depois de tudo, percebi que só você importa. Viver sem você está me matando, não aguento mais um dia! Pelo amor de Deus, foram nove anos juntos! Nove anos acordando do seu lado, te vendo todo santo dia. Como joga isso fora?Um enjoo subiu da boca do estômago. Lembrei daquela tarde fuçando o Twitter da Mariana. Nos dois primeiros anos, postagem
— Aurora, para com isso! Não vamos arrumar confusão, né? — Interrompei.Não era dó do Rafael que me consumia, mas o medo das tretas que minha irmã podia se enfiar.Ia me meter no meio quando o Breno me puxou com força pro colo dele.— Deixa rolar, Bolinha foi adestrada para não acabar com ninguém. — Aurora respondeu, fazendo pouco caso.— E outra, um lixo desse nem merece a baba da cadela. — Completou o Breno com meio sorriso.Os berros do Rafael ecoavam pelo lugar, e o desgraçado não parava de gritar meu nome: — Natália, a gente não acabou! Eu não aceitei! Está fazendo isso só para me provocar, eu sei... Aurora deu uma risada sem graça e mandou: — Bolinha, pega a boca dele! Num piscar de olhos, o sangue escorria pelo rosto do Rafael todo.Meu peito apertou, com medo da merda que ia dar, e disse: — Aurora, para com essa palhaçada, pelo amor de Deus! Bolinha olhou para mim, na dúvida.Rafael se retorcia no chão feito minhoca.— Aurora, chega! Se der merda de verdade... — Insisti.