Cap 2

Tento não pensar muito no que Fabinho disse e bato na porta diante de mim, espero um pouquinho e uma voz rouca e cansada responde me permitindo entrar.

Atrás daquela porta está um pequeno escritório com estantes repletas de livros nas paredes dos dois lados. Um tapete vermelho sangue no chão e uma escrivaninha de madeira abaixo de uma grande janela.

Aquela era a sala do Mestre Jorge e o velho estava sentado atrás de sua escrivaninha, o rosto mergulhado dentro de um livro.

Já estou acostumado o bastante com ele para saber que não devo interromper enquanto ele termina o que quer que ele esteja lendo.

O tempo passa, segundos, minutos e quase meia hora depois de minha chegada o maldito velho finalmente ergue a cabeça e abaixa o livro com um suspiro cansado. Me pergunto o que diabos ele está lendo.

- Então finalmente está chegando o dia. – Sua voz está mais cansada a cada dia. As vezes esqueço que o homem diante de mim já possui uns setenta anos. Olhando para ele, você as vezes pode pensar que ele tem só uns cinquenta.

- Parece que sim. Infelizmente a renda do orfanato vai diminuir um pouco depois de amanhã.

- Eu agradeço a você e aos outros por contribuírem com as coisas, mas já cansei de dizer que o orfanato consegue se manter sozinho.

Ele desconsidera totalmente minhas palavras e se reclina em sua cadeira, me analisando com seus olhos cansados.

- Vinte anos em. – Prossegue em voz baixa e contemplativa. – Já se passaram dez anos desde sua chegada. O tempo realmente voa.

Suas palavras me trazem um sentimento ruim. Sempre que ele toca no assunto de minha chegada no orfanato me faz lembrar do motivo para eu estar ali.

E porque isso me incomoda? Bem, qualquer coisa que te leve a um orfanato não deve ter sido uma experiência positiva, não é mesmo?

Mas é o seguinte. Os órfãos são separados em diferentes grupos. Existem aqueles que foram simplesmente abandonados por seus progenitores. Aqueles que os perderam por causa de guerras ou outros tipos de conflitos e aqueles que foram vendidos como escravos e recuperados por um milagre grassar aos velhos desse orfanato.

Bem, eu estou no segundo grupo junto com mais um punhado de outros que vivem aqui. Apesar de meu caso ser um pouco delicado, eu tento não pensar muito nele já que não posso fazer nada a respeito com meu nível de força atual.

- Você lembra de tudo que eu ensinei a vocês nesses últimos anos não é mesmo? – A pergunta de Mestre Jorge me tira um pouco de meus pensamentos negativos.

Aceno com a cabeça afirmando que sim e o velho simplesmente olha para mim, como se avaliasse se eu conseguiria sobreviver mais do que um dia na Torre.

- Deixemos isso de lado, nada do que eu disser agora fara muita diferença. Antônio e Gabriela vieram se despedir de mim também, quem mais está indo?

- Até onde eu sei, os outros que também planejam ir são Plinho, Douglas e Viviana. – Eu dou de ombros em seguida, afinal, não é porque moro no orfanato com dezenas de outras pessoas que sei exatamente o que se passa na cabeça de todos eles.

- Oh, esses aí em? – Consigo sentir um pouco do desgosto na voz do velho e seguro minha língua para não comentar sobre o assunto. - Bem, a vida é de vocês e preparei todos para terem mais chances que a maioria das pessoas normais que tentarão subir a Torre.

- Apesar de que ainda estamos em grandes desvantagens comparados a alguns outros.

Uma careta surge no rosto do Mestre Jorge por um momento, mas logo ele a disfarça. Apesar do velhote ter feito o máximo para nos ensinar a nos defendermos e nos dado uma educação decente, ainda ficávamos para trás comparados as famílias e empresas que conseguiam recursos para já enviarem seus jovens de vinte anos para a Torre como usuários de mana.

Eu troquei mais algumas palavras com o velho e então deixei seu escritório. Só passei hoje para falar com ele para agradecer por tudo que ele tinha feito por mim nesses últimos dez anos e provavelmente eu não o veria amanhã no grande dia.

Me encaminhei então para o meu quarto, precisava pegar algumas roupas para tomar um banho e então comer alguma coisa. Depois disso, seria só repouso para estar descansado amanhã.

Quando entrei em meu quarto, um espaço pequeno com um grande armário e quatro beliches que ficavam espremidos, me deparei com um dos outros cinco que eu sabia que iriam comigo para a Torre.

- Está acordado, Tônio?

Um grunhido mal-humorado veio em resposta a minha pergunta e eu abri um sorriso provocativo. Antônio era um dos órfãos do grupo dos abandonados. Ele era um rapaz de pele clara, cabelo castanho liso e olhos verdes. Uma gracinha para muitas das meninas.

Enquanto isso, eu possuía minha linda pele achocolatada, meu cabelo preto encaracolado e meus olhos castanhos escuros, algumas vezes confundidos com uma cor preta.

Diferente de mim, Gabriela, Plinho e Douglas, ele era um tipo menos atlético e mais didático. Eu me preocupava um pouco com isso ao pensar nele entrando na Torre, mas dentre todos nós, ele era o mais inteligente e saberia como se cuidar.

Viviana era o mesmo. A garota dependia muito de Douglas para se defender, mas ela possuía outros tipos de armas e geralmente eu evitava entra no lado aposto ao dela em uma disputa.

- O que está fazendo deitado aí tão cedo? Se escondendo de alguém que você vendeu recentemente?

Minha pergunta gerou um novo e mais mal-humorado grunhido de Antônio que se virou na cama e me lançou um olhar frio.

- Eu vendi umas informações para uma das gangues locais e seus rivais não gostaram muito disso

- Eu sei que é sua maneira de conseguir dinheiro, mas você deveria ser mais cuidadoso. – Eu pego algumas mudas de roupa e continuo. – Nem sempre teremos o velho para nos cobrir, muito menos na Torre.

- É, eu sei. – Ele me responde desanimado e se senta na cama. – Está indo comer?

- Banho primeiro.

- Beleza, te encontro no refeitório daqui a pouco então.

Isso era um pouco preocupante, ou seria se a Convocação não fosse amanhã. As gangues, ou pelo menos as pequenas, não tinham coragem suficiente para mexer com o orfanato, mesmo os poucos que possuíam seus usuários de mana não iriam invadir o local atrás de Antônio.

Mas as coisas poderiam ser um pouco diferentes nas ruas.

Teríamos que ser um pouco cautelosos amanhã já que tínhamos escolhido nos reunir em um bar para uma despedida antes de subirmos a Torre.

Vejam bem, a Convocação era um fenômeno individual.

As pessoas eram levadas para a Torre e então seguiam seus caminhos subindo. Não era porque tinham entrado no mesmo local que chegariam juntos no primeiro andar da Torre.

Contando é claro que não vamos morrer logo no início.

Eu aproveitei o máximo possível de meu banho e depois me vesti e segui para o refeitório. A maioria dos mais jovens já tinha saído, restando um punhado de adolescentes que ainda estavam vivendo no orfanato e em um canto mais afastado Antônio comia sozinho.

Fui até a cozinha e preparei meu prato, depois me juntei com o informante azarado.

- Onde os outros estão? – Eu perguntei entre uma garfada e outra.

- Gabriela disse que tinha algo par fazer na Arena enquanto Plinho comentou algo sobre conseguir uma arma para se defender.

- O idiota ainda não garantiu uma arma? – Eu perguntei surpreso.

- Pelo visto não.

- E os outros dois?

Antônio para de comer por um momento e me olha de maneira desgostosa, como se não quisesse falar sobre aqueles dois. Sério, é um problema como todo mundo acaba tendo problemas com Douglas e Viviana.

- Devem estar cuidando das coisas deles. Sério, não me olhe assim, eu tento evitar ficar perto daqueles dois.

- Nós crescemos todos juntos. – Eu falei terminando meu prato. – Não tem por que não nos darmos bem.

- Você é o único que os mantem atados a nós, Mi. – Antônio termina também seu prato e vamos juntos até a cozinha. – E é exatamente por ter crescido com eles que eu não suporto aqueles dois. Eles são… perigosos.

Eu dou um olhar de esguelha para ele e suspiro por dentro. Entendo o porquê disso tudo, mas me incomoda um pouco a maneira que as coisas se encaminharam.

Acho que já faz uns três, talvez quatro anos desde que aqueles dois começaram a andar por um caminho diferente do nosso. Eu fiz o possível para manter o contato, para que eles não cortassem completamente nosso laço como órfãos do orfanato Santa Clara, mas ainda assim era um trabalho um pouco complicado demais.

- Deixe isso para lá. – Eu disse por fim dando um tapinha no ombro de Antônio. – Vamos dormir, o dia amanhã vai ser bem movimentado.

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