Misturei tanto remédio com o Ice Wine que o açúcar inseparável da bebida ficou com gosto amargo. Quase de xixi misturado com analgésicos. Viro outro gole para acabar de uma vez com essa porcaria que tinha feito.A casa está uma verdadeira paz desde o dia que tinha arrumado o barulho insuportável do aquecedor, mas por outro lado, o silêncio me causava ainda mais traumas. O simples pulo do gato do chão para a bancada já me deixava em alerta por vários minutos ou a voz dos vizinhos da casa ao lado, mesmo que bem baixa, conseguia me aterrorizar.Despejo o resto da bebida no ralo da cozinha, como o último pedaço de queijo e dou o último alimento do dia para o gato. Aproveito para varrer o carpete da cozinha e passar um pano no balcão. Não muito tarde começo a trancar todas as janelas e portas da casa. Mesmo morando no bairro mais seguro da cidade e a cidade não tendo mais que catorze mil habitantes, jamais conseguiria me sentir seguro.Pego o livro de cima da poltrona do quarto e me dirijo
Retorno ao dormitório e acabo encontrando Feller acordado. Ele está na nossa mesinha perto da janela, iluminado pelo abajur enquanto escreve alguma coisa.— Onde estava? — questiona ele, sem se virar para olhar.— Estava com Jack — respondo enquanto tiro os sapatos e deixo próximo a porta. — Você não vivia dizendo que não gostava dele?— Bem… — olho para o teto —, talvez ele não seja tão ruim — é sim. Guardo a escova e a pasta dentro da gaveta e me dirijo para a cama. — Tão ruim? Heather falou que ele vive em cima de você — a cabeleira loira de Feller balança quando se vira.— É, ele fica. Mas ele só tá tentando amizade.— Certeza?— Aham… não é da sua conta.— Idiota.Solto um risinho e ele volta a fazer o que estava fazendo. Deito-me na cama, puxando o edredom até o pescoço e cobrindo em seguida o rosto. Enquanto tento dormir, penso se Hector acredita na mentira de que eu e Jack somos apenas amigos. Ele sabe que beijei Jack algumas vezes, mas poderia inventar que somos apenas am
— De novo atrasado, Angus? — indaga Hector, no momento que entro na sala. Ele solta a caneta em cima dos papéis e ergue-se da cadeira. Todo mundo está me encarando e, alguns poucos, fingem estar com a atenção na lousa, mas com certeza estão esperando ansiosos pela minha advertência.— Desculpa — digo. Hector vem caminhando na minha direção. Seus cabelos ruivos estão em cachos perfeitos, ele transpira um perfume agoniantemente provocante e as sardas nas bochechas estão ainda mais nítidas que antes. Sua face está assustadora, ou eu estou assustado demais?Maldito Jack, se não tivesse ficado conversando com ele na escadaria não estaria acontecendo isso.— Continuem fazendo as atividades, vou falar com o sr. Wesler e volto em breve — declara e coloca a mão no meu ombro, guiando-me para fora da sala. Quando fecha a porta, continua a me mover, mas dessa vez pelo corredor até entrarmos em uma das salas de aula desocupadas. Ele não deveria me levar para a diretoria? Sinto um ligeiro arrepio n
Na quarta-feira desisti de três aulas para ensinar sobre coesão textual para Jack no refeitório, após ele insistir muito e me trancar no meu próprio dormitório. A sorte que tive foi que, se ajudasse no reforço dele e de outros alunos em Literatura, minhas faltas seriam descontadas. E qual o melhor jeito disso acontecer não sendo ajudando o garoto que é motivo das minhas faltas? Acabei aceitando já que não tinha muito o que perder. No entanto, Jack, pelo contrário, tinha bem mais o que perder.A redação que Jack está se preparando é sobre o livro The Handmaid's Tale, que será na quinta-feira, e ele quase não sabe escrever algo decente. Quer dizer… Jack não sabe escrever quase nada decente. Provavelmente deveria ter faltado quase todas as aulas do primário. Ele consegue escrever mais erros ortográficos em um texto com a mesma frequência que fala porcarias. — Bem… a coesão, para ser mais fácil de você entender, são frases e palavras que ligam o texto para torná-lo coerente. Quase semelha
O calor começa a se espalhar por todo o meu corpo junto com arrepios.Com certeza poderia beber qualquer coisa da geladeira da cantina. Passo a mão na testa e sinto gostas de suor espalhar-se pelas costas da mão. Eu realmente estou suando igual um porco. Nenhuma novidade.— Oh, desculpa a demora — ouço a senhorinha dizer e me dirijo para ela.— Tudo bem — tento ser educado, mas ainda com os olhos nas mesas e querendo entender o que merda Alice Kayller está dizendo para Jack e ele está rindo. Que merda essa garota faz alí na verdade?— Está aqui sua bebida, irá querer só uma mesmo? Parece que vocês têm mais companhia agora.— Sim… só... uma e… — volto a olhar para eles e depois para a senhorinha —, obrigado — respondo ansioso e pego a garrafa do balcão.— De
A quadra não tem cobertura, até porque não tem sol para isso. Heather está congelando e se esfregando em mim como se fosse uma cachorra sardenta. Romy tinha nos obrigado a correr dez vezes em volta da quadra e fazer no mínimo cinco flexões. Hoje ela está empolgada, mesmo com o inverno chegando. Na verdade, o inverno nunca foi um real problema para Romy nos escravizar.— Eltery está olhando de novo para a gente — Heather comenta se jogando no banco da arquibancada. — Eu realmente não sei o que esse imigrante tá olhando.— Heather! Isso é xenofobia.— Hoje em dia tudo é xenofobia. Se ficassem no país deles não ficariam ofendidos — ela cruza os braços e começa a encarar Eltery, que percebe e volta a correr. — Agora parou de olhar — diz e puxa a garrafa de água da lateral da bolsa.—
Murmúrios começam do lado de fora da enfermaria. Heather fica em alerta, até mesmo levanta o rosto e se ajeita na cadeira. Eu também tento fazer o mesmo, mas quando mexo uma perna, sinto uma aflitante cãibra subir desde de a ponto dos meus dedos até o joelho. Puxo a perna um pouco para o lado e fico mexendo os dedos do pé dentro do tênis, sentindo a dor amenizar aos poucos. É um ótimo momento para ter cãibra. É um ótimo momento para muitas coisas.A porta ao lado de Heather, é empurrada com tanta força que até mesmo a enfermeira se assusta. Romy, Eltery, Dra. Else e mais um garoto entram na sala desesperados. Eltery está pressionando o nariz e um pouco tonto, sangue escorre pela a mão que está pressionando, e gotas vermelhas atingem o chão da enfermaria. A primeira pess
Não estou mais esperando a porta da sala de exames ser aberta, agora estou esperando e torcendo, para que uma certa porta nunca se abra. E se abrir, que a pessoa além dela tenha tido um infarto.Minha mãe sempre dizia que desejar o mal para pessoas que vão te foder era melhor do que desejar o bem. Jesus discordaria disso com certeza e, ainda, citaria aquela frase sadomasoquista: se esbofetearem seu rosto, ofereça o outro lado. Quem iria oferecer o outro lado da face para ser esbofeteado? Sadomasoquistas? Sim.“Quando um cristão oferecer um lado da face para você esbofetear, esbofetei é com bastante força,” ela dizia com um cigarro entre os dedos e olhando para a rua da nossa casa em Prince Albert.Os cabelos dela eram cacheados e caíam pela jaqueta de couro preto. Ela não usava mais aliança e nem vestidos, a maquiagem se tornou escura. Antes, sempre parecer