Rafaela dormia inquieta, meio pendurada na cadeira de metal branco descascado que rangia quando o corpanzil pendia para um dos lados. Entre os dedos roliços, um copo plástico com café pela metade esfriava sob o trabalho barulhento do ventilador de teto. O jaleco, longe de estar impecavelmente branco, combinava com os arredores longe de estarem impecavelmente limpos.
Tudo na copa do hospital parecia apenas a meio caminho daquela assepsia imaculada esperada por um ambiente altamente contaminante. A pia metálica, limpa, exibia pequenas manchas de ferrugem nos cantos. As paredes brancas não eram totalmente alvas – havia um dégradé para o amarelo muito sutil na metade inferior. A tinta que revestia as janelas tinha pequenos pontos rachados, assim como a geladeira, o fogão e os armários. O cheiro era uma mistura de álcool nauseante e pinho perfumado dos produtos de limpeza. Mesmo a iluminação era insuficientemente clara a ponto de tornar o expediente de ler no recinto desagradável, mas não a ponto de exigir a troca das duas lâmpadas de quatro que ainda funcionavam.
Se ler na copa era desagradável, dormir, por outro lado, era extremamente fácil, em especial para os técnicos de enfermagem dobrando expediente para cobrir as escalas dos faltantes. Os pequenos intervalos nos plantões costumavam gerar revezamento no uso do ambiente – e esse era ferrenhamente disputado pelo baixo clero do hospital, em especial em períodos de pico.
Era o caso hoje, como quase sempre. Rafaela cochilava sabendo que logo mais dois ou três colegas também chegariam à copa para lanchar, fofocar e descansar nas cadeiras desconfortáveis. A atualizariam acerca das presenças, ausências e do cardápio no quiosque da esquina, que ficava aberto até a meia-noite. Falariam daquela receita errada prescrita pelo médico e repassada pelo enfermeiro, que um dos técnicos viu segundos antes de aplicar a injeção e lesar gravemente um paciente. Contariam como tiraram a sorte para ver quem devolveria a receita direto na sala do médico para poder presenciar o sorriso amarelo e o pedido de desculpas. Para um técnico, quase nada era tão emocionante quanto ver um médico se desculpando. Tais eventos rivalizavam, em pé de igualdade, com a erradicação da fome e a paz mundial.
Apesar disso, o que consumia a curiosidade de Rafaela, mais do que a descrição pormenorizada da devolução da receita e do pedido de desculpas vexatório, era um estranho fenômeno que vinha acontecendo nos últimos dias, e do qual ela apenas havia ouvido rumores. Aparentemente, haviam transferido vários pacientes de uma das alas para agrupar todas as loiras do hospital em um único lugar. A ala das loiras, ou ala das oxigenadas, como alguns se referiam, aparentemente vinha recebendo um paciente por dia desde a semana passada. A razão pela qual isso estava sendo feito, porém, lhe era um mistério, e nem os enfermeiros nem ninguém da administração lhe havia aplacado a curiosidade.
De tão intrigada e dada a fofocas, Rafaela havia conseguido mudar a escala para hoje descansar na copa junto com um dos técnicos designados da tal ala. Seu sono inquieto, por fim, era muito mais o fruto da ansiedade por uma boa história que o desconforto das acomodações.
O som da porta se abrindo era a promessa do fim da espera.
– Deu polícia. – Dizia a voz de um dos que entravam. – Eu sabia que ia dar em algum momento, mulher. Aquilo lá não é bar, não. É cabaré.
– Tem mulher demais para a quantidade de homem toda noite. – Outra voz disse. – Me admira que não tenham chamado a polícia antes.
– A polícia é quem... – A primeira voz parou de súbito. Depois, seguiu em tom muito mais baixo, mas perfeitamente audível para Rafaela: – ...a menina, dormindo. A polícia é quem faz a segurança das putas, mulher. Porque você acha que tem uma viatura ali perto todo dia?
Com os olhos semicerrados, Rafaela observou as outras duas técnicas se acomodarem. Tinham a aparência comum da classe: jovens, com os olhos fundos de cansaço e totalmente vestidas de branco, mas sem jaleco. Uma seguia de costas, preparando café na pia. A outra, sentara ao seu lado.
– Então não vai dar em nada? – A sentada à mesa perguntou.
– Duvido. – A outra respondeu. – Até sexta o lugar abre de novo.
Continuaram conversando trivialidades. Rafaela, totalmente desperta, matinha os olhos fechados, mas se preocupava com a hora. Devia ter só mais uns quinze minutos. As outras duas tagarelavam de tudo: a novela, o ex-namorado, o sapato que tinha comprado e já estava com o salto desgastado. Tudo, menos sobre a história das loiras. Se impacientou, e resolveu dar uma forcinha na conversa.
– Que horas são? – Perguntou, de repente, ainda com os olhos fechados.
– Eita, acordamos você? – Uma delas perguntou. – Desculpa. Eu te disse, Joelem, pra gente falar mais baixo.
– Não, acordou não. – Rafaela respondeu. Já está quase na minha hora.
– Muito trabalho? – A que não era a Joelem perguntou.
– Muito. – Rafaela respondeu, abrindo os olhos e maquinando o próximo movimento. – Especialmente depois dessa história das loiras...
– Sério? – Joelem perguntou. – Pois na ala das oxigenadas reina a paz absoluta.
– Fale por você. – A outra comentou. – Mudaram as escalas de todo mundo por causa daquilo.
– E o que é que está acontecendo? – Rafaela perguntou, despretensiosamente, mas ardendo por dentro. Até bocejou, como se o assunto fosse um mero aborrecimento.
– Você não está sabendo? – Joelem perguntou, com ar de quem compartilha um segredo de Estado. Rafaela meneou a cabeça e sacudiu uma das mãos como quem diz “mais ou menos”. A colega retomou: – Começou faz oito dias, quando acharam a primeira. A mulher deu entrada no hospital em choque hipovolêmico. No começo achamos que tinha sido algum acidente, mas aí é que a história fica estranha: não tinha sinal nenhum de lesão, interna ou externa. Nem sinal de vômito, diarreia, ou qualquer outro. A mulher estava linda e plena, só que morrendo por falta de sangue.
– Como assim? – Rafaela perguntou, muito curiosa. – Então vocês não sabem como ela perdeu tanto líquido?
– Ninguém sabe. As primeiras pacientes estão em observação, mas não correm mais perigo. Estão fazendo tudo o que é exame para ver se acham alguma coisa, mas até agora nada. E essa nem é a parte mais estranha. A parte mais estranha é que a segunda deu entrada na noite seguinte. E a terceira idem. E agora tem oito pacientes que deram entrada por causa do mesmo problema, com os exatos mesmos sintomas. E para deixar tudo ainda mais esquisito, basta dizer que todas são loiras por volta dos vinte anos.
– Então não estão juntando as loiras do hospital? – Rafaela perguntou, tentando assimilar a informação.
– Não. – Joelem respondeu. – Estão isolando só as loiras que chegam em choque hipovolêmico. Como ninguém sabe o que há com elas, nenhuma, com exceção de uma delas, foi liberada ainda.
– Liberaram uma? – Rafaela perguntou.
– É, a filha do dono de uma loja grande do Natal Shopping. – Joelem confirmou. – Ele veio aqui, assinou os papéis de responsabilidade e levou a filha embora. As outras preferiram ficar. Por hora, a orientação da direção é que a gente não fale muito disso por aí. Parece que um secretário da prefeitura esteve aqui e proibiu o hospital de dar entrevista sobre os casos, mas do jeito que a coisa está estranha, mais dia menos dia sai no jornal.
O som de um alarme de telefone interrompeu a conversa. Rafaela achou que era o dela, mas antes que pudesse retirá-lo do bolso, Joelem sacou o seu próprio e leu uma mensagem de texto.
– Droga. – Suspirou. – Precisam de mim lá.
– O que houve? – Rafaela perguntou.
– A polícia acaba de chegar com outra loira. Estão precisando de mim e de um maqueiro para acomodar a nova paciente.
Removi um pequeno "a" fora do lugar logo depois de "Parece que um secretário da prefeitura esteve aqui e proibiu o hospital de dar entrevista sobre os casos, mas do jeito que a coisa está estranha, mais dia menos dia sai no jornal." Essa foi a única alteração feita nesse capítulo.
Paladar. Segundo o dicionário Oxford, é a função sensorial que permite a percepção dos sabores pela língua e sua transmissão, através do nervo gustativo ao cérebro, onde são recebidos e analisados. Tão frio. Tão exato. Tão... impreciso. Lena conseguiria pensar em dezenas de outras descrições melhor apropriadas para uma função tão importante de seu corpo, não estivesse, no momento, entregue ao prazer quase devasso de suas delícias. Sua língua experimentada valsava entredentes ao sabor suave das notas doces, se curvava à pujança das amargas e se retraía ao pequeno beliscão azedo ao final da coreografia. Por fim, a pequena apneia de antecipação ao prazer da primeira colherada c
O hotel Rifóles era um dos muitos recantos praieiros de luxo situados na via costeira da cidade. Exatamente de frente para o mar, proporcionava a seus hóspedes uma vista encantadora do infinito azul-turquesa que seguia atlântico adentro até que os olhos se vissem impedidos de seguir adiante, barrados pela linha do horizonte. Ou por cortinas grossas e fechadas, o que limitava muito a visão magnífica do oceano, por um lado, mas também preservava a identidade de todos os ocupantes do quarto espaçoso e elegantemente decorado, por outro. Eugênio Botelho era um senhor de meia idade, com o rosto cheio de vincos e cabelo tingido de forma que gritava artificialidade. Não parecia alguém dado a brincadeiras – impressão acentuada por seus óculos extremamente caros
A praça Augusto Severo era, havia muito, habitué de moradores de rua e alunos gazeteiros que perambulavam pelos arredores do prédio principal da antiga rodoviária. O edifício de dois andares ficava de frente para o Teatro Alberto Maranhão, situado no outro extremo da praça, então protegido por tapumes em função de uma reforma que já se arrastava por anos. Um passeio pelas redondezas mostraria um misto entre a arquitetura urbana contemporânea, com suas casas feias em forma de caixa, geralmente em dois andares dos quais os térreos sempre eram pequenos estabelecimentos comerciais, e alguns poucos edifícios muito encardidos que ostentavam o estilo arquitetônico colonial, com suas janelas de gesso decoradas e suas fachadas angulosas e opulentas. A única similaridade entre os dois tipos de prédio era o fato de todos estarem pichados
Voltar para dentro do prédio depois de tê-lo deixado foi um teste para a força de vontade. Com algum esforço, guiaram a moça para fora, afastaram alguns dos tapumes que o cercavam e a deixaram sob os cuidados de Igor, que se comprometeu a levá-la o mais longe possível e então chamar uma ambulância. Ela, que se debateu em agonia durante todo o percurso, se acalmou abruptamente assim que se afastou do edifício. Resolveram seguir em frente antes que o motorista retornasse, por uma questão de poupar tempo. Já passava muito da meia-noite, e o carro vazio, aberto e com faróis acesos chamaria atenção indevida a qualquer momento. Atravessaram o saguão, subiram as escadas, e rapidamente haviam voltado ao primeiro andar. – Precisamos passar um pente fino. – Laura determinou. –
– Mas que porra você fez, Lena? – Nandini perguntou, horrorizada com o que acabara de ver. Laura e Daniel vinham logo atrás. A voz esganiçada da colega fez Lena recuperar a compostura e lentamente abandonar sua presa, levantando-se. Havia assuntos mais urgentes com que se preocupar. – Puta merda! – Nandini seguia praguejando. – Você matou o menino, Lena! Você matou ele! Laura, que havia acabado de chegar, levou a mão à boca e apenas observava estática. Daniel olhava das companheiras para Lena, dela para o cadáver, e dele para as companheiras de volta. – O q
A rua Frei Miguelinho era espantosamente silenciosa àquela hora da noite. À medida que Igor conduzia o carro ocupado com os quatro adolescentes ansiosos entre os demais estacionados na mão única, aumentavam as dúvidas acerca do funcionamento de qualquer estabelecimento na região. O único sinal de que algo interessante poderia estar ocorrendo ali era duas viaturas policiais transitando preguiçosamente, de forma pouco pretensiosa, mas deixando claro que se necessário, fariam valer a lei e a ordem. Se vagassem por ali em qualquer outro dia, no passado, nenhum dos quatro teria sequer notado esses detalhes, mas hoje era crucial que nada passasse despercebido. Igor estacionou alguns metros adiante do local de destino: a Casa da Ribeira. Originalmente uma hospedaria aberta mais de
Em noites anteriores... O pequeno grupo de aprendizes de feiticeiro autointitulado Tetraedro se reúne na noite de seu primeiro trabalho importante: exorcizar uma suspeitíssima praga de baratas que anda infestando um bairro praieiro na cidade de Natal. Acreditando ser apenas uma ocorrência mundana, o grupo parte em direção às trevas e à mata atlântica no encalço dos insetos... e se depara com algo muito mais terrível do que poderia imaginar: um demônio. Munidos apenas de algumas poucas habilidades mágicas, muita astúcia e improviso, porém, subjugam e encarceram a entidade. O primeiro grande trabalho do Tetraedro lhes rende algum espólio em dinheiro e em confiança do contratante. Um último inconveniente, entretanto, é necessári