Quem nunca olhou para a cidade onde cresceu e se perguntou: que tipo de entidades sinistras se escondem nas sombras, em cada vão, recanto, beco, viela ou casa abandonada? Quem nunca se imaginou desbravando recantos proibidos da vizinhança junto aos amigos de infância, como já se viu em dezenas, se não centenas de filmes, novelas e livros publicados desde que o gênero terror adolescente se tornou tão popular no cinema e na literatura?
A resposta para essa pergunta provavelmente é: todos nós. Todo mundo, em algum momento da vida, teve um Robinson Crusoé, explorando as terras selvagens de Trinidad, um Ismael conhecendo o mar no encalço de um cachalote, ou um Henrique desbravando uma ilha perdida na companhia de Simão. Esse espírito de aventura, do enfrentamento do desconhecido é o mesmo que nos motiva a fantasiar com dezenas de situações arriscadas no conforto da nossa poltrona ou da tela de nossos computadores e celulares.
Tetraedro é, antes de tudo, sobre o enfrentamento do desconhecido. É sobre os rincões obscuros que parecem intrigantes durante o dia, e apavorantes durante a noite, e sobre como sempre haverá, dentro e fora de nós, territórios a serem explorados. Também é sobre desbravar cada um desses vãos sinistros na companhia de amigos leais que estarão lá para nos ajudar e para que possamos ajudá-los. É sobre companheirismo, autoconhecimento e amizade. E, claro, sobre feitiçaria e monstros, afinal, nenhum mar bravio vale a pena ser navegado sem leviatãs a serem vencidos com engenhosidade e uma boa dose de sorte.
Espero que a leitura desta primeira aventura possa lhe proporcionar uma breve, mas excitante viagem.
Natal, 12 de fevereiro de 2021
À minha querida esposa, que provavelmente nunca lerá esse livro, mas que contribuiu me ajudando a tornar Daniel, Nandini, Laura e Lena tão humanos quanto possível durante os anos em que interagiu com eles nas histórias que contamos um para o outro;
A Gutyerrez, meu amigo amazonense, que certamente lerá este livro, e que me incentivou a escrever em um gênero que eu havia abandonado. Sem ele esta história jamais teria saído das profundezas da minha mente e visto a luz do dia.
– Eu vou querer um especial e três cachorros. – Disse o pai, acomodando-se melhor na cadeira de plástico meio pensa para um lado. – E uma coca de um litro. A moça que atendia a mesa anotou tudo em seu bloquinho de papel e olhou para os demais ocupantes à espera de algum outro pedido, mas ninguém se manifestou. A mulher, uma senhora de meia idade e vestida como se tivesse acabado de voltar da igreja, olhava de cara amarrada para os dois meninos que travavam uma guerra de espadas usando as próprias bíblias de capa escura como armas. A atendente deixou os clientes esperando e voltou à cozinha. Pendurou a folhinha do bloco à altura da vista do chapeiro, que trabalhava incansavelmente para atender aos pedidos com tanta presteza quando humanamente possível.&
– Espera, deixa eu ver se eu entendi. Dessa vez não é só um passeio? A gente... a gente vai ser pago? – Isso. Lena não deu todos os detalhes, mas parece que convenceu o tio dela de que a gente pode se livrar de um problema para o amigo de um amigo dele. E que esse amigo é alguém importante no sindicato dos quitandeiros da Redinha, e que... – Tá, tá, informação demais. Eu só quero ter uma noção, mais ou menos, de quanto vai dar pra cada um. – ... – Você não faz ideia, né? – Eu não perguntei. Achei que seria indelicado. &nbs
– Estamos praticamente embaixo da ponte, né? – Laura perguntou, condescendente. Daniel não estava habituado a ouvir a voz da prima naquele timbre. Com Laura, quase tudo era tão delicado quanto um ataque de rinoceronte. Ela devia estar com medo. Ou achando que ele estava com medo. O terminal ficava praticamente embaixo de um dos lados da ponte Newton Navarro – cartão postal da capital, atração turística e talvez a obra de infraestrutura mais assombrada da cidade. Ela nem tinha dez anos, mas já era habitué do cidadão natalense chamá-la de ponte do suicídio, dado o número de infelizes que subiam até o ponto mais alto e se jogavam na intenção de abreviar suas desg
O caminho através da estrada principal e depois pelo terreno arenoso das dunas os distanciou o suficiente da ponte para que fosse confortável a todos que Daniel tornasse a compartilhar suas percepções aguçadas. Os quatro avançavam com os pés meio atolados na areia – apesar de estarem próximos o bastante da estrada de forma a ouvir com perfeição o barulho dos automóveis, estavam metidos na mata atlântica a ponto de não ver muita coisa além de seções do céu nublado acima das cabeças ou o emaranhado de galhos e folhagem da vegetação litorânea. Mesmo com auxílio das lanternas dos celulares, avançavam com cautela. Não tinham a menor ideia do que encontrariam, mas parecia evidente que o que quer que o mendigo houvesse chamado de “casa com cinto ama
Já passava da meia-noite quando a porta de uma casa modesta, com o muro mal-acabado e gato na energia abriu em um estrépito ruidoso, invadida por quatro adolescentes desabalados e um motorista de terno, tumultuando a madrugada na Vila de Ponta Negra. – Não, você não! – Nandini gritou, apressada, se dirigindo ao motorista enquanto tentava fechar a porta. – Meu irmão pode chegar a qualquer momento! – Espere no carro. – Lena pediu, ligeiramente verde e segurando o estômago com as mãos. – Certifique-se de que o homem na estrada seja devidamente atendido. – Sim, senhora. – O motorista respondeu, deixando
O verão na cidade do sol tornava o expediente de tentar dormir até tarde uma tarefa quase penosa, mesmo para aqueles que tinham negócios a resolver sob a luz da lua: funcionários de casa noturna, atendentes de lojinhas de conveniência vinte e quatro horas, e feiticeiros adolescentes que encarceram e se livram de demônios nas madrugadas de sábado. Entre esses últimos, os feiticeiros adolescentes, há um desistindo de continuar tentando retornar ao sono. Seu quarto não é nem de longe o que se esperaria do de um iniciado nas artes arcanas: nada de pictos ou glifos nas paredes, nem pentagramas, velas, pirâmides ou desenhos do Baphomet. É um quarto pequeno, e tipicamente adolescente: roupa s
– A gente precisava mesmo subir isso tudo? – Nandini perguntou, ofegante, quando Daniel lhe deu a mão e a puxou no final da subida longa, inclinada e arenosa. Tirou um caramelo do bolso, do tipo que sempre carregava consigo quando a náusea lhe acusava uma queda brusca de açúcar, e atirou na boca. – Não dava pra fazer o que quer que viemos fazer lá embaixo, no pé do morro? – A coisa toda pode demorar um pouco. – Laura respondeu, sentando-se na areia fofa e remexendo a mochila. – É mais difícil sermos surpreendidos aqui em cima. O Morro do Careca, um dos cartões postais da cidade, consistia em uma duna alta com mata atlântica dos dois lados de um corredor largo de
Criado pela avó, uma benzedeira muito conhecida na região e vidente de relativa fama, Daniel aprendeu desde cedo um verdadeiro grimório de rezas-bravas, mandingas e outros tipos similares de simpatias que, ora funcionam, ora não, mas que desde cedo lhe acostumaram à presença do sobrenatural. Sua avó pretende lhe legar o negócio da família - realizar trabalhos espirituais - algo que ele já faz com relativa habilidade. Quando não está ajudando a avó com seus afazeres habituais, cuidando da casa, ou tentando passar raspando nas matérias da escola, procura um jeito de fazer sua prima Laura lhe acompanhar em incursões noturnas nos locais mais assombrados que Daniel nunca conheceu o pai - e sua mãe o deixou com a avó e se foi quando ainda era bem pequeno. A avó nunca tratou o abandono da filha como