– Eu vou querer um especial e três cachorros. – Disse o pai, acomodando-se melhor na cadeira de plástico meio pensa para um lado. – E uma coca de um litro.
A moça que atendia a mesa anotou tudo em seu bloquinho de papel e olhou para os demais ocupantes à espera de algum outro pedido, mas ninguém se manifestou. A mulher, uma senhora de meia idade e vestida como se tivesse acabado de voltar da igreja, olhava de cara amarrada para os dois meninos que travavam uma guerra de espadas usando as próprias bíblias de capa escura como armas.
A atendente deixou os clientes esperando e voltou à cozinha. Pendurou a folhinha do bloco à altura da vista do chapeiro, que trabalhava incansavelmente para atender aos pedidos com tanta presteza quando humanamente possível.
– Mesa sete. – Disse a moça. – Precisa de ajuda aí? A casa está cheia hoje.
– Chama o Robson – o chapeiro respondeu – e depois volta para as mesas. Foi pôr o lixo pra fora e morreu por lá, pelo visto.
A moça não gostou do tom do chefe. Apesar de as coisas andarem difíceis, e também Robson ser meio devagar, o dono não precisava lembrá-la sempre que seus olhares se cruzavam de que o irmão só estava trabalhando ali por sua causa. Parte do problema, tinha de reconhecer, era que Robson não facilitava. Era lento, desastrado, e um pouco melindroso. Se a mãe não a tivesse feito prometer, talvez ela mesma já tivesse lhe mandado embora.
– Robson! – Ela chamou, abrindo a porta que levava ao beco em um estrépito. – Tonho está sozinho na chapa, e...
Parou de falar imediatamente. Diabos. Ele estava fazendo de novo.
O beco na lateral do restaurante dava para a rua de trás, onde ficavam as sacolas de lixo. Lá, sob a luz vacilante e alaranjada do único poste da rua, seu irmão estava entregando uma trouxinha coberta por um saco plástico a um vagabundo descamisado. A moça conhecia – ou ao menos já vira algumas vezes – o mendigo. Ele perambulava por aquele bairro pedindo sobras e moedas. Já havia sido expulso por Tonho uma dúzia de vezes, e passara um bom tempo sem aparecer pelas redondezas. Ultimamente, porém, havia voltado a vagabundar por ali. Isso não seria um problema para a moça, se não fosse seu irmão quem vinha incentivando o pedinte, debaixo dos olhos e contra a vontade do dono do barzinho.
– O que você está fazendo, Robson? – Ela sussurrou, pressurosa, se aproximando do irmão.
– Ele só está com fome, Nana. – Robson respondeu. – Dei umas sobras a ele.
– Quem vai comer sobras é a gente se Tohno pega você dando liberdade a... a...
A moça parou de falar porque o maltrapilho a fitava direto nos olhos. Não parecia irritado, ou desafiador – tinha o olhar súplice de uma criança acossada por garotos maiores. Por um momento, a moça sentiu um nó na garganta. Não queria destratar o mendigo. Mas também não tinha tempo para explicar a Robson, pela enésima vez, que por causa dele podiam ir parar os dois no olho da rua.
– Venha pra dentro. – Ela disse, por fim. – A gente conversa em casa.
O irmão acenou para o desabrigado, que foi se sentar do outro lado da rua com sua trouxinha de sobras.
– Robson, eu já te falei. – A moça ralhou, enquanto ambos atravessavam o beco e voltavam para dentro do bar. – As coisas estão ruins. Sabe porque a casa está cheia hoje?
– É domingo? – Arriscou Robson.
– Não, seu burro. – Ela respondeu. – Quer dizer, é também. Mas não é só isso. Você viu que a maioria dos outros barzinhos e quiosques estão quase sem gente faz mais de mês?
– É a crise. – Robson respondeu.
– É a crise... – arremedou a irmã, azeda. – Robson, presta atenção. O que quer que seja, se Tonho bota a gente pra fora, você volta pra casa de mãe, mas eu, o que eu faço? O que eu e a Maria vamos comer, Robson? Eu já te trouxe pra cá pra ver se você tomava atento nessa sua...
– Eliana! – Gritou a voz de Tonho, da chapa, a interrompendo. – Tão chamando na sete! Vai ver o que é!
Eliana suspirou. Olhou para o irmão e apontou o dedo em riste direto para seu rosto.
– A gente termina de conversar mais tarde. – Disse, em ultimato. – Vai pra chapa ajudar o Tonho, e não saia de lá.
– Tá bom, tá bom. – Robson respondeu. Mas olhou sobre o ombro, na direção da rua dos fundos, antes de ir. O pedinte ainda estava sentado no meio-fio, comendo suas sobras, olhando para o beco.
Eliana limpou as mãos no avental e seguiu até a mesa sete.
– Em que posso ajudar? – Ela perguntou, ao retornar à mesa. Aparentemente o próprio Tonho viera deixar o lanche enquanto ela resgatava o irmão no beco.
– O sanduíche está amargo. – O homem respondeu.
– Amargo? – Eliana perguntou. – Deve ser a alface, senhor.
– Eu sei o que é alface, e isso aqui não é alface. – O homem respondeu. – Prove, pra ver.
Eliana hesitou. Tonho já a havia advertido contra clientes enrolões – do tipo que tenta inventar desculpas para não pagar. Olhou para os outros ocupantes da mesa. A mulher ainda não havia terminado seu cachorro-quente, assim como um dos dois meninos. Era muito cedo para tentar um golpe.
Pegou o sanduíche e mordeu.
Primeiro, a maciez do pão e do tomate, e logo depois o gosto gorduroso do molho e do ovo frito. E outra coisa. De fato, algo estranho. No finzinho, um amargor não familiar. Na segunda mordida, sentiu. Além do amargor, agora muito forte, alguma coisa crocante dentro do sanduíche era triturada entre seus dentes. Fez um pouco de esforço para reprimir uma careta, mas os olhos encheram de água. Olhou para a metade meio comida do sanduíche, mas a iluminação do lado de fora, onde estavam as mesas, não ajudava. Sua curiosidade, porém, a traíra: o homem parecia satisfeito em ver que não era o único que provara algo estranho.
– Me dê um momento, senhor. – Ela pediu, ainda de posse do sanduíche. Já ia se dirigindo para dentro do bar, iluminado, quando ouviu o berro seguido do som enjoativo de vômito seguido de tosse.
– O que foi, meu filho? – A mãe acudiu, desesperada. Um dos meninos havia vomitado no tampo da mesa, e engulhava, descontrolado. Eliana ainda teve tempo de ver o outro, que cutucava o cachorro-quente da mãe, retirar de dentro da carne moída o que parecia ser uma barata, ainda viva e se debatendo, pelas antenas.
Tomada pelo calafrio de nojo, ignorou o rebuliço que se formava e Tonho, que gritava para ela algo que não ouviu por desatenção. Sua cabeça só se concentrava em uma coisa: olhar o conteúdo do sanduíche que acabara de morder sob a luz apropriada.
Entrou no bar e, com o rosto contraído de ojeriza, afastou as fatias de pão próxima à geladeira das cervejas. Identificou tudo: os tomates, o ovo chamuscado nas bordas, a alface meio escurecida pelo calor, a salsicha cortada em dois e, ensanduichada no meio dos dois hambúrgueres, a metade de uma barata cascuda, expelindo pus amarelo e grosso pelo abdômen espremido, de onde saíam as pernas que ainda se debatiam debilmente.
***
De longe, o mendigo só conseguia ouvir os gritos de uma mulher e a confusão de muitas vozes alteradas. Acabara de comer o último pedaço de um sanduíche de pão dormido com mortadela gelada, e se perguntava o que faria agora que o último bar ainda funcionando na praia da Redinha ia fechar as portas.
Levantou-se, pôs a sacola de pano com seus pertences sobre o ombro e esperou.
Não demorou muito a acontecer.
Primeiro, as sacolas de lixo no beco do restaurante começaram a se agitar. Sacudiam de leve, como se fervilhassem por dentro. Logo, algumas pequenas formas podiam ser vistas transitando dentro das sacolas, sob a luz fraca do poste. A primeira sacola rasgou mais ou menos no mesmo momento em que várias pessoas gritaram dentro do bar e se afastaram, algumas correndo.
Uma multidão de baratas se movia pela rua escura e sem calçamento, vinda das sacolas de lixo, da janela do banheiro do bar e do beco. Corriam pelas paredes, pelo chão e algumas até voavam. Na frente do bar, outras tantas perseguiam e eram perseguidas pelas pessoas, que lutavam contra o enxame da forma que podiam: com chinelos, vassouras, sapatos ou simplesmente espezinhando tantas quanto conseguissem.
O mendigo, que já havia presenciado o estranho fenômeno algumas vezes nas últimas semanas, apenas esperou que os insetos se fossem. Por mais que não gostasse deles mais do que qualquer outra pessoa, diferente dos clientes dos bares, restaurantes e quiosques da região, era ignorado solenemente, de forma que não temeu qualquer ataque.
Como se movido por um sinistro senso de propósito, uma vez espantados todos os clientes no barzinho, o tapete compacto de baratas seguiu sua marcha, atravessando a rua e se embrenhando em um matagal próximo na direção das dunas.
– Espera, deixa eu ver se eu entendi. Dessa vez não é só um passeio? A gente... a gente vai ser pago? – Isso. Lena não deu todos os detalhes, mas parece que convenceu o tio dela de que a gente pode se livrar de um problema para o amigo de um amigo dele. E que esse amigo é alguém importante no sindicato dos quitandeiros da Redinha, e que... – Tá, tá, informação demais. Eu só quero ter uma noção, mais ou menos, de quanto vai dar pra cada um. – ... – Você não faz ideia, né? – Eu não perguntei. Achei que seria indelicado. &nbs
– Estamos praticamente embaixo da ponte, né? – Laura perguntou, condescendente. Daniel não estava habituado a ouvir a voz da prima naquele timbre. Com Laura, quase tudo era tão delicado quanto um ataque de rinoceronte. Ela devia estar com medo. Ou achando que ele estava com medo. O terminal ficava praticamente embaixo de um dos lados da ponte Newton Navarro – cartão postal da capital, atração turística e talvez a obra de infraestrutura mais assombrada da cidade. Ela nem tinha dez anos, mas já era habitué do cidadão natalense chamá-la de ponte do suicídio, dado o número de infelizes que subiam até o ponto mais alto e se jogavam na intenção de abreviar suas desg
O caminho através da estrada principal e depois pelo terreno arenoso das dunas os distanciou o suficiente da ponte para que fosse confortável a todos que Daniel tornasse a compartilhar suas percepções aguçadas. Os quatro avançavam com os pés meio atolados na areia – apesar de estarem próximos o bastante da estrada de forma a ouvir com perfeição o barulho dos automóveis, estavam metidos na mata atlântica a ponto de não ver muita coisa além de seções do céu nublado acima das cabeças ou o emaranhado de galhos e folhagem da vegetação litorânea. Mesmo com auxílio das lanternas dos celulares, avançavam com cautela. Não tinham a menor ideia do que encontrariam, mas parecia evidente que o que quer que o mendigo houvesse chamado de “casa com cinto ama
Já passava da meia-noite quando a porta de uma casa modesta, com o muro mal-acabado e gato na energia abriu em um estrépito ruidoso, invadida por quatro adolescentes desabalados e um motorista de terno, tumultuando a madrugada na Vila de Ponta Negra. – Não, você não! – Nandini gritou, apressada, se dirigindo ao motorista enquanto tentava fechar a porta. – Meu irmão pode chegar a qualquer momento! – Espere no carro. – Lena pediu, ligeiramente verde e segurando o estômago com as mãos. – Certifique-se de que o homem na estrada seja devidamente atendido. – Sim, senhora. – O motorista respondeu, deixando
O verão na cidade do sol tornava o expediente de tentar dormir até tarde uma tarefa quase penosa, mesmo para aqueles que tinham negócios a resolver sob a luz da lua: funcionários de casa noturna, atendentes de lojinhas de conveniência vinte e quatro horas, e feiticeiros adolescentes que encarceram e se livram de demônios nas madrugadas de sábado. Entre esses últimos, os feiticeiros adolescentes, há um desistindo de continuar tentando retornar ao sono. Seu quarto não é nem de longe o que se esperaria do de um iniciado nas artes arcanas: nada de pictos ou glifos nas paredes, nem pentagramas, velas, pirâmides ou desenhos do Baphomet. É um quarto pequeno, e tipicamente adolescente: roupa s
– A gente precisava mesmo subir isso tudo? – Nandini perguntou, ofegante, quando Daniel lhe deu a mão e a puxou no final da subida longa, inclinada e arenosa. Tirou um caramelo do bolso, do tipo que sempre carregava consigo quando a náusea lhe acusava uma queda brusca de açúcar, e atirou na boca. – Não dava pra fazer o que quer que viemos fazer lá embaixo, no pé do morro? – A coisa toda pode demorar um pouco. – Laura respondeu, sentando-se na areia fofa e remexendo a mochila. – É mais difícil sermos surpreendidos aqui em cima. O Morro do Careca, um dos cartões postais da cidade, consistia em uma duna alta com mata atlântica dos dois lados de um corredor largo de
Criado pela avó, uma benzedeira muito conhecida na região e vidente de relativa fama, Daniel aprendeu desde cedo um verdadeiro grimório de rezas-bravas, mandingas e outros tipos similares de simpatias que, ora funcionam, ora não, mas que desde cedo lhe acostumaram à presença do sobrenatural. Sua avó pretende lhe legar o negócio da família - realizar trabalhos espirituais - algo que ele já faz com relativa habilidade. Quando não está ajudando a avó com seus afazeres habituais, cuidando da casa, ou tentando passar raspando nas matérias da escola, procura um jeito de fazer sua prima Laura lhe acompanhar em incursões noturnas nos locais mais assombrados que Daniel nunca conheceu o pai - e sua mãe o deixou com a avó e se foi quando ainda era bem pequeno. A avó nunca tratou o abandono da filha como
Filha única de um policial militar, Laura passa o tempo entre cuidar dos afazeres de casa, tirar notas excelentes, se envolver em tudo que é modalidade esportiva da escola, lutar jiu-jitsu três vezes por semana e ainda acompanhar seu primo Daniel nas eventuais incursões em cemitérios e casas abandonadas para ajudá-lo a se proteger de perigos mundanos enquanto se concentra nos assuntos dos espíritos. Laura é inquebrável. É enérgica, positiva, empolgada e bem-intencionada. Acostumada à ideia do sobrenatural desde muito pequena, graças à convivência com o primo e com a avó mediúnica, entrou para o tetraedro porque Daniel a convidou, e apesar do evidente grau de periculosidade das tarefas, encara tudo como se fosse só mais uma atividade extracurricular da escola. É relativamente popular, bonita e tem uma saúde