– Espera, deixa eu ver se eu entendi. Dessa vez não é só um passeio? A gente... a gente vai ser pago?
– Isso. Lena não deu todos os detalhes, mas parece que convenceu o tio dela de que a gente pode se livrar de um problema para o amigo de um amigo dele. E que esse amigo é alguém importante no sindicato dos quitandeiros da Redinha, e que...
– Tá, tá, informação demais. Eu só quero ter uma noção, mais ou menos, de quanto vai dar pra cada um.
– ...
– Você não faz ideia, né?
– Eu não perguntei. Achei que seria indelicado.
– Puta que pariu, Laura.
Nandini segurava o isqueiro sobre a caixinha de metal com uma das mãos e derretia uma vela com a outra. A cera pingava sobre uma pequena fenda no topo, lacrada precariamente com um curativo descartável, daqueles que se vendem em farmácias. A tinta da caixinha estava descascada no formato de desenhos e símbolos estranhos, como se alguém a houvesse riscado com uma faca. A frente da caixinha tinha uma portinha, usualmente trancada com um cadeado. Não hoje. Ela estava aberta, e dentro havia um chumaço de algodão meio amassado e úmido de sangue, como se tivesse acabado de ser pressionado meio de qualquer jeito contra um ferimento. Não muito, apenas suficiente para que o sortilégio funcionasse.
Sangue não era material desperdiçável.
Enquanto a cera sobre a fenda coberta com curativo endurecia, Nandini seguia falando alto para o telefone celular, ligado no viva-voz, pousado sobre um livro escolar grosso:
– Onde a gente se encontra?
– No terminal da Redinha. – Laura respondeu. – Eu e o Daniel já estamos quase prontos.
– Preciso levar alguma coisa comig... ah, bosta!
Na tentativa de se fazer ouvir, espichou demais o corpo e fez um pouco da cera líquida pingar na coxa desprotegida.
– O que foi? – Laura perguntou, do outro lado.
– Me queimei com cera.
– Acontece muito comigo, também. Mas é isso ou usar cera fria, e eu não conheço ninguém que tenha feito depilação com cera fria mais de uma vez. Neném, a depiladora que eu sempre chamo para...
– Não, porra. – Nandini interrompeu. Se deixasse, Laura engataria uma história longa e totalmente desnecessária. – Cera de vela. Estou no meio de uma coisa aqui.
– Um ritual? Hoje? A gente tem um trabalho, Nandini! – Laura a censurou. – Se você for chegar exausta, é melhor nem vir.
– Eu vou ficar bem. Estou aproveitando que Daniel deixou o amuleto comigo e preparando reservas para emergências. Nada muito cansativo.
– O que você está fazendo?
– Um cofre. Daqueles de prender malfazejos.
– Essas coisas não requerem um monte de sangue para serem feitas, Nandini?
– Se for de animal. Humano, basta um pouquinho.
– Não é uma ideia boa ficar se cortando antes de um trabalho.
– Ninguém falou em se cortar. Estou de Chico. Tenho um pequeno suprimento de sangue até quarta que vem.
– Eca, Nandini!
– A alternativa era matar um gato, ou um pombo. Não é você que é toda ambientalista?
– Você podia tentar umas coisas mais esotéricas. É mais seguro, e mais limpo.
– A gente discute quando você começar a fazer magia de verdade, e não essas merdas da Nova Era que você insiste em tentar me empurrar goela abaixo.
– Daniel está dizendo que o ônibus está na esquina. A gente vai para o terminal do zero-oito. Não esquece o amuleto, senão, nada de trabalho.
– Acho que chego em uma hora, uma hora e meia.
O telefone desligou, e Nandini afastou o isqueiro e a vela. Embalou com papel filme o cofrinho de metal, daqueles que se compra bem baratinho na feira, agora todo riscado de faca e com a entrada de moedas lacrada com cera. Estava quase transformado em uma Relíquia Espiritual, mas ainda faltava um ou dois detalhes.
Pegou um pedacinho de papel previamente manchado de sangue e tentou copiar com um lápis, da melhor forma possível, um desenho que estava ilustrado na cópia xerocada de um livro que Lena havia lhe emprestado semanas antes. O formigamento nas pontas dos dedos lhe deu o sinal de que precisava para saber que estava funcionado. Depois, segurou o amuleto preso em uma correntinha no pescoço com uma das mãos e amassou o papel com a outra.
Agora vinha a parte difícil.
“Concentre-se, Nandini.”
Começou a repetir as palavras que passara a última semana decorando. Não fazia ideia do que significavam, nem de que idioma eram, mas ao menos havia se certificado de que aprendera a pronúncia correta. O amuleto ajudaria também.
Forçou uma lembrança muito ruim. Um mendigo, chapado, havia se jogado em cima dela, no meio da madrugada, em uma época na qual ela ainda não havia se acostumado a dormir durante o dia para ficar alerta à noite. Ele havia se deitado por cima dela e a abraçado. Não fizera mais nada, nem tentara qualquer outra coisa. Mas para uma moradora de rua recém-chegada, ainda desabituada ao medo, ao frio e ao fedor, foi aterrorizante. Tentou se desvencilhar, em vão. O homem imundo era muito maior e mais pesado que ela. Por mais que se debatesse, ele mal se movia. Tinha adormecido sobre ela, e a impedia de se libertar. O calor infernal, o cheiro choruminoso, e o desespero de não conseguir fazer nada para sair daquela situação. Estava enclausurada.
Enjaulada.
Havia conseguido. A lembrança havia trazido à tona o sentimento que precisava evocar para fazer o feitiço funcionar. Ainda com os olhos fechados, pronunciou as palavras mais alto, segurando mais forte o amuleto e o papelzinho com o desenho amaldiçoado. O cheiro de suor, sujeira e álcool inundou o quarto e suas narinas. Aguentou. Segundo o livro, quanto mais intensa a agonia do conjurador, mais forte o feitiço. Esperou se tornar tão sufocante que mal conseguisse respirar, e só quando a ânsia de vômito se tornou insuportável, abriu os olhos e atirou o papel dentro do cofrinho, fechando imediatamente a portinha com o ferrolho.
O cheiro sumiu imediatamente. O único sinal residual do feitiço era a adolescente meio despida, ofegante e empapada em suor, com o coração palpitante e olhos marejados. Sentada sobre as pernas, pousou as mãos, que tremiam violentamente, sobre as coxas. Estava feito. Da próxima vez que abrisse aquele cofre e jogasse algo dentro, o que quer que trancasse lá estaria magicamente lacrado até que a portinha fosse aberta novamente.
Ofegando, olhou para a mão que segurava o amuleto, dolorida do esforço de apertá-lo. Na palma, um vergão vermelho, nada sério. Os braços brilhavam das pequenas gotículas de suor sobre a pele branca. A camiseta, única peça de roupa que vestia, grudava no corpo e cheirava a uma longa aula de educação física.
Antes que pudesse se acalmar totalmente, porém, o alarme do telefone anunciando vinte horas a fez correr para o banheiro, ignorando o caos de papel rasgado, algodão, faca de pão, pingos de sangue e uma caixa de esfirras vazia e engordurada com o rosto sorridente de um árabe impresso na tampa. Sem problemas. O irmão só ia chegar às duas da manhã, altura em que ela já teria voltado para casa e empurrado tudo aquilo para debaixo da cama.
– Estamos praticamente embaixo da ponte, né? – Laura perguntou, condescendente. Daniel não estava habituado a ouvir a voz da prima naquele timbre. Com Laura, quase tudo era tão delicado quanto um ataque de rinoceronte. Ela devia estar com medo. Ou achando que ele estava com medo. O terminal ficava praticamente embaixo de um dos lados da ponte Newton Navarro – cartão postal da capital, atração turística e talvez a obra de infraestrutura mais assombrada da cidade. Ela nem tinha dez anos, mas já era habitué do cidadão natalense chamá-la de ponte do suicídio, dado o número de infelizes que subiam até o ponto mais alto e se jogavam na intenção de abreviar suas desg
O caminho através da estrada principal e depois pelo terreno arenoso das dunas os distanciou o suficiente da ponte para que fosse confortável a todos que Daniel tornasse a compartilhar suas percepções aguçadas. Os quatro avançavam com os pés meio atolados na areia – apesar de estarem próximos o bastante da estrada de forma a ouvir com perfeição o barulho dos automóveis, estavam metidos na mata atlântica a ponto de não ver muita coisa além de seções do céu nublado acima das cabeças ou o emaranhado de galhos e folhagem da vegetação litorânea. Mesmo com auxílio das lanternas dos celulares, avançavam com cautela. Não tinham a menor ideia do que encontrariam, mas parecia evidente que o que quer que o mendigo houvesse chamado de “casa com cinto ama
Já passava da meia-noite quando a porta de uma casa modesta, com o muro mal-acabado e gato na energia abriu em um estrépito ruidoso, invadida por quatro adolescentes desabalados e um motorista de terno, tumultuando a madrugada na Vila de Ponta Negra. – Não, você não! – Nandini gritou, apressada, se dirigindo ao motorista enquanto tentava fechar a porta. – Meu irmão pode chegar a qualquer momento! – Espere no carro. – Lena pediu, ligeiramente verde e segurando o estômago com as mãos. – Certifique-se de que o homem na estrada seja devidamente atendido. – Sim, senhora. – O motorista respondeu, deixando
O verão na cidade do sol tornava o expediente de tentar dormir até tarde uma tarefa quase penosa, mesmo para aqueles que tinham negócios a resolver sob a luz da lua: funcionários de casa noturna, atendentes de lojinhas de conveniência vinte e quatro horas, e feiticeiros adolescentes que encarceram e se livram de demônios nas madrugadas de sábado. Entre esses últimos, os feiticeiros adolescentes, há um desistindo de continuar tentando retornar ao sono. Seu quarto não é nem de longe o que se esperaria do de um iniciado nas artes arcanas: nada de pictos ou glifos nas paredes, nem pentagramas, velas, pirâmides ou desenhos do Baphomet. É um quarto pequeno, e tipicamente adolescente: roupa s
– A gente precisava mesmo subir isso tudo? – Nandini perguntou, ofegante, quando Daniel lhe deu a mão e a puxou no final da subida longa, inclinada e arenosa. Tirou um caramelo do bolso, do tipo que sempre carregava consigo quando a náusea lhe acusava uma queda brusca de açúcar, e atirou na boca. – Não dava pra fazer o que quer que viemos fazer lá embaixo, no pé do morro? – A coisa toda pode demorar um pouco. – Laura respondeu, sentando-se na areia fofa e remexendo a mochila. – É mais difícil sermos surpreendidos aqui em cima. O Morro do Careca, um dos cartões postais da cidade, consistia em uma duna alta com mata atlântica dos dois lados de um corredor largo de
Criado pela avó, uma benzedeira muito conhecida na região e vidente de relativa fama, Daniel aprendeu desde cedo um verdadeiro grimório de rezas-bravas, mandingas e outros tipos similares de simpatias que, ora funcionam, ora não, mas que desde cedo lhe acostumaram à presença do sobrenatural. Sua avó pretende lhe legar o negócio da família - realizar trabalhos espirituais - algo que ele já faz com relativa habilidade. Quando não está ajudando a avó com seus afazeres habituais, cuidando da casa, ou tentando passar raspando nas matérias da escola, procura um jeito de fazer sua prima Laura lhe acompanhar em incursões noturnas nos locais mais assombrados que Daniel nunca conheceu o pai - e sua mãe o deixou com a avó e se foi quando ainda era bem pequeno. A avó nunca tratou o abandono da filha como
Filha única de um policial militar, Laura passa o tempo entre cuidar dos afazeres de casa, tirar notas excelentes, se envolver em tudo que é modalidade esportiva da escola, lutar jiu-jitsu três vezes por semana e ainda acompanhar seu primo Daniel nas eventuais incursões em cemitérios e casas abandonadas para ajudá-lo a se proteger de perigos mundanos enquanto se concentra nos assuntos dos espíritos. Laura é inquebrável. É enérgica, positiva, empolgada e bem-intencionada. Acostumada à ideia do sobrenatural desde muito pequena, graças à convivência com o primo e com a avó mediúnica, entrou para o tetraedro porque Daniel a convidou, e apesar do evidente grau de periculosidade das tarefas, encara tudo como se fosse só mais uma atividade extracurricular da escola. É relativamente popular, bonita e tem uma saúde
Entrando e saindo de instituições de acolhimento de menores praticamente toda a infância, Nandini cresceu habituada a humilhações e surras até o momento em que seu irmão mais velho atingiu a idade mínima para ser considerado responsável por si mesmo e por ela. Apesar do relativo conforto da nova situação, Nandini se tornou uma adolescente voluntariosa, arredia, desconfiada e muito boca-suja. É desleixada e pouco dada à disciplina e à prática necessária ao aprendizado de magia - o que não a impede de tentar e obter resultados por vezes desastrosos. A razão que levou Nandini a se juntar ao tetraedro foi sua intenção de, através de todos os meios disponíveis, se livrar de algumas das marcas mais profundas oriundas de seu período nas ruas. Decidida, porém, a jamais ser uma ví