O verão na cidade do sol tornava o expediente de tentar dormir até tarde uma tarefa quase penosa, mesmo para aqueles que tinham negócios a resolver sob a luz da lua: funcionários de casa noturna, atendentes de lojinhas de conveniência vinte e quatro horas, e feiticeiros adolescentes que encarceram e se livram de demônios nas madrugadas de sábado.
Entre esses últimos, os feiticeiros adolescentes, há um desistindo de continuar tentando retornar ao sono.
Seu quarto não é nem de longe o que se esperaria do de um iniciado nas artes arcanas: nada de pictos ou glifos nas paredes, nem pentagramas, velas, pirâmides ou desenhos do Baphomet. É um quarto pequeno, e tipicamente adolescente: roupa s
– A gente precisava mesmo subir isso tudo? – Nandini perguntou, ofegante, quando Daniel lhe deu a mão e a puxou no final da subida longa, inclinada e arenosa. Tirou um caramelo do bolso, do tipo que sempre carregava consigo quando a náusea lhe acusava uma queda brusca de açúcar, e atirou na boca. – Não dava pra fazer o que quer que viemos fazer lá embaixo, no pé do morro? – A coisa toda pode demorar um pouco. – Laura respondeu, sentando-se na areia fofa e remexendo a mochila. – É mais difícil sermos surpreendidos aqui em cima. O Morro do Careca, um dos cartões postais da cidade, consistia em uma duna alta com mata atlântica dos dois lados de um corredor largo de
Criado pela avó, uma benzedeira muito conhecida na região e vidente de relativa fama, Daniel aprendeu desde cedo um verdadeiro grimório de rezas-bravas, mandingas e outros tipos similares de simpatias que, ora funcionam, ora não, mas que desde cedo lhe acostumaram à presença do sobrenatural. Sua avó pretende lhe legar o negócio da família - realizar trabalhos espirituais - algo que ele já faz com relativa habilidade. Quando não está ajudando a avó com seus afazeres habituais, cuidando da casa, ou tentando passar raspando nas matérias da escola, procura um jeito de fazer sua prima Laura lhe acompanhar em incursões noturnas nos locais mais assombrados que Daniel nunca conheceu o pai - e sua mãe o deixou com a avó e se foi quando ainda era bem pequeno. A avó nunca tratou o abandono da filha como
Filha única de um policial militar, Laura passa o tempo entre cuidar dos afazeres de casa, tirar notas excelentes, se envolver em tudo que é modalidade esportiva da escola, lutar jiu-jitsu três vezes por semana e ainda acompanhar seu primo Daniel nas eventuais incursões em cemitérios e casas abandonadas para ajudá-lo a se proteger de perigos mundanos enquanto se concentra nos assuntos dos espíritos. Laura é inquebrável. É enérgica, positiva, empolgada e bem-intencionada. Acostumada à ideia do sobrenatural desde muito pequena, graças à convivência com o primo e com a avó mediúnica, entrou para o tetraedro porque Daniel a convidou, e apesar do evidente grau de periculosidade das tarefas, encara tudo como se fosse só mais uma atividade extracurricular da escola. É relativamente popular, bonita e tem uma saúde
Entrando e saindo de instituições de acolhimento de menores praticamente toda a infância, Nandini cresceu habituada a humilhações e surras até o momento em que seu irmão mais velho atingiu a idade mínima para ser considerado responsável por si mesmo e por ela. Apesar do relativo conforto da nova situação, Nandini se tornou uma adolescente voluntariosa, arredia, desconfiada e muito boca-suja. É desleixada e pouco dada à disciplina e à prática necessária ao aprendizado de magia - o que não a impede de tentar e obter resultados por vezes desastrosos. A razão que levou Nandini a se juntar ao tetraedro foi sua intenção de, através de todos os meios disponíveis, se livrar de algumas das marcas mais profundas oriundas de seu período nas ruas. Decidida, porém, a jamais ser uma ví
Sobrinha de um político muito importante, nascida em berço de ouro e com modos de nobreza, lena destoa do restante do grupo por seu comportamento totalmente fleumático, por estar sempre impecavelmente vestida e por seus acessórios obviamente muito caros. Quando não está metida em alguma desventura, sempre é vista acompanhada de pelo menos um segurança, e prefere resolver problemas mundanos de forma rápida com algumas das cédulas altas que sempre carrega em sua bolsa tiracolo. Longe de ser um mero reflexo de seus modos quase aristocráticos, entretanto, sua apatia quase mórbida é produto de um complicado problema familiar que a impede de experienciar a maioria das emoções na mesma intensidade que as outras pessoas. Mesmo suas noções de culpa e de responsabilidade parecem distorcidas, e quando há um problema, se existe u
Nem sempre o grupo se chamou tetraedro - entre os nomes anteriores, estavam “citadinos from hell”, “demon kickassers” e “andarilhos do beco de satanás”, todos sugeridos por Nandini. O nome atual só foi estabelecido muito depois que as incursões na noite natalense se tornaram mais frequentes, e principalmente depois que lena entrou no grupo, acrescentando sua coleção de livros caros e estrangeiros de ocultismo e bruxaria. Basicamente, tetraedro foi escolhido por ser uma alusão aos quatro membros do grupo, e principalmente, à relíquia que permitiu os primeiros avanços reais nos estudos de feitiçaria dos quatro - o Merkabah. Composto por dois tetraedros que unidos formam uma estrela de David, o amuleto tem várias funções, entre elas, abrir o usuário ao mundo sobren
A capital do estado do Rio Grande do Norte é, acima de tudo, uma cidade provinciana. Por mais que os centros urbanos mais movimentados da zona sul exibam já uma boa quantidade de prédios residenciais e dois ou três shoppings centers relativamente populares, a maior parte da cidade ainda é muito arborizada, e nas regiões mais periféricas, a vegetação é tão presente que as casas somem no meio dela se observadas à distância. O natalense médio é o meio do caminho entre um amontoado de referências do centro-sul e o regionalismo presente em seu sotaque e vocabulário muito fortes e específicos. Apesar de ser um polo da região, a cidade é relativamente pequena - um ovo, como diria a maioria dos seus habitantes. Suas atrações mais notáveis são as praias, um alívio para a população nos verões infernalmente quentes e um bom motor para a economia local.  
Quem nunca olhou para a cidade onde cresceu e se perguntou: que tipo de entidades sinistras se escondem nas sombras, em cada vão, recanto, beco, viela ou casa abandonada? Quem nunca se imaginou desbravando recantos proibidos da vizinhança junto aos amigos de infância, como já se viu em dezenas, se não centenas de filmes, novelas e livros publicados desde que o gênero terror adolescente se tornou tão popular no cinema e na literatura? A resposta para essa pergunta provavelmente é: todos nós. Todo mundo, em algum momento da vida, teve um Robinson Crusoé, explorando as terras selvagens de Trinidad, um Ismael conhecendo o mar no encalço de um cachalote, ou um Henrique desbravando uma ilha perdida na companhia de Simão. Esse espírito de aventura, do enfrentamento do desconhecido é o mesmo que nos motiva