Logan entrou pela porta velha, que rangeu acordando seu pai. O som vinha do sofá já gasto. Podia ouvir o peso do corpo movendo o que restava da espuma. Demoraria pouco para que tudo se quebrasse, que as traças roessem a casa inteira, sua vida, sua alma, tudo o que quisessem. Fazia anos que tinham se mudado de Nova York da sua antiga casa para esse inferno.
— Você tá atrasado... — Seu pai pronunciou as palavras grogues, bêbado como sempre. O sofá continuava rangendo, rangendo, rangendo — Onde você tava? Garoto miserável!
Podia ouvir sua própria respiração entrecortada. Jogou as chaves na mesa bamba e subiu as escadas o mais rápido que pôde. Trancou-se dentro do quarto. Fechou um cadeado, trancou a porta com a chave e depois, só para ter certeza que ele não entraria, passou uma grossa corrente pelo último pino.
Só então tirou a roupa molhada cheirando noite e vento. Jogou tudo na pia do pequeno banheiro. No decorrer da noite, teve a gélida sensação de que estava sendo vigiado. Ele sabia quando algo não estava indo bem e as coisas começavam a degringolar e com certeza aquele era o momento.
— Abra a porta! — Seu pai subia as escadas, fechou os olhos e apurou os ouvidos. Ótimo, ele estava no quinto degrau, demorariam alguns segundos até que começasse a espancá-la.
Puxou sua mochila sob a cama e começou a procurar por roupas limpas. Estava cansado. Durante todas as noites ele saía para sobreviver, levava consigo alguns trocados e então fazia apostas. Apostas estas que sempre ganhava. Voltava antes do amanhecer e deixava o que conseguia juntar para mais um dia. Mais um dia de bebedeira. Mais uma noite na qual seu pai choraria pela perda da mulher. E então socaria a porta várias vezes atrás dele. Diria as mesmas palavras. E tudo se repetiria no dia seguinte. E no outro. E no outro do outro…
Jogou o dinheiro que tinha sobrado da sua última aposta dentro da mochila. Escova de dente, uma garrafa de água e uma troca de roupa formal. Agora as batidas começaram a soar do outro lado da porta.
— Mataram Mary! Minha Mary! — Ele gritava, os punhos serrados batiam no ritmo do coração desesperado no peito de Logan, que doía ao ouvi-lo dizer as mesmas palavras — Me devolva! Eu quero a minha Mary de volta!
Logan suspirou ouvindo a chuva e os gritos caírem sobre sua mente. Frios e certeiros. Ele sentia falta da mãe, de quando o colocava para dormir contando histórias incríveis. De como o cabelo dela brilhava junto dos raios de sol que entravam pela janela enquanto ela cortava legumes na cozinha. E acima de tudo, Logan sentia falta do pai que um dia teve e que agora, tinha sido consumido pela tristeza e pela solidão.
Os socos do outro lado continuavam.
— Minha Mary! Minha Mary! DEVOLVA-ME MINHA MARY!
Sua cabeça latejava, naquele momento estava tão perdido que mal percebeu os pedidos de desculpas que vinham do outro lado da porta.
— Me desculpa filho... O que foi que eu fiz? Onde está a Mary? Que horas ela vai chegar...? — E em seguida um longo baque. Ele tinha sido vencido pelo cansaço.
Olhou para a mochila em suas mãos, puxou o capuz para cobrir o rosto e com muito cuidado abriu a porta do quarto. Seu pai estava estirado no chão roncando profundamente. Do seu lado, garrafas vazias estavam quebradas, tentativas falhas de jogá-las contra a porta.
Logan parou por um momento. Olhou-o por algum tempo e deixou que a tristeza o invadisse. Seu pai nunca fora o mesmo depois que sua mãe morreu. Passara a chegar tarde do trabalho, e muitas vezes machucado. Dizia que eram hematomas do esforço, mas, no fundo, sabia que todos eram resultados da bebida e das vezes em que ele caía tentando chegar a casa. Semanas depois, ele não saía mais para trabalhar. E então essa era a tarefa de Logan. De repente seu pai estava dependente do vício e ele sozinho, completamente sozinho.
Antes de sair, limpou os cacos para que ele não se machucasse e deixou metade de suas economias no bolso do pai. Ele duraria alguns dias, compraria algumas garrafas e algo para comer. Depois, quando Logan voltasse, o encontraria do mesmo jeito.
Ele andou pelas ruas escuras com passos silenciosos bolando sua próxima estratégia. Logan não tinha medo de se arriscar, pois “quem permanece na toca vira uma bolota”, sua mãe lhe dizia isso o motivando a ir para a escola quando não queria, é claro que na época ele era só uma criança e agora depois de muito tempo, o ditado soava infantil, mas mesmo assim continuava fazendo sentido.
Seguiu pelas portas do Cassino La Notche tirando o moletom, revelando por baixo uma camisa muito bem alinhada com apenas algumas dobrinhas. Jogou a mochila no beco antes de entrar. Ajeitou o cabelo castanho escuro, olhou os diversos espelhos dispostos pelas paredes da entrada, os olhos azuis contrastavam com a gravata turquesa afrouxada.
Ele estava pronto.
Subornou o segurança na entrada com a mesma quantia que havia dado nas outras vezes e passou do saguão em direção à mesa de pôquer. Dois velhos magnatas jogavam partidas normais, cada um tinha uma bela companhia. Duas mulheres trajavam pouca roupa, os cabelos ondulantes e ambos olhares penetrantes.
Elas eram a distração.
— Onde está a sua, meu filho? — O velho careca olhava para Logan com certo divertimento.
As cartas rolaram pela mesa. Ele só precisava de alguns segundos.
— Ela só vem quando não estou num dia bom — ele diz sorrindo sarcasticamente — daí ela costuma distrair meus adversários para que eu possa ganhar algumas rodadas a mais.
O velho torceu o nariz, achou que Logan não entendia de estratégias e por um momento, pensou estar numa boa enrascada. O menino era mais esperto do que ele pensara.
Atirou a primeira carta.
— E qual é a sua estratégia, meu filho?
Logan suspirou e atirou todas as cartas na mesa, num naipe perfeito. Tinha ganhado em menos de dois minutos. Era um recorde.
— Conversar — Sorriu abertamente puxando o dinheiro que tinha obtido — Foi um prazer jogar com os senhores, cavaleiros.
Assim saiu da mesa e escolheu das outras mais, qual seria a sua próxima jogada perfeita.
Trombou em alguém distraidamente encontrando o olhar nevoado da garota encarando-a por alguns segundos. Ele murmurou um “me desculpe” e se afastou sentindo uma sensação estranha.
Nas mesas ao lado da roleta, os jogadores começaram a ficar consternados, murmurando que os dados estavam viciados. A garota de antes, passeava em torno dos jogadores e a cada passo que dava, alguém perdia mais uma rodada.
Logan notou a forma como ela andava passando de mesa em mesa lentamente. O cassino em minutos se tornou um lugar de lamentos, ninguém mais acertava suas apostas, nem mesmo grandes magnatas, os quais a um bom tempo Logan estava de olho.
— O azar está impregnado aqui! — Diziam, vestiam seus casacos e saiam pelas grandes portas.
Quando só ele no lugar restou, a garota caminhou lentamente até ele, os olhos dela presos nos dele, como dois nevoeiros calmos e frios. O tempo tornou-se lento, ele podia encarar a forma como a pele clara dela contrastava com o vestido preto brilhante, as curvas bem definidas da sua cintura e o caimento do tecido rente ao chão. Seus lábios estavam secos e o coração por algum motivo estranho pulava disparado. Não era de desejo, era de... Medo? Medo de algo tão belo e ao mesmo tempo tão frio esculpido em gelo, seguindo até ele, lhe encarando nos olhos de uma maneira tão profunda que... E então, antes que pudesse catalogar seus pensamentos, ela passou por ele, quase tocando o seu ombro, indo embora.
Assim que as portas do cassino se fecharam atrás dela, os caça-níqueis dispararam jorrando dinheiro, todos com combinações perfeitas. Logan engoliu em seco e soltou a respiração sem notar que a havia prendido até então. Observou o momento em que uma moeda em especial chamou sua atenção, se sobrepondo as outras que saíam do caça-níquel, era antiga e tinha a beirada amassada; no centro possuía também um buraco deformado pelo tempo onde antes havia o rosto desenhado de um rei ou imperador. Notando sua diferença e a sorte de ter tanto dinheiro só para ele, enrolou o óbolo num cordão antigo em volta do pescoço, como um medalhão de sorte.
No fim da madrugada, saiu do cassino com os bolsos cheios. Ele conseguiu o triplo com a ajuda dos caça-níqueis.
Vestiu novamente o moletom e seguiu pelas feiras abertas ao ar livre. Puxou seu colar de dentro da roupa e virou o óbolo pendurado. Girava-o de um lado para o outro. Aonde iria agora?
Olhou com cuidado para as barracas.
Do outro lado, perto de uma tenda maior, um homem barbudo e carrancudo mexia em três copos foscos dispostos numa pequena mesinha. Dois homens olhavam-no mexê-los de um lado para o outro.
— E então? Onde é que está? — Perguntou sorridente.
O homem da direita olhou para os copos por um momento e então com toda a certeza do mundo, ergueu o do meio.
Não tinha nada.
Os dois puseram-se a andar para longe, praguejando a jogada perdida, deixando de lado o homem.
Logan não perderia aquilo por nada.
— Oh! Um jovem homem! Quer tentar descobrir onde está o tesouro do velho Barba Grande?
Logan sorriu avidamente entrando no jogo.
— Claro que sim. O que eu tenho que fazer?
— Passe para cá seu dinheiro. São dez dólares! Pronto, agora me dê um objeto pequeno.
Olhou para os bolsos, ele não tinha nada pequeno. Então pensou no óbolo. Puxou seu cordão para fora do moletom e o tirou com cuidado, entregando-o ao homem.
Este olhou para o objeto com certa curiosidade.
— Olha só, uma moeda! Está jogando com dinheiro para conseguir dinheiro! Que grande ousadia! — Enquanto ele falava teatralmente erguendo a mão direita mostrando o óbolo de Logan, uma pequena multidão se formava para ver a cena.
Logan apenas acenou, fingido estar constrangido, mas seus olhos estavam nas mãos ágeis do homem. Apenas segundos foram necessários para que soubesse o que ele faria.
— Então vamos lá!
O homem jogou seu óbolo dentro de um dos copos escuros e o virou de cabeça para baixo. Depois distribuiu mais dois, lado a lado. Com as duas mãos, começou a mexer os copos em ziguezague esperando que Logan tentasse não perder os olhos do copo certo.
Mas neste momento, quando o homem tinha um plano, Logan também tinha o seu.
Os copos eram a distração.
Olhou para as mãos do barbudo o tempo todo.
— Vamos lá! — Ele disse depois de fazer dez giros completos — Onde é que está?
— Bom, posso simplesmente apontar o lugar? — Perguntou com a voz um pouco esganiçada, fingindo-se pego de surpresa.
— Sim, sim! É claro!
Logan olhou acusadoramente para o homem e sorriu apontando para a barba.
— Está aí.
O homem que de trouxa não tinha nada, tentou fazer pose fingindo não ter ouvido direito. Mas Logan estendeu as mãos esperando seu óbolo de volta.
— Você tem dez segundos para chispar daqui! — O homem trovejou desfazendo seu papel e entretenimento.
— Oh, sim, sim! É claro que sim! — Logan imitou — mas antes, o dinheiro.
XAndou por ruas escuras e outras mais claras, atravessou rodovias até chegar a uma passarela gigante por onde poucos pedestres passavam e subiu a rampa olhando para os lados. De novo sentia aquele pressentimento. Alguém estava seguindo-o.
Não importava para onde olhasse, sempre estava sozinho, mas aquela pontada, a mesma sensação…
Andou até a metade da passarela, parou por alguns minutos e olhou para baixo. Apoiou o cotovelo na haste de metal e ficou vagando com a mente em outro lugar por algum tempo.
— Isso aqui é realmente um bom lugar para pensar, não é?
Logan pulou de susto. A garota do cassino o encarava a um palmo do seu nariz. Os olhos dela eram tristes, cinzas e profundos como uma noite de nevoeiro. Perguntou-se como ela tinha conseguido se aproximar tanto sem que ele percebesse.
— Não se chega assim num estranho! — Disse um pouco alto demais sem pensar, alternando de assustado para inconformado. Depois de alguns segundos se recompôs e perguntou não tão docemente: — Quem é você?
Seu coração batia mais rápido do que o normal. Afinal, que sensação era aquela? O mesmo sentimento ao esbarrar horas antes na garota agora se alojava em seu peito, como um alerta, um alarme irritante e desconfortável.
Ela não respondeu. Nível de educação: zero. Em vez disso, subiu na haste de ferro enferrujada, se equilibrando como uma bailarina, na verdade estava mais para bailarina gótica já que agora ela usava calça, camiseta e casaco pretos. Ela respirou fundo bufando:
— Por que é tão fácil para as outras pessoas? Elas simplesmente relembram o que querem manter para si mesmas e então caem em direção ao nada. — Ela dá um passo para frente — Como são sortudas.
Logan que olhava a cena abismado, agarrou seus pulsos e a puxou para baixo.
— Sortudas? — Perguntou mal conseguindo se aguentar. Ira lhe subiu pelo rosto, agora vermelho.
— Claro que são! Elas escolhem quando querem ou não morrer. — Os olhos dela ainda continuavam tristes, ele notou.
— Isso é suicídio e é errado — Ele fez uma careta e decidiu ignorá-la, seguindo em frente.
— Pouco me importo de como rotulam — A garota não desistia, não iria embora tão facilmente — É uma escolha. Ninguém pode te dizer o que fazer ou não.
— Neste momento eu não quero me jogar de uma passarela — Andou para longe — Mas... E você? Quer mesmo fazer algo tão estúpido?
— Não chame de estúpido. Estúpido são os seus conceitos sobre a morte... — Disse a última palavra dois tons mais baixo que o normal como se pronunciá-la requeresse muito dela. Ela também estava visivelmente irritada — E sim, se eu pudesse... me jogaria.
Logan estava desistindo da conversa, talvez a garota fosse louca e tivesse fugido do hospício. Ela estava realmente falando sério, encarando-o de perto com os olhos bem abertos e determinados.
— Você só fala sobre isso? Quero dizer, morte… Essas coisas... — Ele não terminou a frase. Tinha se lembrado de sua mãe. Quanto daria para que ela estivesse viva? Daria tudo. Tudo mesmo. E agora essa garota aparece do nada dizendo que se matar é algo completamente normal e não rotulável?
Ela estava encarando-o com certa curiosidade.
— É fácil falar sobre coisas que eu já superei. Mas... As coisas tornam-se mais difíceis de serem ditas quando ocultam uma grande ferida. — As palavras que eram para soar sábias acertaram em cheio o coração de Logan, a perda ainda estava marcada nele e em seu pai.
O que ela sabia sobre ele? Nada. Tinham se conhecido em menos de um dia e ali estava ela tentando dar uma de mandachuva para cima dele.
— Você deveria dar mais valor à vida, não acha? — Logan olhou para trás esperando vê-la bolando uma nova frase que tivesse a palavra “morte” no meio, mas se deparou com o nada.
Ela tinha sumido.
Estava cansado da noite viajada que tinha tido. Assim que parou perto do porto onde os barcos atracavam, sentou-se num banco e contou o bolo de dinheiro. Se continuasse naquele ritmo, ficaria rico em dois ou três anos. O sol estava para nascer e a madrugada aos poucos se dissolvia como o tempo ligeiro entre os dedos.
Aquela sensação novamente pegou Logan de surpresa, o mesmo frio que lhe tinha subido pela espinha antes, agora voltava a instalar-se.
— Eu sabia que você apareceria uma hora ou outra. — Logan disse ainda olhando para o céu — A questão é: como eu sei que você está aqui sem ter olhado?
A garota não respondeu sua pergunta, no lugar, observou as cores se tornarem mais claras e o azul brilhar cada vez mais através das nuvens distantes. Ela não queria assustá-lo logo de cara. Pretendia conversar e lhe pedir um único favor. Um oizinho resolveria o problema, antes ela tinha quase certeza de que se pedisse o que queria, ele a entenderia. Mas agora, já não sabia. O garoto não era como tinha pensado. Era do tipo intimidador e inteligente, além disso, sua face escondia o que ela queria saber. Ele não sorria, notou também.
Talvez ele fosse parecido com ela.
— Nós precisamos conversar Logan. Eu tenho uma proposta para te fazer. — Ela disse com a voz tensa, não conseguindo esconder sua preocupação.
Ele olhou curiosamente por cima do ombro e a viu oscilar de uma perna para a outra esperando sua resposta.
Tinha algo nela que não cheirava bem. O jeito que ela se mexia era suspeito, até mesmo seu olhar o deixava inquieto, como se a qualquer momento fosse cair numa cilada. O cabelo da garota era preto como a noite, tinha uma cor tão diferente quanto à dos olhos cinza que contrastavam seus sentimentos. E eles diziam algo como me ajude.
Ele conhecia aquela expressão como ninguém. Tinha passado por coisas parecidas quando se viu sozinho, sem mãe e com um pai alcoólatra. Às vezes a vida lhe sorria e outras vezes lhe mostrava os dentes.
Ele seguiu pela rua até chegar num beco, então se apoiou numa das latas de lixo verde e esperou que ela começasse a se explicar. Ele ainda sentia aquela terrível sensação.
— Você é um apostador. — Ela lhe disse. Estranhamente estar perto dela o obrigava a olhar para baixo, Logan a examinou, não deveria ter mais que um metro e sessenta.
Logan assentiu que sim.
— Você precisa de dinheiro, não é? — Ela perguntou como se soubesse a sua resposta antes mesmo dele a dizer. — Eu preciso de algo também.
— O que você quer dizer com isso? — Logan perguntou cruzando os braços. Ele se sentia exposto. Como ela sabia sobre o dinheiro? É claro, ela tinha visto-o no cassino, sorriu de lado sarcasticamente — Pelo visto já sou conhecido.
— Eu só preciso saber se você concorda. Se disser que sim, eu te contarei tudo. — Ao ouvi-la dizer essas palavras Logan se sentiu ainda mais confuso.
— Como vou aceitar sua proposta se só vou saber sobre o que se trata depois? Dá pra falar com a boca? — Aquilo era ridículo, ele se sentia um idiota por ainda falar com ela. Não sabia como ainda se manteve ali parado como uma estátua esperando sua resposta.
— Ouça, tem muito dinheiro envolvido. É só isso o que você precisa saber por enquanto. Então, você topa? — Ela claramente não aguentava a ansiedade de ter que esperar sua resposta, num misto de espera e irritação por ele ter dito para ela falar com a boca. Por acaso estava falando com os olhos? Se falasse com os olhos, metaforicamente, ele com certeza se sentiria muito mais intimidado, disso ela tinha certeza.
Aquilo era realmente importante para ela, mas ele parecia não notar. Tinha algo na postura como ele estava, o modo destemido o qual se posicionava, como se não a considerasse um perigo, que a perturbava. Porque ela era um perigo.
Falar sobre o dinheiro foi o suficiente para fazer Logan opinar se devia ou não concordar com a proposta da garota. Ela podia ser bem convincente quando queria. Ele teria que ajudá-la no que fosse preciso e faria isso até o fim. Logan não costumava quebrar promessas. Se ele agiria, seria agora. Sabia bem que precisava do dinheiro para por o pai numa clínica de reabilitação e para conseguir futuramente bancar uma faculdade.
— Eu topo. — Soltou antes que pudesse voltar atrás na sua resposta e instantaneamente sentiu vontade de morder sua própria língua. — O que eu tenho que fazer?
A garota olhou para os lados antes de se aproximar. Olhou principalmente para as latas de lixo como se elas pudessem flutuar a qualquer momento e o esmagar como um sanduiche. Seus olhos finalmente fixaram-se nos dele quando ela procurou as palavras que precisava dizer.
— Eu tenho que te contar duas coisas, mas primeiro, me prometa que não vai correr.
Logan abriu a boca para falar, mas foi interrompido por ela.
— Por favor, me prometa.
Então ele prometeu. O que quer que ela fosse lhe dizer não o assustaria provavelmente.
— A morte…
— Eu sabia que tinha a ver com isso! Você só fala sobre morte!
— Hey! Escute-me!
— Eu não sei por que pensei que…
— Me escute! — Ela gritou fazendo com que uma lixeira do lado oposto fosse jogada contra a parede do lado de Logan. Ele arregalou os olhos pensando na enrascada que tinha acabado de se meter e ficou quieto deixando-a falar — Eu preciso da sua ajuda, Logan! Então cale a boca e me ouça!
Ele continuou muito quieto sem reação.
— A primeira coisa que você precisa saber é que foi a Morte quem me amaldiçoou.
— E a segunda? — Perguntou.
— Ela me odeia, mas não pode me matar. — A garota suspirou e olhou para a lixeira espatifada no chão. — Eu preciso encontrar o antídoto para que ela pare de tentar me matar, porque quando isso acontece eu machuco as pessoas que amo. Ele está em algum lugar e eu… — Ela olhou para a expressão de medo e confusão estampados no rosto de Logan e deixou a frase morrer. — Acho que você não quer…
— Eu já disse que topo. — Ele falou tentando esconder o medo que sentiu mostrando um sorrisinho de lado, sorrisinho de nervoso, não de alegria — Nós só temos que procurar um antídoto para te curar da maldição antes que a morte se encarregue de te enviar para o… Bom, eu topo. É só a morte.
Ela sorriu um pouquinho, mas não corrigiu o que ele disse. Ela não queria parar com aquilo somente por ela, mas sim pela vida dos outros que estavam ao seu redor. Não entendeu muito bem como ele aceitou sua proposta numa boa. A família Larkin tinha lá as suas peculiaridades.
— A propósito, sou Endy Huntly. — Ela estendeu a mão para ele — Mas pode me chamar de Enn.
— Logan, Logan Larkin. — Ele retribuiu o aperto e ela tentou não reparar em como os seus olhos azuis eram parecidos com os da sua mãe.
Aceitar a oferta de uma estranha que era perseguida pela morte não estava nos planos de Logan. Ele não falava com estranhos, sua vida dependia unicamente dos jogos e nada mais. Agora, andando lado a lado com a garota, perguntou a si mesmo como era possível o mundo mudar as coisas em tão pouco tempo. Ele costumava não acreditar no mundo e no que ele dizia, principalmente quando se tratava das propagandas e comercias, porque na maior parte do tempo, diziam que se comprasse determinado produto tudo, exatamente tudo mudaria. E isso era mentira. Nada traria sua mãe de volta. Nada compraria um pai que fosse presente e nenhuma propaganda falava sobre como sobreviver a miséria sozinho. Tudo o que diziam era merda. — Então, onde estamos indo? — Enn perguntou quebrando a sequência de pensamentos negativos de Logan. Ela tinha andado silenciosamente até então, vendo as caretas que ele fazia sem questioná-lo, mas agora tinha se cansado de só observar. — Antes de s
— Então, onde estamos indo? — Logan perguntou quando atravessaram a porta em direção à rua. Já passavam das dez e Enn olhava para todos os lados à procura de outras pessoas. Ela sabia bem o que acontecia quando elas se aproximavam. — A única pista que eu tenho para encontrar o antídoto é o fato de que temos que procurar em algum local onde muita gente já tenha morrido. Nesses lugares geralmente existe uma pressão espiritual maior que nos faz arrepiar ou temer. — Ela disse andando ao seu lado. Logan pensou nos lugares onde provavelmente aquilo poderia ter acontecido. Numa cidade como aquela não eram raros casos assim acontecerem. Mas um acidente em especial o fez dizer: — Eu já sei! Enn o encarou em plena expectativa: — Onde? É aqui perto? — Há três anos um hospital foi incendiado por um homem maluco que dizia ser o edifício um monstro gigante o qual ele precisava combater. Essa notícia ficou na história, não é raro ouvir
— Enn, o que tá acontecendo porr... A porta azul abriu-se sozinha fazendo Logan fechar a boca suja. Ele esperou que Enn entrasse ou fizesse algo, mas ela parecia estar desesperada. Por que ele tinha topado aquilo? Agora ele tinha que morrer graças a sua ganância. Dando passos para dentro arrastou Enn atrás de si encarando bem o lugar. Era uma sala pequena, porém aconchegante, as paredes ainda eram da mesma cor bege de antes e os móveis eram feitos de madeira, típicos de uma pequena fazenda. Os sofás estavam cobertos por capas velhas e vermelhas de crochê, como que feitas por uma mãe muito caprichosa há muito tempo. E o quadro na parede... O quadro na parede emoldurava o sorriso de um homem de barba rala por fazer e uma mulher de cabelos escuros, e lindos olhos cinza brilhantes tão parecidos com os de... Com os de Enn. Como que ouvindo seus pensamentos, a garota deu um passo à frente tocando no quadro com o polegar direito o sorriso do pai. A cena mudou, o ret
“Amar não te faz imortal”. — Você tem certeza absoluta do que está fazendo? — Enn perguntou quando Logan a arrastou para muito perto do metrô — Não posso chegar perto das pessoas e esse é definitivamente um dos lugares onde mais existem pessoas aglomeradas. Logan, isso não parece ser uma boa ideia! — Ela agarra a manga do moletom dele. A atenção dele estava voltada para as escadas, procurando por pessoas. Se ele fosse rápido o suficiente conseguiria usar a passagem secreta que havia por trás da estação, sabia dela porque a utilizava para fugir quando estava sendo perseguido ou arranjava encrenca, o mundo das apostas podia ser selvagem quando queria. Quando ninguém mais estava subindo pelas escadas, ele segurou a mão de Enn com força entre seus dedos longos e a puxou do beco para o metrô. — Vem, eu tenho um plano! — Ele desceu as escadas correndo e antes que um homem, a dois metros de distância, distraído com seu celular fosse m
Ele estava confuso. Durante o trajeto que fizeram ao sair do vagão e perambular a procura de uma entrada para o esgoto, Logan observava o modo como Enn parecia estar inquieta, parecia estar mal. Logan andou pelo beco enquanto Enn agachava e puxava a tampa de esgoto de ferro redonda, indicando a ele que poderiam descer. Ele torceu o nariz ao passar por ela e entrar, no que parecia ser uma escuridão absoluta. Quando pisou em algo grudendo, não olhou para baixo a fim de saber o que era, sabia que se fizesse isso não encontraria uma resposta agradável. O cheiro era forte e ele achou que vomitaria, não tinha um estômago fraco, mas aquilo era demais até mesmo para ele. — Então, o que achou? Agradável, não é? — Enn perguntou de forma sarcástica ligando a lanterna de Logan. — Ao que tudo indica nós devemos ir por aqui — Apontou para a esquerda. Durante o trajeto, Logan não disse nada, apenas sentiu que algo estava o incomodando, algo que não era exatamente o esgoto q
Sabendo que precisavam de algum lugar para descansar, Logan levou Enn para o segundo andar e, ao que parecia, não havia sangue e destruição, apenas quartos com camas velhas abandonadas. Ele a levou nas costas, não sabia exatamente se ela tinha apagado de exaustão ou desmaiado devido aos ferimentos, mas algo no modo como Enn não se mexia estava deixando-o preocupado. Sentou no sofá por alguns breves segundos, com a cabeça entre as mãos. Sua mente se encontrava repleta de perguntas, para as quais não havia respostas. A única coisa da qual ele tinha certeza era a de que queria de algum modo fazê-la sofrer, fazer Mors de alguma forma morrer. Sabia que ela é uma entidade e que matar a morte é uma coisa impossível, mas agora, ali naquele quarto, sentia necessidade de vingar-se. — Logan... Ele encarou Enn deitada na cama. Ela estava deitada de lado, sem as cobertas empoeiradas, encarando-o. Seu cabelo estava esparramado na cama cobrindo metade da maçã do rosto, os b
Vá até onde você os deixa. Esta era a última pista. Ela encarou Logan como se ele pudesse saber sobre o quê o bilhete estava falando, mas quando retribuiu o olhar, soube que ele estava tão perdido quanto ela. O que aquelas palavras poderiam significar? O que diabos ela tinha deixado? — Nós temos que pensar como ela — Ele tamborilou os dedos no sofá olhando para além dela — O que a morte mais quer fazer você sentir? Algo que aconteceu nas duas últimas charadas... — Seus dedos tamborilavam mais rápidos. — Culpada? Eu estava carregando todo aquele fardo achando que fosse meu, em meus pensamentos a culpa de cada morte era minha e de mais ninguém. — Ela andou até ele e esperou as engrenagens em sua cabeça de algum modo fazer sentido. — Se este for o caso... — Logan se levantou indo até a outra ponta do quarto, seu semblante fixo em algo além das vidraças velhas e agora quebradas — Pode ser que as pessoas mortas teoricamente, por você, esteja
“Só existe uma única certeza solene a de que nada é para sempre”. Então vamos nos chamar de “nada” e talvez nos tornemos eternos. Enn respirou fundo, seus olhos encheram-se de lágrimas e ela então correu até sua mãe. Queria abraça-la propriamente, mas não o podia fazer devido à forma a qual ela se encontrava, então apenas a encarou por um longo tempo percebendo como eram semelhantes. Os olhos dela eram iguais aos seus e o nariz pequeno também, muito diferente do de seu pai, longo e fino. — E-eu... Quero dizer, eu não acredito que estou te vendo mamãe... Por tanto tempo eu pensei que nunca teria essa chance... — Enn estava em lágrimas agora, tentando se segurar e aproveitar ao máximo esse momento. — Mamãe, eu tenho que fazer algo, algo provavelmente ruim... — Eu sei querida. Por isso eu te esperei, para poder te dar o meu consentimento. — Ambas sentaram-se à cama, sua mãe segurou suas mãos entre as delas, apesar