ME DEVOLVA MARY

Aceitar a oferta de uma estranha que era perseguida pela morte não estava nos planos de Logan. Ele não falava com estranhos, sua vida dependia unicamente dos jogos e nada mais. Agora, andando lado a lado com a garota, perguntou a si mesmo como era possível o mundo mudar as coisas em tão pouco tempo. Ele costumava não acreditar no mundo e no que ele dizia, principalmente quando se tratava das propagandas e comercias, porque na maior parte do tempo, diziam que se comprasse determinado produto tudo, exatamente tudo mudaria. E isso era mentira. Nada traria sua mãe de volta. Nada compraria um pai que fosse presente e nenhuma propaganda falava sobre como sobreviver a miséria sozinho.

Tudo o que diziam era merda.

— Então, onde estamos indo? — Enn perguntou quebrando a sequência de pensamentos negativos de Logan.

Ela tinha andado silenciosamente até então, vendo as caretas que ele fazia sem questioná-lo, mas agora tinha se cansado de só observar.

— Antes de sairmos à procura de sei lá o que, tenho que passar em casa para ver algo — Ele disse olhando atentamente para os lados.

Enn apenas assentiu, pensando em como seria a vida de Logan sem a mãe desde aquele dia. O que ela veria era o resultado de ser salva por aquela mulher. Veria o dano que tinha causado, e saber disso angustiava o seu coração de uma maneira avassaladora.

Quando viraram a esquina, Logan andou sobre a calçada em direção à porta de uma pequena casa. As paredes eram brancas, rachadas pela chuva e umidade, dando ao lar um aspecto de velho e pobre, até mesmo a porta fez rangidos e estalos quando passaram por ela.

O cheiro de álcool entrou pelo nariz de Enn ao passo que o som da TV ligada enchia a casa.

— Quem tá aí? — O pai de Logan perguntou.

— Não ligue para ele — Logan a segurou pelo pulso em direção às escadas velhas fazendo-a quase ter um surto com seu toque — venha antes que ele resolva levantar do sofá.

Enn não o questionou, apenas subiu as escadas o mais rápido que pode pensando nos dedos de Logan em seu braço. Os dedos dele. O calor. Há quanto tempo não sentia esse tipo de calor? Seus olhos marejaram, ela rapidamente abaixou a cabeça enquanto o seguia.

Logan trancou a porta e analisou a bagunça que estava o seu quarto.

Ela se sentou na cama sem pedir, olhando em volta as paredes cheias de pôsteres de bandas que ela não conhecia, olhando para o guarda-chuva pontudo do outro lado do quarto, as canetas dentro da caneca em cima da escrivaninha e as hélices do ventilador desligado.

Ela pegou estes objetos e jogou todos pela janela, fechando-a em seguida.  Logan permaneceu de boca aberta, com as mãos ao lado do corpo, só depois de alguns segundos foi que disse:

— Bom, eu poderia ter posto tudo no banheiro, mas okay. — Ele encarou o modo como ela estava segurando seu pulso direito, mas não disse nada sobre isso, apenas lhe perguntou o óbvio: — Para onde nós vamos?

— Eu não sei ao certo.

— Como não sabe ao certo? — Ele bufou. — Não podemos seguir vagando sem uma direção, né gênio?

Ela revirou os olhos, a presença dele e o jeito sínico com o qual falava aos poucos começavam a irritá-la.

— Eu me recuso a ir sem saber informações. Qualquer pessoa com um QI não tão elevado deveria saber no que está se metendo.

Enn tentou não pensar demais, porque se pensasse não contaria o que estava prestes a dizer. Ela tinha escondido tudo a sete chaves no seu coração e desde então não tinha permitido que ninguém o abrisse. Era estranho que agora ela tivesse que abrir o próprio coração para um estranho, para alguém que provavelmente em um dado momento a odiaria. Antes que pudesse se arrepender apontou para que ele se sentasse:

— Há muito tempo...

— Espera. Essa é uma daquelas histórias chatas que demoram uma vida toda para acabar? Se for, saiba que isso me faz dormir. É melhor dizer só o importante.

Enn revirou os olhos.

— Essa é a minha história, então você vai ter que ouvir — Disse seriamente.

Logan sentou-se assumindo a forma de um ouvinte ansioso para que a história acabasse antes mesmo de começar.

— Então como eu dizia... — Enn parou só para ver se ele a interromperia de novo, em resposta ele fez um gesto irritante com a mão dizendo para ela continuar — Minutos antes do meu nascimento, minha mãe descobriu que não conseguiria dar à luz a mim.

"Era primavera apesar da chuva torrencial que caia lá fora... Minha mãe não tinha família além do meu pai, na verdade ambos pertenceram a um orfanato em Los Angeles por muito tempo até enfim completarem a idade adulta e decidirem viver juntos. Eles não tinham ninguém a mais e por muito tempo, minha mãe tentou gerar um filho, mas de todas às vezes o feto sempre morria logo nos primeiros meses... e então, chegou a minha chance.

Dentro do quarto mal iluminado, estava meu pai ao lado da minha mãe e... Foi nesse momento que o médico lhes deu a notícia. Meu nascimento também era uma causa perdida, eu era um feto semimorto que não aguentaria mais algumas horas. Era a desesperança em uma quase vida cinza que não podia parar de descer todos os degraus, que ainda não existiam, direto para a morte iminente.

Minha mãe chorou e olhando desesperadamente para o meu pai, exigiu que ele encontrasse uma saída, saída essa que qualquer mente sã diria não existir. Mas ela era mãe, por nove meses me esperou, e internamente em seu âmago sabia que estava perdendo a maior ligação que o universo um dia já criou.

Foi quando algo momentaneamente aconteceu. A Morte... Ou melhor, Mors veio me buscar. Ela flutuava sobre o chão... Deixando um rastro frio e nebuloso para trás. Era um esqueleto calcificado de todo pó humano que um dia fora morto e lançado a terra. Minha mãe quando a viu não sentiu medo, em vez disso, se sentou na cama e a encarou fixamente enquanto flutuava até perto dela. Não sentiu medo porque aquela não era a despedida de uma mãe e do seu feto quase semimorto, de mim, mas sim a sua esperança. A solução que ela tanto exigiu encontrar.

Os dedos ossudos e gelados de Mors estenderam-se sobre a barriga da minha mãe, fazendo frio e medo desprenderem-se do lugar, os dois tornando-se um; o desespero. Era aquela espontânea sensação de estar parado no tempo e grudado numa realidade enquanto algo realmente assustador estava prestes a acontecer. Mas ela não se mexeu, não conseguiu. Os nervos são inconstantes e traidores.

— Não... N- não toque nela — Minha mãe disse. Estas palavras... Exatamente estas palavras me fizeram pensar no quanto ela era forte. Nem mesmo os nervos poderiam a impedir. Algumas coisas simplesmente são predestinadas a acontecer, a coragem é uma delas.

Mors suspirou longamente e deu uma risada gutural, a rouquidão e o tom ecoando pelo quarto hospitalar. Mesmo não conseguindo se mexer, sendo refém de si mesmo, meu pai sentiu que a morte sabia, sabia exatamente o que minha mãe queria.

— Qual é o preço? — Minha mãe perguntou tentando não transparecer o desespero gritante que estalava em seu coração. — Eu te darei qualquer coisa! Nada mais me importa, nessa vida nada mais me importa... Por favor... Qual é o preço? Sempre tem um preço. Eu te imploro... Salve meu bebê!

— Eu sempre venho, mais cedo ou mais tarde andando sobre o espírito de qualquer um. Se quiser ter sua criança salva, saberá que ela não será sua. Jamais será. Você vem comigo e ela fica. A conta é bem simples — os dedos de Mors estavam agitados enquanto o manto que lhe cobria se movimentava ligeiramente — Uma vida pela outra.

— É justo — minha mãe respirou fundo, os olhos vermelhos seguravam qualquer lágrima que pudesse jorrar. — Deixe-a viver e que ninguém tire a sua vida, ninguém.

De onde vinha a força que emanava da minha mãe? Eu me pergunto até hoje e constantemente respondo para mim mesma que ela era o que era e faria tudo para salvar uma vida que um dia seria. Uma lágrima caiu dos olhos dela, uma lágrima de luz, muito diferente de todas as outras trêmulas e desesperadas. Esta lágrima está enraizada em mim. Logo depois, por um longo e interminável segundo, minha mãe respirou fundo dando o acordo como feito. Mors, então tocou o dedo na barriga da minha mãe. Ela gritou agonizando, os dedos roxos apertavam os lençóis enquanto a dor a consumia. Os gritos ecoavam e até a chuva parou em um minuto lamentoso de silêncio. Foi então que minha mãe morreu e eu... Bom, eu vivi.

— Mas nem tudo pode ser como se quer — Mors disse baixo com a boca a centímetros da barriga, tão baixo que mal se ouvia, a morte falava comigo — Sua vida agora é minha. Está amaldiçoada, filha da morte. Lembrará deste dia quando for grande para que se reverbere em tua mente a certeza solene de que nada é para sempre. Eu sou a primeira a te dar vida e também quem te matará.

Assim ela se foi... Deixando o ar novamente circular. Sabe a primeira vez que chorei não foi quando eu nasci, foi antes disso bem naquele momento dentro do útero da mulher que se sacrificou por mim. “Não era um choro de vida, mas sim de desespero.”

Para ela nada era mais doloroso do que reviver aquele momento repetidas vezes. Enn sentia seu coração bater tão forte no peito que podia jurar que Logan também o ouvia. Tudo o que ela queria fazer, era abraçar o garoto ao seu lado e lhe dizer que sentia muito por tudo o que tinha feito, por ter matado sua mãe. Mas isso não podia fazer, ela sabia bem. Ele a odiaria, detestaria ter sua presença por perto e a consideraria realmente morta para ele. As lágrimas eram por sua mãe, mas também por Mary, percebeu de repente.

Os olhos dela estavam bem abertos e tão pertos dele, tão empáticos que Logan coçou os dedos se segurando para não enxugar as lágrimas que caiam incessantemente deles. Ele não lamentou e não disse "eu sinto muito". Apenas sentiu a raiva lhe subir pelo peito arrancando tudo o que antes o impedia de continuar.

— Alguns dias depois... Mors tentou me matar. Ela veio pessoalmente até mim e atirou facas em minha direção e... quando estavam a centímetros de mim, elas se desviaram atingindo a parede. Por seguidas vezes, ela mandou objetos pelo ar, pela terra e até por pessoas, mas eles nunca conseguiram me atingir.

— Mas... Se você estava amaldiçoada a morrer... Por que não deu certo? — Logan perguntou baixo abraçando suas próprias pernas.

— Antes da maldição, minha mãe lançou em mim algo como um contrafeitiço... Ela disse que ninguém me mataria e selou-o junto com suas lágrimas. — Ela enrolou os longos cabelos negros nos dedos puxando-os para o lado e então virou suas costas para ele. Um pouco abaixo de sua nuca havia uma pequena marca dois tons mais clara que sua pele normal, no formato perfeito de uma lágrima. Logan chegou um pouco mais perto tocando de leve o desenho, fazendo-a pular de susto.

— Perdão... Eu...

— Não, tudo bem. Só não estou acostumada a ter pessoas me tocando, elas sempre morrem antes mesmo de fazer isso.

— Então... Agora você não pode ser morta, mas acaba desviando objetos e matando os outros?

— Sim. Qualquer ação feita que seja para me machucar, ou até mesmo tocar em mim, os leva a morte.

Ele engoliu em seco, perguntando a si mesmo como não tinha morrido, havia tocado sua marca e não estava estendido duro no chão.

Ele não tinha mais dúvida, mas sim uma promessa a cumprir. Mordendo com força sua mandíbula ele tentou se acalmar, segurando, depois de ouvir sua história, a sanidade que ainda lhe restava. Então murmurou para que só ela ouvisse:

— Vamos encontrar esse maldito antídoto, Enn. E vamos matar a morte.

Enn suspirou perante as palavras ditas por Logan e se sentiu ainda mais culpada por não lhe dizer a verdade. Ela lhe devia isso desde sempre. Tomando coragem respirou fundo e lhe disse:

— Logan... E-eu...

— MINHA MARY! TRAGA DE VOLTA MINHA MARY! — Ouvindo os gritos que vinham do outro lado, Enn sentiu seu coração sendo esmagado. Era o pai de Logan. Ele era assim por culpa dela.

Logan levantou-se rapidamente pegando o dinheiro que restava, pelo o que dava para ver, colado debaixo da mesa de estudos velha. Ele se movia pelo quarto pegando objetos enquanto Enn se levantava lentamente. Ela mal conseguia respirar.

— Logan, pare. — Disse quando o pai dele deixou de gritar.

Ele se virou para Enn com as sobrancelhas franzidas.

— Parar? — Perguntou a encarando fixamente.

O que estava fazendo? Enn perguntou para si mesma. Precisava da ajuda dele, entretanto... Não conseguia seguir com aquilo. Em pé com os olhos de Logan presos nos dela, não soube que desculpa formular. Aquela era uma péssima ideia, ela não deveria ter o encontrado.

— Você não precisa fazer isso — Disse decidida —, você não precisa...

Ele a encarava fixamente, estava indignado de um jeito que nunca tinha visto antes alguém ficar.

— Você — Agora foi Logan quem se pronunciou —, pensa que pode claramente entrar na minha vida, contar sua história e simplesmente ir embora?

Enn ficou muda.

— Eu te dei minha palavra e a cumprirei, Huntly. Posso não ser a melhor pessoa do mundo, mas sou o melhor que você tem agora.

— Você não sabe a história toda, Logan... Como pôde confiar em mim até aqui? — Perguntou exasperada, de repente quis enfiar a cabeça num buraco e impedir que os olhos dele se cravassem daquele jeito nos dela.

Ele sorriu de lado.

— Porque eu senti que deveria e sou um cara que cumpre o que promete. E, além disso... — ele colocou a bolsa nos ombros abrindo a porta — eu vejo através dos seus olhos o medo e a culpa. Quando estiver pronta para me contar a sua história eu também estarei pronto para contar a minha.

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