LEITURA

Meia noite,um Passat pointer preto 1988 estava parado há tempo demais  em frente ao condomínio Egeu na zona sul da cidade.Al Green cantava Lets Stay Together em volume suave no rádio como se o tempo não existisse. Um aroma adocicado - rosas,mel e baunilha, inundava a cabine.

Mãos se tocavam,deslizavam por pernas,costas,  pescoço.Lábios se encontravam, umidos,quentes,famintos espalhavam-se pelo colo,queixo,lóbulos.O calor dos corpos parecia absorver o gelo do ar condicionado,as roupas grudavam-se à pele, goticulas de suor brilhavam nas frontes.Respiração ofegante,gemidos. Uma mão pálida interrompeu tudo com rapidez e delicadeza.

-Misaki- suspirou Orlando,o  desapontamento no rosto e no tom.

Cílios longos e negros rebateram em resposta como asas de borboleta em câmera lenta. À luz do luar,o rosto de Misaki parecia perolizado.

-Preciso ir,amor- ela sussurrou.

Orlando acariciou a  coxa dela.

-Sem prorrogação hoje?

Misaki correspondeu brincando com o cavanhaque dele.

-Hoje não.

-Vamos lá, você não precisa acordar cedo amanhã,eu vou trabalhar à noite…

-Yumi esta em casa.

Orlando revirou os olhos.

-Fala sério.Pensei que ela não fosse dormir mais na sua casa.

-Só esse fim de semana,meus tios não queriam que ficasse sozinha.

-Ue, ela continua sozinha, você não para em casa.

Misaki estalou a língua.

-Você entendeu,seu chato.

-Ela tá bem grandinha pra isso, não acha?

-Ela é irresponsável, inconsequente…

-Louca, ninfomaníaca.

Misaki lhe deu um tapa no braço.

-Ei,não fala assim da minha prima.

-Sabe que é verdade.

-Ah,ela só é…adolescente.

-Você era assim, fogosa?

-Ai,Orlando, você não presta.

Ele se inclinou e a puxou para si com um abraço.

-Bem que você gosta,japa.

Misaki ergueu o queixo, o rosto sério.

-Ja falei pra não me chamar assim.É ridículo.

-Xiiii, ficou irritadinha?

-Não.Só acho muito deboche.

-Só você acha isso.

- Então é o que importa.

Orlando aquiesceu com a cabeça,viu luzes em alguns apartamentos e imaginou o que  as pessoas estariam fazendo acordadas àquela hora. Se fosse uma delas, provavelmente estaria jogando no computador ou atualizando suas séries,o que já não fazia há uma semana.Mas a maior parte das madrugadas passava no trabalho. Aquela era uma exceção.Não era qualquer garota que ficava com um cara quase indisponível para a noite e com um tempo limitado durante o dia.Fato:histórico de fracassos amorosos devido ao trabalho e não precisou de nenhuma dica terapêutica para se conscientizar disso.

Misaki nunca encarou como um problema,pelo contrário, admirava-o por ter o próprio negócio.

Orlando acariciou os cabelos dela.eram como  centenas de fios de seda escorrendo entre os dedos.Sentiu uma compulsão de abraça-la mais forte e não soltar.

-Aconteceu uma coisa estranha hoje. -disse Misaki.-Quer dizer ,a Elô estava estranha.

Orlando deu uma risadinha.

-Misa,ela já é estranha por natureza.

-Não,sério.Ela parecia transtornada,ansiosa.Orlando ,eu conheço a Elô há séculos, ela não estava bem.

-Deve ser esse estresse por causa dos pais.

-Ela disse que conseguiu ficar de boa com o pai.Tiveram uma conversa pacífica.Eu ainda tentei pressionar,mas ela não se abriu.

-Vai ver achou que não era hora para se abrir. Dá um tempo pra ela.

Misaki concordou com um movimento leve de cabeça,em seguida o beijou de leve,mordiscando o lábio inferior antes de se afastar.

-Tá me devendo uma noite completa,Flor da Neve.

Antes de abrir a porta do carro,ela parou por alguns segundos como  se lembrasse de alguma coisa.A mão de Orlando tocou o seu ombro nu,mais como um gesto protetor do que para chamar sua atenção. Ela correspondeu sobrepondo com a sua, em seguida saiu.

A única luz do apartamento era o azulado da tv ligada na sala. Yumi estava desmaiada no sofá com fones no ouvido, as pernas compridas e atléticas por cima do braço do móvel.Um balde de pipoca vermelho com estrelas amarelas no chão junto a duas latas de coca cola vazias e uma embalagem de papelão com uma pizza media pela metade.

Na tv passava um episódio de uma série de comédia que certamente não era o que ela deveria estar assistindo e em um volume que duvidava muito ser capaz de atravessar os fones. Como conseguia?

Expirou o ar dos pulmões e procurou o controle remoto.Deveria estar na mão da garota  ou no chão,mas a lógica não funcionava com Yumi. Não seria surpresa se encontrasse na pia do banheiro.O pior de tudo: a bagunça. Consuelo não trabalhava nos fins de semana,esse era um acordo pétreo que Misaki procurava respeitar,o que significava que  até segunda a casa poderia se tornar o retrato de uma cidade devastada por um tsunami.

Mas isso não ia acontecer,Yumi podia estar certa disso.

Desistiu de caçar o controle remoto e desligou o aparelho diretamente no botão.Foi para o quarto, pegou uma camisola azul clara transparente, jogou na cama e entrou no chuveiro.

Eram duas da manhã quando começou a ler .Não era o que pretendia depois do banho,mas  a atitude de Eloísa a intrigava  desde que se despediram. Alguma coisa naquela história mexeu com ela.

Sua leitura tinha uma perspectiva mais analítica na tentativa de encontrar algo mais que apenas uma obra bem feita. O drama da protagonista,Celesta Valdez,uma  jovem de dezessete anos que sofria humilhações no colégio a cativou.De algum modo, se identificava com ela.Era a história de todos aqueles que sofreram ou sofrem nas mãos de quem pensa ter o poder e a razão.A história de Celesta era uma metáfora crua da imposição social sobre o indivíduo. O desenho expressava sem sutilezas a violência física e psicológica da personagem em um nível que por vezes obrigou Misaki a interromper a leitura para respirar. Ela já sofrera humilhações,sabia o que era se sentir desamparada,ser golpeada por um desespero que parecia não ter fim e lendo  era como sentir tudo vindo à tona com uma intensidade histórica.

Não era quadrinhos para  crianças,embora retratasse a realidade de muitas no microcosmo escolar. Dramas estudantis eram bem explorados  no universo dos mangás,mas ela nunca havia visto algo tão intenso e realista.

Na virada da trama,quando a  protagonista se encontra à beira da morte em uma tentativa de suicídio,é detida por uma garota igual a ela,porém com um aspecto mais sombrio,que decide assumir a vida de Celesta e a mantém aprisionada em um  lugar isolado.Dai em diante a personagem se vê envolvida em uma luta para recuperar seu lugar no mundo e deter a insanidade de sua versão nefasta.

Aquela  não era o  tipo de historia que você fechava satisfeito como quem come um prato cheio,era como aperitivos que você não conseguia parar  de comer. Ela invadia o íntimo;primeiro como um convidado bom de conversa, atraente, depois  segurava seus ombros com força e a centímetros do seu rosto jogava verdades que você não queria lidar.

O quarto vazio e silencioso parecia grande demais agora. O som da sua respiração a incomodava, como quem se esconde e não quer ser encontrado.

Colocou o caderno na cabeceira da cama e se virou com os olhos para o teto.Fazia tempo que não se deparava com um trabalho capaz de bagunçar suas emoções.Era angustiante, sedutor, furioso,provocou uma sensação de vulnerabilidade como se tivesse sido despida em público.

Sua vista começou a ficar embaçada com a umidade quente das lágrimas.Não costumava chorar, principalmente com livros. Podia se emocionar com uma obra e sentir um nó na garganta,um ardor no peito.Mas chorar? Quando adolescente até desmontava com romances açucarados.Depois dos dezoito não se quebrava mais tão fácil.Foi a época em que perdera seu avô,um homem intenso que acreditava na vida e nas pessoas. Como ter o braço arrancado por um trem,essa foi a sensação mais próxima de sua perda.

Ela entendeu o que tinha em mãos. Entendeu que havia mais do que potencial ali,havia poder e causou  um efeito  explosivo em Eloísa.

No verso da capa do caderno havia uma numeração escrita a lápis  quase ilegível.Poderia significar alguma coisa relacionada ao autor.

De repente,suas pálpebras começaram a pesar, os pensamentos anuviaram.Virou o corpo de lado e afundou no sono.

Uma dor aguda latejava em seus biceps, queimava como óleo fervente até a omplata. O estômago revirava e um gosto azedo subia lhe à garganta. Ela abriu os olhos e viu sombras humanóides à distância. Um som baixo e cadenciado semelhante a murmúrios ecoava ao redor.

Estava ajoelhada sobre um tatame roxo e

alguém às suas costas  a prendia em uma chave de braço.

Tinha perdido a consciência em uma luta? Como foi parar ali?Tentou se desvencilhar,mas sentia se fraca demais.

Olhou ao redor. Não havia um juiz. Ninguém além da pessoa que a segurava.

Seu íntimo gritava: bata na lona,bata na lona!

Ela resistia.Mesmo que não se sentisse fisicamente bem,poderia encontrar um jeito. Tinha em mente algumas técnicas para escapar daquela chave sem muito esforço.

Contudo,antes que pudesse fazer qualquer movimento, a pressão no braço diminuiu até livrar completamente.Ela se afastou rápido com um rolamento e ficou de pé em posição de ataque.  A mulher à sua frente tinha a mesma estatura,o cabelo em corte moicano,  piercing no nariz e o lado direito do rosto com uma tatuagem de dragão que descia até a cintura onde ficava a cauda.À primeira vista a impressão era de uma mancha escura tomando  a bochecha,mas aos poucos, podia se  notar os olhos abissais,as mandíbulas  escancaradas como que prestes  a cuspir fogo e o focinho comprido rugoso.

Usava uma camiseta preta colada ao corpo com a palavra End em vermelho,um short curtíssimo  de Lycra cinza.

Ela sorriu de lado e colocou as mãos na cintura.

-Eu teria pensado em  tudo o que você pensou.- disse ela.

Misaki franziu a testa.

-Quem é você?O que está acontecendo?

A mulher dragão deu uma risada.

-Por enquanto não está acontecendo nada.

-Isso é alguma brincadeira?

-Infelizmente pra você, não.

Esticou a mão e segurou de leve o queixo de Misaki que imediatamente repeliu com um tapa.

-Ora,quanta agressividade.

-Quem é você?-Misaki gritou bem além do que pretendia.

Uma expressão de alegria maldosa transpareceu no rosto da mulher.

-Aha,aí está você.

-Do que você está falando sua louca?

- É isso o que acha que sou?

-O que eu acho é que se não me disser o que está acontecendo vou arrebentar sua cara.

A boca da mulher dragão formou um O, acompanhada dos olhos arregalados. Os olhos…Misaki não havia reparado e surpreendeu se com isso porque teria sido a primeira coisa que qualquer um perceberia, a menos que antes estivessem normais.Agora a Iris era vermelha como rubi.

Como que percebendo sua inquietação,os lábios da mulher se curvaram em um sorriso.

Inesperadamente jogou o peso do corpo contra Misaki derrubando-a com facilidade.Em seguida, colocou o antebraço sobre seu pescoço pressionando-o  enquanto com os joelhos imobilizava as mãos. Misaki tentou se mexer,mas era como mover um tanque.

-Agora preste atenção- disse a mulher-Ainda não é a hora,mas vai chegar.

Misaki cerrou os dentes.Sentia suas forças saindo por todos os poros do corpo como que sendo drenada.Fixou se nos olhos malignos e teve a impressão de um abismo sem fundo prestes a suga-la.Foi então que seu coração disparou.Até o momento estava apenas confusa e indignada,mas uma nova realidade se desvendava e era assustadora.Um grito queimava como ácido na boca. A mulher começou a espremer sua traquéia.Sua visão oscilava, intercalava entre foco e desfoque até ouvir um estalo.

Um som áspero e agudo saiu de sua garganta quando levantou o tronco e sentou na cama. A camisola colava se na umidade da pele,os cabelos eram algas grudadas nas costas e ombros. Um sonho, apenas um sonho terrivelmente real.Alguns segundos entre inconsciência e lucidez ela ainda duvidou estar acordada. As sensações  pairavam no ar como resquícios de uma explosão diminuindo a medida que atestava estar de volta.

Eram quatro e quinze da manhã,uma hora ingrata habitada por insones, trabalhadores e baladeiros.Ela era uma estranha que há muito não andava na madrugada. Estava lá e ficaria por um bom tempo já que dormir era uma impossibilidade.Tinha todo tipo de recurso para instigar o sono,mas não queria. Seus olhos precisavam estar abertos, sua mente desperta e convicta de cada centímetro do que fosse real. Havia algo abaixo da superfície,estava além da percepção humana,recente, escorregadio, indefinido. Mas se tentasse  traduzir da maneira mais simples possível  era como se a mulher tatuada estivesse o tempo todo ali,escondida nas sombras.

A ideia de acabar com a garrafa de saquê guardada desde o Natal não lhe pareceu ruim àquela hora.Depois daquilo era mais que merecido

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