Passos acelerados.Saltos.Estalos no concreto. Misaki cortou a rua até sua Kawasaki 600 cilindradas. Celular no ouvido esperando Eloísa atender. As mãos suavam frio, uma leve dormência nos braços.
-Elô, preciso pra ontem saber onde encontraram o original- tom àspero na voz, uma densidade que pesou nos ouvidos da amiga.
- Xiii, bom dia pra você também- retrucou Eloísa.
-Vou agora no lugar.
-O que?A casa está em obras, acho difícil que encontre alguma coisa.
-Sério, isso não tá acontecendo-disse Eloísa assim que parou o seu fusca rosa na frente do prédio. As vezes o GPS se engana. Já aconteceu mais de uma vez. Não era para ser assim porque desde que os mapas de ruas foram dispensados, a humanidade passou a depositar a confiança nessa maravilha tecnológica. Eloisa não chegou a depender de mapas, mas lembrava de viagens com seus pais. A mãe com aquele papel do tamanho de um outdoor no colo conferindo a rota como uma co-piloto.Nunca erraram o caminho. Pelo menos era o que lembrava.Essa lembrança atestou a consciência de que a vida analógica era um mundo distante, porém mais interessante. As pessoas precisavam usar mais a cabeça.Falava -se muito de transferência de mente para os computadores como realidade de algum futuro não muito dis
Estamos agora na Rodovia Laura Alvim onde um ônibus da linha 237 acaba de ser sequestrado.Pelo que fomos informados até agora, cerca de trinta passageiros estão sob o poder de três indivíduos armados com fuzis e pistolas. A polícia acompanha o veículo, mas até o momento não foi estabelecido nenhum contato... O repórter se cala com um giro no botão do rádio. A campainha toca insistente do lado de fora. O homem em seu apartamento levanta da cadeira, pega meio cigarro do cinzeiro. Ia parar de fumar um dia. Conseguiu resistir por dois meses até começar o trabalho. Agora também já não importava. Abre a porta sem pressa. Depois das onze da noite ninguém precisa se afobar. A pessoa à sua frente usa o figurino noir - capote marrom,chapéu preto com abas, sapatos opacos.Não se trata de um estilo e sim uma resposta à chuva infernal. Silvio Alieri não lembrava se em algum momento de sua vida gostou de chuva. Ele cumprimenta o homem e entr
O copo estava pela metade quando o chamaram.entendeu como um alerta do destino, conspiração do universo ou qualquer outra denominação mistica para evitar mais um gole daquele café. Não estava ruim e sim algo além do intragável. Quem quer que tenha preparado não poderia se iludir com a ideia de viver daquilo ou morreria de fome. Derramou o copo na pia da cozinha, foi até a sala de estar. Metade das tábuas do chão tinha sido retiradas,as paredes totalmente lixadas,sacos de cimento e argamassa,pisos de porcelanato se empilhavam pelos cantos. Dentro de alguns dias aquele mausoléu seria transformado em um ambiente pós moderno rabiscado por um garoto de barba estilizada e canudo com cheiro de recém formado que nunca sujou as mãos com rejunte. Tudo muito lindo e caro,muito caro.Bom, não era problema dele,estava sendo pago para seguir o projeto,nada mais.-Patrão, achamos isso aqui escondido no chão.- disse Francisco, um dos pedreiros.-Escondido?Onde?-Num quarto, debaix
Levou algum tempo até Misaki se acostumar com temperos fortes e aromas capazes de reservar uma temporada no banheiro .Ainda evitava alguns pratos,mas não passava fome nos restaurantes, principalmente no Roda Baiana onde a culinária era uma explosão de sabores intensos.Sentaram em uma mesa próxima a janela com vista para o mar.Eloísa pediu para as duas um bobó de camarão acompanhado de uma jarra de suco de cupuaçu gelado.Enquanto esperavam,ela estendeu sobre a mesa o caderno de capa verde.-Da só uma olhada nisso.Eloisa não ia falar de suas impressões ou do impacto daquele trabalho,ainda não.Misaki sorriu,abriu o caderno e passeou pelas primeiras páginas.Suas sobrancelhas finas e escuras se levantaram,tocou rapidamente os lábios com a ponta dos dedos ,fez movimentos positivos com a cabeça. Eloisa deixou um sorriso deslizar no rosto.-Nossa,é incrível.Uma graphic novel.De quem é? -Misaki perguntou sem tirar os olhos das páginas.Eloísa
Meia noite,um Passat pointer preto 1988 estava parado há tempo demais em frente ao condomínio Egeu na zona sul da cidade.Al Green cantava Lets Stay Together em volume suave no rádio como se o tempo não existisse. Um aroma adocicado - rosas,mel e baunilha, inundava a cabine.Mãos se tocavam,deslizavam por pernas,costas, pescoço.Lábios se encontravam, umidos,quentes,famintos espalhavam-se pelo colo,queixo,lóbulos.O calor dos corpos parecia absorver o gelo do ar condicionado,as roupas grudavam-se à pele, goticulas de suor brilhavam nas frontes.Respiração ofegante,gemidos. Uma mão pálida interrompeu tudo com rapidez e delicadeza.-Misaki- suspirou Orlando,o desapontamento no rosto e no tom.Cílios longos e negros rebateram em resposta como asas de borboleta em câmera lenta. À luz do luar,o rosto de Misaki parecia perolizado.-Preciso ir,amor- ela sussurrou.Orlando acariciou a coxa dela.-Sem prorrogação hoje?Misaki correspondeu brincando co
O problema da autoconfiança excessiva é a ilusão da invulnerabilidade. A pessoa relaxa, expõe sua fraqueza sem perceber.Isso era tudo o que Misaki precisava.Embora fosse rapida e mais forte,sua oponente dominara a luta desde o início usando de uma agilidade e equilíbrio que não esperava. Era como tentar lutar com uma sombra. Por muito pouco,pelo menos duas vezes, Misaki esteve perto de ser massacrada.Primeiro foi atingida por chute na lateral do rosto que a deixou zonza, as pernas fraquejaram,o mundo girou,se contorceu e explodiu no branco sintético da lona.De imediato uma pressão imensa esmagou seu peito: oponente estava encima com os joelhos no chão comprimindo o corpo e prestes a enterrar uma sequência de socos em seu rosto,mas rapidamente Misaki se esquivou para cima,liberou o tronco, bloqueou com o pé esquerdo o pé direito da oponente,em seguida com a mão impediu que Maria se apoiasse no braço,levantou os quadris com o apoio do pé direito,girou e empurrou a outra pe
-Amiga,você tá com uma cara- disse Eloísa enquanto colocava açúcar no café.Misaki piscou os olhos e os arregalou em seguida. Sua cabeça parecia estar rachada e cada osso do corpo triturado. -Tão mal assim?-Perguntou enquanto revirava a bolsa.-Cara de acabada.Misaki puxou um espelhinho e girou em todos os ângulos do rosto. Manchas arroxeadas se emplastravam sob os olhos inchados e vermelhos, o batom claro que escolhera a deixou com a palidez de um zumbi.-Que horror!- lamentou-É, a festa foi boa.-Que festa o que, Elô!Eloísa riu baixo.-Ei, brigou com o Orlando?Ele tá livre agora?Misaki arremessou uma bolinha de papel.-Não,sua tonta,nada a ver.-Vai ter que me convencer disso.- Já basta o estresse que tive com a Maria,não enche.- Aí,aí, a eterna novela. Não percebe que vocês duas não podem estar no mesmo lugar ao mesmo tempo?Lei da física, querida.-ELA não deveria ocupar o meu espaço seria o mais correto. Qualquer dia vamos
O silêncio não o incomodava, podia ficar horas em um ambiente sem ruídos. Tanto em uma biblioteca como em um canto perdido no mato.Passaria tranquilamente o dia sem neuroses. O problema era o silêncio das pessoas quando esperava uma resposta.Desde o primeiro momento em que pediram para esperar, as pernas não pararam de balançar, as mãos não se aquietaram, ora pegando uma revista, ora acariciando a cabeça raspada. Todo esse tempo só para dizer um sim ou não?Quando Anderson disse que a vaga para o food truck no Festival de Música da cidade era certa ,achou que chegaria lá, assinaria uns papéis em dois minutos, não esperar metade do dia.O sistema está lento hoje, foi a desculpa da recepcionista, nem um pouco convincente ou solidária. Seria normal se tivesse um aviso na parede informando que o sistema estava lento, porque todos os dias deveria ser