Levou algum tempo até Misaki se acostumar com temperos fortes e aromas capazes de reservar uma temporada no banheiro .Ainda evitava alguns pratos,mas não passava fome nos restaurantes, principalmente no Roda Baiana onde a culinária era uma explosão de sabores intensos.
Sentaram em uma mesa próxima a janela com vista para o mar.Eloísa pediu para as duas um bobó de camarão acompanhado de uma jarra de suco de cupuaçu gelado.Enquanto esperavam,ela estendeu sobre a mesa o caderno de capa verde.-Da só uma olhada nisso.Eloisa não ia falar de suas impressões ou do impacto daquele trabalho,ainda não.Misaki sorriu,abriu o caderno e passeou pelas primeiras páginas.Suas sobrancelhas finas e escuras se levantaram,tocou rapidamente os lábios com a ponta dos dedos ,fez movimentos positivos com a cabeça. Eloisa deixou um sorriso deslizar no rosto.-Nossa,é incrível.Uma graphic novel.De quem é? -Misaki perguntou sem tirar os olhos das páginas.Eloísa empurrou um saleiro com a ponta da unha.Percebeu que estava grande demais e precisava tirar aquele esmalte.-Não faço a menor ideia.Misaki franziu a testa e a encarou surpresa.-Não, espera um pouco.Onde achou isso?Eloísa levantou as mãos.-Na verdade quem achou foi meu pai e,detalhe,escondido em um fundo falso no piso.Uma lembrança flutuou das profundezas batendo asas em câmera lenta e pousou na mente de Misaki.Anos atrás ela estava em uma escola no Japão.Era um dia nublado,havia neve no pátio onde uma turma de crianças se reunia ao redor de um relógio de pedra.A professora falava algo sobre legado e história e naquele dia eles iriam deixar uma marca para o futuro. Então,ao fim da palestra,a professora se agachou, abriu o relógio como se fosse um baú e retirou de lá uma caixa de metal. Aquilo foi uma surpresa para as crianças porque nunca imaginaram que o relógio fosse um esconderijo e muitos pensaram que aquela caixa era um tesouro,mas quando foi aberta,suspiraram desanimados porque só havia papéis a maioria com desenhos infantis,vestígios de alguma turmas de dez anos atrás. Cada um recebeu um papel,Misaki ganhou um poema de um menino com a letra tremida. Não lembrava o que estava escrito,nem que fim levara, somente que durante um tempo guardou como se fosse uma carta de amor.Na ocasião escreveu também um poema para os próximos alunos que encontrassem a caixa.Era algo que a deixou efusiva por um tempo. Ficava imaginando quem ficaria com seu poema,o que acharia, se guardaria com carinho assim como ela,pelo menos enquanto criança.-Era para ser encontrado.- murmurou mais para si do que para a amiga.-O que?-Eloisa franziu o nariz e inclinou o corpo para frente.-Ja ouviu falar de cápsula do tempo?- No piso?Não seria mais fácil em um cofre na parede ou um baú no armário?Ou pelo menos deixar um bilhete. Não,amiga, isso aí tá mais para nunca ser encontrado.Eu não sei quem foi o maluco que fez isso,pode ter sido até mesmo quem desenhou,mas não acredito que ele fez isso para alguém achar milhões de anos depois .Misaki levantou os ombros,recostou-se na cadeira.-Não penso assim. Olha esses traços, a dinâmica dos personagens, é incrivel. Seja la quem tenha desenhado era perfeccionista e geralmente pessoas assim gostam que vejam o que fazem.Seu pai deve saber quem foi o dono antigo da casa.Vai ver era o autor.-Tudo o que sei é que é uma casa muito velha e o dono atual está virando ela de cabeça pra baixo com reformas.Rugas horizontais atravessaram a testa de Eloísa.- E aí?O que acha de investir?Misaki deu um sorriso instantâneo.-Olha,é um trabalho maravilhoso,de cara dá pra ver que é de uma qualidade ímpar.- ela meneou a cabeça.-Mas nunca trabalhei com quadrinhos.-Eu sei. Disse a mesma coisa ao meu pai quando ele sugeriu mostrar a você,mas-Eloisa apontou para o caderno- Depois que eu li, só conseguia pensar em uma coisa:o mundo precisa disso.Misaki, não acho que isso apareceu a toa. Sei lá, o destino jogou uma bóia.Quem não conhecesse Misaki pensaria que o semblante inexpressivo de boneca de porcelana que as vezes assumia em um silêncio obscuro seria entendido como indiferença ou uma mensagem do tipo:eu não sei o que ou como dizer o que preciso agora.Porém era um instante de reflexão a que ela se entregava para pesar os prós e contras.Significava que não descartava a ideia,apenas precisava ser analisada com calma.E naquele momento, sua mente era como um extenso corredor com inúmeras portas se abrindo ao mesmo tempo mostrando possibilidades.Eloísa deu todo o tempo que ela precisava.Descansou os braços sobre a mesa com os dedos entrelaçados,observou as pessoas ao redor,cada um com seu mundo,suas realidades como se fossem as únicas existentes. Um casal ria a duas mesas a sua direita. O homem,jovem, barba feita, corpo atletico falava com gestos exagerados, a mulher com um corpo um pouco fora de forma mas o rosto de cinema dava gargalhadas deliciada.Um momento feliz.Sera que lembraria dele depois?Cada um sozinho em algum lugar perdidos em pensamentos.Quem sabe até mesmo dentro de uma crise na relação.-Elô -a voz de Misaki veio como um relâmpago quebrando seus devaneios-De repente posso ver com algum amigo que trabalhe com hqs.Mordidas inflamáveis de formigas,inumeras delas rasgando desde o ventre até o pescoço de Eloísa. Ela pegou um garfo e segurou até os dedos doerem,em seguida soltou-o lentamente.Esperava que a amiga não tivesse percebido.Engoliu a reação que estava prestes a explodir e disse pausadamente:-Vamos combinar o seguinte.Você lê e depois me diga se não vale a pena.Vamos ver se essa ideia de entregar para um amigo tem sentido.-Por favor,não quero que pense que não estou interessada.Eloisa colocou o dedo nos lábios de Misaki.-Só me escuta.Leia e conversamos depois.Misaki desceu o olhar para as páginas do caderno.-Nunca pretendi entrar nesse campo.-Isso é outra história.Vamos nos concentrar nessa criança.Pense que pode alavancar a situação da editora.Um garçom com ar entediado pediu licença e estendeu tigelas e travessas de barro sobre a mesa.Um aroma delicioso se espalhou.Misaki umedeceu os labios.- Sem piedade.- disse segurando o prato.-Vai pisar na jaca hoje?- Eloísa cavou uma colher transbordante de bobó.Camarões vermelhos e encorpados cairam no caldo quente.-Preciso.Talvez se arrependesse depois,mas no momento estava faminta.Pouco importava quantas calorias ia acumular com aquela comida. A primeira garfada lhe provocou arrepios como se experimentasse um néctar celestial. Não tinha ideia do que colocavam além do camarão e temperos,apenas que era a coisa mais deliciosa que provara naquele dia.Na segunda garfada,fechou os olhos, girou o talher no ar.-Ei, tá me assustando-Eloisa cutucou o braço da amiga com uma faca sem ponta.Misaki riu.-Por que?-Parece que está tendo um…-Não termine essa frase se tem amor á vida, Eloísa.Só estou desfrutando de um momento único de prazer gastronômico.-Ah, tá,tudo bem. Pensei em outro tipo de prazer.-Não enche.Eloísa comeu um pouco de bobó,bebeu um copo de suco.-Como está seu pai?-perguntou Misaki.Os lábios de Eloísa se curvaram para baixo.-Estamos em paz.-Uau,isso é uma boa notícia.-Melhor para todos.-Voce que levantou a bandeira branca?-Senti que precisava tomar essa atitude.O clichê diz que a vida é curta,então…Eloísa jogou as mãos para o alto.-O que importa é que agora tenho um estresse a menos.Misaki deu duas pancadinhas com a colher no prato.-Fico feliz com isso. Seu pai é um cara legal.-Eu sei.-Agora,essa arte…um trabalho tão magnífico, escondido. Se não fosse a reforma,poderia ficar lá sabe se lá por mais quanto tempo.Talvez nunca fosse achado.-Por isso que a ideia de cápsula do tempo não faz sentido.-Talvez. Mas por que não pegou de volta?Será que não teve a chance?Nesse momento,Misaki percebeu algo no olhar da amiga,uma tensão se esgueirando,procurando uma saída e sendo imediatamente reprimida.-Ei,o que foi?-Perguntou Eloísa,sorrindo.Misaki deixou o caderno de lado.-Tem alguma coisa pra me contar?O canto da boca de Eloísa estremeceu.-Contar?Como assim?-Elô!-Ei,o que deu em você? Não tenho nada pra contar ,ok?-Nada?Eloísa colocou a mão espalmada sobre a mesa.-Posso pedir uma coisa?Misaki encarou a amiga com uma preocupação expressiva.-Lógico.-Pensa com carinho-Eloisa se interrompeu para inspirar-Eu sinto algo grande nisso aí.Misaki enfiou o garfo de comida na boca.Mastigou e confirmou com um movimento positivo de cabeça.-Elô, eu não vou pressionar,mas estou meio cismada.-Cismada?-É, não sei explicar direito,mas tem alguma coisa…As unhas de Eloísa arranharam a toalha de mesa,primeiro um dedo por vez, depois toda a mão.-Por que tanta dúvida,Misaki?O ruído áspero do tecido sendo arranhado se elevou a um nível incômodo,mas Eloísa parecia não se dar conta.Bruscamente,Misaki segurou a mão dela.-Ei,o que deu em você?Eloísa puxou a mão para si,apertou contra o peito.-Desculpa.-Olha,sabe que não precisa de drama pra me contar as coisas,certo?-disse Misaki com suavidade.-Ta tudo bem,Misaki.Melhor a gente comer e deixar de papo.Bobó é bom quente.Naquele instante,Misaki entendeu que Eloísa fechara todas as portas. O que quer que fosse seria mantido em um lugar escuro e inóspito,até ela achar conveniente,se algum dia achasseMeia noite,um Passat pointer preto 1988 estava parado há tempo demais em frente ao condomínio Egeu na zona sul da cidade.Al Green cantava Lets Stay Together em volume suave no rádio como se o tempo não existisse. Um aroma adocicado - rosas,mel e baunilha, inundava a cabine.Mãos se tocavam,deslizavam por pernas,costas, pescoço.Lábios se encontravam, umidos,quentes,famintos espalhavam-se pelo colo,queixo,lóbulos.O calor dos corpos parecia absorver o gelo do ar condicionado,as roupas grudavam-se à pele, goticulas de suor brilhavam nas frontes.Respiração ofegante,gemidos. Uma mão pálida interrompeu tudo com rapidez e delicadeza.-Misaki- suspirou Orlando,o desapontamento no rosto e no tom.Cílios longos e negros rebateram em resposta como asas de borboleta em câmera lenta. À luz do luar,o rosto de Misaki parecia perolizado.-Preciso ir,amor- ela sussurrou.Orlando acariciou a coxa dela.-Sem prorrogação hoje?Misaki correspondeu brincando co
O problema da autoconfiança excessiva é a ilusão da invulnerabilidade. A pessoa relaxa, expõe sua fraqueza sem perceber.Isso era tudo o que Misaki precisava.Embora fosse rapida e mais forte,sua oponente dominara a luta desde o início usando de uma agilidade e equilíbrio que não esperava. Era como tentar lutar com uma sombra. Por muito pouco,pelo menos duas vezes, Misaki esteve perto de ser massacrada.Primeiro foi atingida por chute na lateral do rosto que a deixou zonza, as pernas fraquejaram,o mundo girou,se contorceu e explodiu no branco sintético da lona.De imediato uma pressão imensa esmagou seu peito: oponente estava encima com os joelhos no chão comprimindo o corpo e prestes a enterrar uma sequência de socos em seu rosto,mas rapidamente Misaki se esquivou para cima,liberou o tronco, bloqueou com o pé esquerdo o pé direito da oponente,em seguida com a mão impediu que Maria se apoiasse no braço,levantou os quadris com o apoio do pé direito,girou e empurrou a outra pe
-Amiga,você tá com uma cara- disse Eloísa enquanto colocava açúcar no café.Misaki piscou os olhos e os arregalou em seguida. Sua cabeça parecia estar rachada e cada osso do corpo triturado. -Tão mal assim?-Perguntou enquanto revirava a bolsa.-Cara de acabada.Misaki puxou um espelhinho e girou em todos os ângulos do rosto. Manchas arroxeadas se emplastravam sob os olhos inchados e vermelhos, o batom claro que escolhera a deixou com a palidez de um zumbi.-Que horror!- lamentou-É, a festa foi boa.-Que festa o que, Elô!Eloísa riu baixo.-Ei, brigou com o Orlando?Ele tá livre agora?Misaki arremessou uma bolinha de papel.-Não,sua tonta,nada a ver.-Vai ter que me convencer disso.- Já basta o estresse que tive com a Maria,não enche.- Aí,aí, a eterna novela. Não percebe que vocês duas não podem estar no mesmo lugar ao mesmo tempo?Lei da física, querida.-ELA não deveria ocupar o meu espaço seria o mais correto. Qualquer dia vamos
O silêncio não o incomodava, podia ficar horas em um ambiente sem ruídos. Tanto em uma biblioteca como em um canto perdido no mato.Passaria tranquilamente o dia sem neuroses. O problema era o silêncio das pessoas quando esperava uma resposta.Desde o primeiro momento em que pediram para esperar, as pernas não pararam de balançar, as mãos não se aquietaram, ora pegando uma revista, ora acariciando a cabeça raspada. Todo esse tempo só para dizer um sim ou não?Quando Anderson disse que a vaga para o food truck no Festival de Música da cidade era certa ,achou que chegaria lá, assinaria uns papéis em dois minutos, não esperar metade do dia.O sistema está lento hoje, foi a desculpa da recepcionista, nem um pouco convincente ou solidária. Seria normal se tivesse um aviso na parede informando que o sistema estava lento, porque todos os dias deveria ser
Algumas pessoas vivem em função de estilos desejando ter e ser sempre o diferencial,seja para chamar a atenção ou por acharem sem graça o padrão.Misaki não sabia dizer em qual das duas categorias André Salas se encaixava.S eu escritório oscilava entre o bom gosto e o extravagante. Ela adorava a mesa de trabalho com tampo de madeira bruta, mas a estatua da mulher maravilha em tamanho real entalhada em madeira era cafona.Quando Salas soube que ela estava na empresa, abandonou repentinamente uma reunião sobre o lançamento de um herói com poderes psiquicos ativados por refrigerante.-Hoje é meu dia de sorte!- disse com os braços abertos ao ver Misaki.-Pode ter certeza disso- ela respondeu notando o blazer branco sobre uma camisa vermelha,o jeans com rasgos e tênis All Star Azuis.-Hum, vejo que sua visita tem algo promissor- ele sorriu.-Muito perspicaz de sua parte.-Ja ofereceram alguma coisa pra você,amor?-Não,nem precisa.-Amor, o pes
Podia ouvi-la cada vez mais perto,mas não tinha ideia de onde. Uma voz ecoava. Uma canção excruciante violentando seu íntimo com medos e aflições. Os pés queimavam, as pernas endureciam como cimento, o coração ricocheteava no peito. Não dava mais. Um gosto azedo,causticante na garganta. Desistir, desistir. Mas a canção maldita, sentia como um hálito do inferno em sua nuca alimentando o desespero. Atravessou um riacho de água negras e lodosas. Por um instante pensou ter visto dedos emergirem e afundarem. Os pelos do corpo encresparam, um gelo transpassou seu estômago. Eloísa, Eloísa para onde você vai? Ela abafou um grito. A voz parecia ter vindo de dentro de sua cabeça.Precisava escapar,mas sabia que não adiantaria,por mais que seus instintos a impulsionassem a lutar com tudo de si. Não significava que facilitaria as coisas.Árvores de folhas cinzentas se curvavam como bruxas em farrapos. A lua tinha a tonalidade arroxeada com nítidas fendas
-Tá, legal, coroa. Por que estamos aqui?-perguntou Paola assim que entraram na casa.Luther ficou em silêncio. Andou pela sala, as mãos para trás. Soprou a poeira de uma janela, tocou nas paredes.Eram duas da madrugada e entraram sem problemas na casa que Abílio estava reformando.-Estão mudando tudo- disse.Paola girou os olhos.-Que coisa heim! Você veio aqui pra conferir se estão trabalhando direito? Essa casa é sua?Eu so topei esse trampo porque você garantiu que não seria nada esquisito. E isso tá esquisito.Luther suspirou.-Talvez eu tenha errado nessa parte do esquisito, minha jovem. A tendência é piorar. Pode aguardar um pouco aqui?Paola levantou os ombros.-Eu deveria ganhar mais por isso.-Não seja gananciosa.Já não restava muito da antiga casa. O piso foi todo removido. A parede da cozin
Passos acelerados.Saltos.Estalos no concreto. Misaki cortou a rua até sua Kawasaki 600 cilindradas. Celular no ouvido esperando Eloísa atender. As mãos suavam frio, uma leve dormência nos braços.-Elô, preciso pra ontem saber onde encontraram o original- tom àspero na voz, uma densidade que pesou nos ouvidos da amiga.- Xiii, bom dia pra você também- retrucou Eloísa.-Vou agora no lugar.-O que?A casa está em obras, acho difícil que encontre alguma coisa.
Último capítulo