-Amiga,você tá com uma cara- disse Eloísa enquanto colocava açúcar no café.
Misaki piscou os olhos e os arregalou em seguida. Sua cabeça parecia estar rachada e cada osso do corpo triturado.-Tão mal assim?-Perguntou enquanto revirava a bolsa.
-Cara de acabada.Misaki puxou um espelhinho e girou em todos os ângulos do rosto. Manchas arroxeadas se emplastravam sob os olhos inchados e vermelhos, o batom claro que escolhera a deixou com a palidez de um zumbi.-Que horror!- lamentou-É, a festa foi boa.-Que festa o que, Elô!Eloísa riu baixo.-Ei, brigou com o Orlando?Ele tá livre agora?Misaki arremessou uma bolinha de papel.-Não,sua tonta,nada a ver.-Vai ter que me convencer disso.- Já basta o estresse que tive com a Maria,não enche.- Aí,aí, a eterna novela. Não percebe que vocês duas não podem estar no mesmo lugar ao mesmo tempo?Lei da física, querida.-ELA não deveria ocupar o meu espaço seria o mais correto. Qualquer dia vamosO silêncio não o incomodava, podia ficar horas em um ambiente sem ruídos. Tanto em uma biblioteca como em um canto perdido no mato.Passaria tranquilamente o dia sem neuroses. O problema era o silêncio das pessoas quando esperava uma resposta.Desde o primeiro momento em que pediram para esperar, as pernas não pararam de balançar, as mãos não se aquietaram, ora pegando uma revista, ora acariciando a cabeça raspada. Todo esse tempo só para dizer um sim ou não?Quando Anderson disse que a vaga para o food truck no Festival de Música da cidade era certa ,achou que chegaria lá, assinaria uns papéis em dois minutos, não esperar metade do dia.O sistema está lento hoje, foi a desculpa da recepcionista, nem um pouco convincente ou solidária. Seria normal se tivesse um aviso na parede informando que o sistema estava lento, porque todos os dias deveria ser
Algumas pessoas vivem em função de estilos desejando ter e ser sempre o diferencial,seja para chamar a atenção ou por acharem sem graça o padrão.Misaki não sabia dizer em qual das duas categorias André Salas se encaixava.S eu escritório oscilava entre o bom gosto e o extravagante. Ela adorava a mesa de trabalho com tampo de madeira bruta, mas a estatua da mulher maravilha em tamanho real entalhada em madeira era cafona.Quando Salas soube que ela estava na empresa, abandonou repentinamente uma reunião sobre o lançamento de um herói com poderes psiquicos ativados por refrigerante.-Hoje é meu dia de sorte!- disse com os braços abertos ao ver Misaki.-Pode ter certeza disso- ela respondeu notando o blazer branco sobre uma camisa vermelha,o jeans com rasgos e tênis All Star Azuis.-Hum, vejo que sua visita tem algo promissor- ele sorriu.-Muito perspicaz de sua parte.-Ja ofereceram alguma coisa pra você,amor?-Não,nem precisa.-Amor, o pes
Podia ouvi-la cada vez mais perto,mas não tinha ideia de onde. Uma voz ecoava. Uma canção excruciante violentando seu íntimo com medos e aflições. Os pés queimavam, as pernas endureciam como cimento, o coração ricocheteava no peito. Não dava mais. Um gosto azedo,causticante na garganta. Desistir, desistir. Mas a canção maldita, sentia como um hálito do inferno em sua nuca alimentando o desespero. Atravessou um riacho de água negras e lodosas. Por um instante pensou ter visto dedos emergirem e afundarem. Os pelos do corpo encresparam, um gelo transpassou seu estômago. Eloísa, Eloísa para onde você vai? Ela abafou um grito. A voz parecia ter vindo de dentro de sua cabeça.Precisava escapar,mas sabia que não adiantaria,por mais que seus instintos a impulsionassem a lutar com tudo de si. Não significava que facilitaria as coisas.Árvores de folhas cinzentas se curvavam como bruxas em farrapos. A lua tinha a tonalidade arroxeada com nítidas fendas
-Tá, legal, coroa. Por que estamos aqui?-perguntou Paola assim que entraram na casa.Luther ficou em silêncio. Andou pela sala, as mãos para trás. Soprou a poeira de uma janela, tocou nas paredes.Eram duas da madrugada e entraram sem problemas na casa que Abílio estava reformando.-Estão mudando tudo- disse.Paola girou os olhos.-Que coisa heim! Você veio aqui pra conferir se estão trabalhando direito? Essa casa é sua?Eu so topei esse trampo porque você garantiu que não seria nada esquisito. E isso tá esquisito.Luther suspirou.-Talvez eu tenha errado nessa parte do esquisito, minha jovem. A tendência é piorar. Pode aguardar um pouco aqui?Paola levantou os ombros.-Eu deveria ganhar mais por isso.-Não seja gananciosa.Já não restava muito da antiga casa. O piso foi todo removido. A parede da cozin
Passos acelerados.Saltos.Estalos no concreto. Misaki cortou a rua até sua Kawasaki 600 cilindradas. Celular no ouvido esperando Eloísa atender. As mãos suavam frio, uma leve dormência nos braços.-Elô, preciso pra ontem saber onde encontraram o original- tom àspero na voz, uma densidade que pesou nos ouvidos da amiga.- Xiii, bom dia pra você também- retrucou Eloísa.-Vou agora no lugar.-O que?A casa está em obras, acho difícil que encontre alguma coisa.
-Sério, isso não tá acontecendo-disse Eloísa assim que parou o seu fusca rosa na frente do prédio. As vezes o GPS se engana. Já aconteceu mais de uma vez. Não era para ser assim porque desde que os mapas de ruas foram dispensados, a humanidade passou a depositar a confiança nessa maravilha tecnológica. Eloisa não chegou a depender de mapas, mas lembrava de viagens com seus pais. A mãe com aquele papel do tamanho de um outdoor no colo conferindo a rota como uma co-piloto.Nunca erraram o caminho. Pelo menos era o que lembrava.Essa lembrança atestou a consciência de que a vida analógica era um mundo distante, porém mais interessante. As pessoas precisavam usar mais a cabeça.Falava -se muito de transferência de mente para os computadores como realidade de algum futuro não muito dis
Estamos agora na Rodovia Laura Alvim onde um ônibus da linha 237 acaba de ser sequestrado.Pelo que fomos informados até agora, cerca de trinta passageiros estão sob o poder de três indivíduos armados com fuzis e pistolas. A polícia acompanha o veículo, mas até o momento não foi estabelecido nenhum contato... O repórter se cala com um giro no botão do rádio. A campainha toca insistente do lado de fora. O homem em seu apartamento levanta da cadeira, pega meio cigarro do cinzeiro. Ia parar de fumar um dia. Conseguiu resistir por dois meses até começar o trabalho. Agora também já não importava. Abre a porta sem pressa. Depois das onze da noite ninguém precisa se afobar. A pessoa à sua frente usa o figurino noir - capote marrom,chapéu preto com abas, sapatos opacos.Não se trata de um estilo e sim uma resposta à chuva infernal. Silvio Alieri não lembrava se em algum momento de sua vida gostou de chuva. Ele cumprimenta o homem e entr
O copo estava pela metade quando o chamaram.entendeu como um alerta do destino, conspiração do universo ou qualquer outra denominação mistica para evitar mais um gole daquele café. Não estava ruim e sim algo além do intragável. Quem quer que tenha preparado não poderia se iludir com a ideia de viver daquilo ou morreria de fome. Derramou o copo na pia da cozinha, foi até a sala de estar. Metade das tábuas do chão tinha sido retiradas,as paredes totalmente lixadas,sacos de cimento e argamassa,pisos de porcelanato se empilhavam pelos cantos. Dentro de alguns dias aquele mausoléu seria transformado em um ambiente pós moderno rabiscado por um garoto de barba estilizada e canudo com cheiro de recém formado que nunca sujou as mãos com rejunte. Tudo muito lindo e caro,muito caro.Bom, não era problema dele,estava sendo pago para seguir o projeto,nada mais.-Patrão, achamos isso aqui escondido no chão.- disse Francisco, um dos pedreiros.-Escondido?Onde?-Num quarto, debaix