Imagens difusas

Ally Cannon POV's

-Lapso de memória? - perguntei, mais uma vez, tendo certeza de que estava absorvendo todos os fatos. - Certo. 

Afundei mais ainda na minha cadeira, encarando meus próprios braços recebendo o líquido da Imunoterapia. Em questão de pouco tempo, eu estava perdendo, literalmente, partes de mim. Eu tinha alterações de personalidade, déficits de memória e toda a sorte de coisas ruins que o câncer instalado no meu cérebro estava me dando. 

-Mas, com o tratamento, podemos ter uma esperança, certo? - perguntei, sentindo a pena que o Dr. Garrett tinha em seu olhar me atingir até a alma. - Digo, logo eu devo estar pronta pra cirurgia, né? 

Dr. Garrett ergueu as sobrancelhas, com um sorriso.

-Nós acabamos de começar, Ally. Seu tempo comigo ainda vai ser longo. 

Assenti, sentindo um sorrisinho despontar em meus lábios. Estar com Dr. Garrett era a parte fácil do meu dia. Tudo era fácil com ele. Até câncer. Suas mãos pegaram as minhas, distraidamente. 

-Temos bastante fé no seu tratamento, Ally. - ele disse, acariciando minhas mãos entre as dele. Seus olhos estavam tão aconchegantes quanto uma lareira. - Eu tenho certeza que você vai conseguir ir para a cirurgia e ter um prognóstico bom. 

Prognóstico. Minha vida cabia em uma única palavra. Ou pelo menos, o resto de vida que ainda soprava fracamente em meu corpo. Soltei minhas mãos do aperto do Dr. Garrett e comecei a acariciar meus próprios cabelos - algo que eu aprendera com Jason. Se ninguém me sobrara, eu teria a mim mesma e faria carinho em mim quando necessário - eu era a única pessoa que eu precisava. 

-Eu espero que sim. - murmurei, coçando meu braço. Ele assentiu, com um sorriso e levantou-se. 

-Está na hora do nosso bolinho, acredito? - ele perguntou, sorridente. - Aí você pode me contar mais detalhes do seu romance ardente com Jason Smith. 

Dei uma risada de sua careta. Ele ainda não tinha visto Jason pessoalmente, mas dera saltinhos de empolgação quando descobrira que eu era a "felizarda" namorada do bad boy mais cobiçado de Londres. Eu lembro de ouvir ele se gabando na área comum do hospital com os outros funcionários, enquanto eles se espremiam na janela do meu quarto para me encarar. 

Um até tinha me pedido uma selfie. 

Eu não estava exatamente acompanhando a quantidade de pessoas que me seguiam nas redes sociais. Sentia que, se o fizesse, teria um ataque de ansiedade ou algo do tipo. Só o fato da minha mãe ter surtado falando sobre milhões de seguidores já era o suficiente para fazer com que eu me coçasse ainda mais para não retornar à esse mundo. 

Mas eu tinha curiosidade para saber o que as pessoas pensavam de mim.

Sentia vontade de procurar em cada cantinho. 

Mais ainda, sentia vontade de procurar comentários ruins. Sentia vontade de me sabotar. Queria provar que os comentários maldosos que Jason fazia a respeito da minha aparência eram verdade....

Jason. 

Jason estava lá embaixo, trancado no próprio carro, esperando minha sessão de Imunoterapia terminar. Jason agredira o Dr. Garrett por ele simplesmente encostar em mim, em um pequeno lapso de memória onde eu não o reconhecera. 

Jason quis me proteger. 

Talvez, em alguma parte muito funda de sua terrível personalidade e rebeldia, Jason soubesse que eu não o enganara. Eu queria acreditar nisso. Eu queria acreditar que existia a possibilidade de estar com Jason procurando mais uma chuva de estrelas cadentes em qualquer canto do mundo - e eu o levaria comigo para assistir. 

Com ele, eu sempre compartilharia. 

Respirei fundo, repassando mentalmente as palavras cruéis que ele me dissera. Respirei fundo, tentando esquecer do seu sorrisinho de canto ou do quanto ele me fizera rir ao reclamar que não conseguia ser bom. 

Respirei fundo porque meu câncer me fazia esquecer coisas óbvias. Mas não me fazia esquecer de tudo aquilo que eu mais queria. 

Dr. Garrett voltou para a sala carregando nosso tradicional bolinho de baunilha e duas xícaras de chá. Era nosso momento sagrado da fofoca - ali, eu me divertia até esquecer que estava tratando um câncer. Dr. Garrett era como um amigo. 

Sorri ao bebericar o primeiro gole de chá e começar a falar mal de todo mundo. 

Incluindo muito Jason. 

[...]

Quando a Imunoterapia e minha sessão de fofocas terminou, já era noite. 

Saí correndo para fora do hospital, sentindo o vento frio de Londres jogar meus cabelos para todos os lados. Encarei o local onde o carro de Jason estava há algumas horas atrás. 

Ele não estava mais ali.

Ele tinha ido embora. 

Suspirei profundamente, rindo da minha própria infantilidade. Claro que Jason Smith estava só brincando. Claro que ele não se importava. Claro que ele dissera aquilo no fogo do momento e se arrependera. Claro.

Abracei meus próprios braços, tentando me proteger do frio e jogar os cabelos para fora do rosto. Pensei em entrar no hospital mais uma vez e pedir um táxi lá de dentro. 

-Vai voltar pro seu namoradinho médico, Allisson? - ouvi uma voz rouca e grave perguntar às minhas costas. 

Não pude evitar de deixar um sorriso gigantesco escapar de meus lábios. Virei-me para Jason, tentando fingir que estava debochando dele - talvez, fosse uma tentativa falha. 

-Olá, Jason. - disse, divertida, encarando sua figura na escuridão.

Jason estava parado, praticamente escondido no vão escuro da entrada do hospital, encostado na parede. Ele bagunçava seus cabelos castanhos, demonstrando sua ansiedade. Seus braços também estavam cruzados, na altura do peito. Imaginei que sentia frio também. 

-Onde está seu carro? - perguntei, encarando seu rosto pálido. - Por que não ficou nele?

Jason deu de ombros. Ele começou a andar em minha direção. Eu não percebi o quanto tremia até o segundo em que ele parou a menos de um passo de mim e ficou me encarando.

-Você está com frio? - ele perguntou, ignorando a pergunta que eu fizera antes. 

Encarei os olhinhos verdes e brilhantes de Jason. 

-Não. - menti, parando de abraçar meu próprio corpo. - Estou ótima. 

Jason revirou os olhos e tirou uma touca rosa da Hello Kitty de dentro de seu sobretudo, enfiando-a de qualquer jeito na minha cabeça, bagunçando todos os meus cabelos.

Olhei-o, surpresa.

-Seu namoradinho me disse que você gosta da Hello Kitty. - ele murmurou, virando-se e remexendo nos bolsos da calça, sem olhar pra mim. - Eu fui numa dessas lojas com máquinas para pegar bichinhos, sabe? Eu queria um pinguim, mas veio esse gorro ridículo e...Bom, só conheço uma pessoa ridícula o suficiente para usar. 

Senti minha boca continuar boquiaberta de surpresa. Jason conversara com Dr. Garrett? Jason estava com ciúmes? Ele se dera ao trabalho de arranjar uma touca da Hello Kitty para mim? Será que ele sabia sobre meu câncer? E por isso estava sendo bonzinho? A curiosidade sobre a natureza da conversa dele com meu médico estava me deixando ansiosa. 

-Obrigada. - foi a única coisa que consegui dizer, enquanto Jason assentia sem sequer olhar para mim. 

Jason simplesmente saiu andando e apontou para frente, ainda sem olhar para mim.

-O carro está lá. Eu não quis atrapalhar as... - ele pareceu pensar por um segundo - ambulâncias. 

-Ambulâncias? - perguntei, erguendo uma sobrancelha.

-Sim. - Jason rosnou, sentindo o deboche em minha voz. Foi a primeira vez que ele se virou para me encarar - Por que mais seria?

Dei um sorriso travesso para ele.

-Talvez você estivesse esperando escondido para ver se eu ia sair com o Dr. Garrett ou algo do tipo...

Jason soltou uma gargalhada forçada, me encarando com os olhos verdes surpreeendentemente frios.

-Ah, tá bom, Allisson. Nos seus sonhos, provavelmente. - ele disse, ainda forçando mais uma risada. - Eu só não consegui estacionar aqui assim que saí e tive que estacionar mais pra lá e...Quer saber? Eu não preciso explicar nada pra você. 

Dei um sorriso ainda maior vendo o rosto pálido de Jason assumir uma tonalidade vermelha, como se ele estivesse enrusbecendo. Senti meu coração palpitar, com a possibilidade de tudo aquilo ser verdade. 

Jason continuou andando, sem sequer se virar para checar se eu o estava seguindo nenhuma vez. Fomos até a esquina, onde o carro estava. Ele entrou primeiro e eu abri a porta do passageiro, sentindo meu coração em extâse. 

-Licença. - murmurei, tirando o sobretudo de Jason que estava no banco do passageiro. Mas era um sobretudo muito pequeno para ser de Jason. E Jason estava usando o próprio sobretudo. Por que diabos ele traria dois? Aproximei o sobretudo de meu nariz e senti um cheiro doce de perfume.

Perfume de mulher.

-O que é isso? - gritei, atirando o sobretudo nele, que me olhou surpreso. 

Não era possível que Jason não notara um sobretudo esquecido no banco do passageiro ao seu lado. Ele fizera de propósito. Ele queria me fazer sofrer. Ele queria me atingir. Senti a fúria tomar conta do meu corpo uma vez mais.

-Jason! - falei, furiosa, sentindo as lágrimas começarem a brotar dos meus olhos perdidos. - Eu não acredito nisso. 

Jason parecia sem palavras. Ele ficou bastante tempo encarando meu rosto, como se procurasse algo. Parecia que meus olhos úmidos eram uma vitória pessoal para ele. 

-O que foi? - ele perguntou, finalmente recuperando o fôlego e o deboche. Ele ligou o carro, ignorando meus protestos e arrancou na rua. - Você pode me trair a vontade com seu doutorzinho e eu não posso ter uma amante? 

Senti as lágrimas começarem a cair dos meus olhos sentindo um turbilhão de sentimentos confusos. Jason estava com ciúmes do Dr. Garrett e decidira trair nosso relacionamento falso? Nem eu mesma conseguia entender o que estava acontecendo. Senti minhas mãos começarem a tremer de raiva. Ele estava assumindo que eu era uma vagabunda e ainda pedia para que me levasse para os meus amantes. 

Ele estava assumindo que eu era uma suja da pior espécie.

Antes que eu pudesse me segurar, senti minha mão correr em direção ao rosto de Jason e dar-lhe uma bofetada.

O carro deslizou na pista, fazendo com que eu fosse jogada para frente e batesse minha cabeça no painel, enquanto Jason segurava o volante com toda a força do mundo, manobrando para que não batessemos em um poste, estacionando o carro com segurança na rua seguinte.

-Você está DOIDA? - Jason gritou, virando-se para mim. O lado do seu rosto que eu atingira estava numa feia tonalidade vermelha e parecia ardido. - Você viu o que você fez?

Virei-me para ele e comecei a gritar. 

-Você estava dizendo que eu sou uma puta. Que eu ia transar com o Dr. Garrett. Você está agindo como se eu fosse qualquer uma e eu já te jurei que eu NÃO SOU. - gritei de volta, sentindo cada centímetro do meu rosto gritar por socorro e uma dor gigantesca na cabeça, onde eu batera. 

Jason me olhou arregalado, fingindo surpresa e soltando uma gargalhada. 

-Ally, se eu acreditasse em alguma coisa que você me fala....Não sou mais o Jason que você engana e manipula como quiser. Não sou idiota. 

-Você pode parar, por favor? - gritei, sentindo o descontrole surgir mais uma vez. - Para com essa postura defensiva o tempo todo. Eu te contei toda a verdade.

Jason riu mais alto.

-Ah, é. A verdade. Acordo milionário. Jason otário. Eu lembro dessa verdade, Ally Cannon. Lembro muito bem. 

Senti as lágrimas tomarem conta de mim e afundei meu rosto nas mãos, mais uma vez. Eu não suportava encará-lo. Eu tentava ser tão cruel com ele quanto ele era comigo. Mas quando ele estava tão próximo, quando eu sentia que ele também estava sofrendo e gritando por socorro, eu não conseguia. 

Eu não conseguia odiar seus olhos verdes, tão apaixonados. 

Eu não conseguia odiar que ele sentisse ciúmes de mim, que ele se preocupasse comigo. Eu não conseguia odiar.

Eu sentia vontade de gritar. O tempo todo. Era como se eu fosse uma bomba relógio, prestes a explodir em um milhão de pedaços. Jason suspirou, me encarando com o rosto escondido. 

-Nenhuma surpresa. A vítima de novo. - ele resmungou, começando a ligar o carro mais uma vez. - Você sempre é a vítima, não é mesmo? 

Ergui meu rosto inchado e dolorido para ele. A dor na cabeça começando a ficar mais aguda e ardida, como se a pele estivesse rompida. 

-Chega, Jason. Me leve pra casa, por favor. 

-Com prazer. - Jason rosnou, acelerando o carro sem sequer virar-se pra mim. 

Comecei a fungar em meu canto, sentindo os soluços escapando mais alto do que eu pretendia. Jason balançava a cabeça no volante, alucinado, como se também quisesse chorar igual à mim. Como era possível dois corações partidos tão próximos, mas tão distantes?

Nossos corações podiam se curar, juntos. 

Mas Jason não me deixava alcançá-lo. E eu também, talvez, não o deixasse me acalnçar. Era uma batalha de egos. Uma batalha pra ver qual coração era mais forte. 

Soltei um soluço particularmente alto e senti minha cabeça úmida. Comecei a me acariciar para me consolar, quando senti um líquido quente em meus cabelos. Olhei para minhas mãos, repletas de sangue. Eu tinha cortado minha cabeça quando a bati no painel. 

-J-j-jason. - gaguejei, encarando minhas mãos vermelhas. - Eu acho que eu....eu....

Jason virou seus olhos frios para mim, mas eles derreteram no mesmo instante ao ver minhas mãos cheias de sangue.

-O que você fez? - Jason perguntou, parando o carro com tudo na rua, sobre o protesto de diversos carros atrás de nós. - Ally, o que foi isso?

Não consegui responder. Comecei a sentir meu corpo amolecer diante do cheiro de ferrugem que eu detestava. As imagens começaram a ficar difusas. Eu ouvia Jason gritando com vários motoristas atrás de nós e acelerando com o carro sob o protesto das rodas. Mais ainda, eu sentia sua mão quente, segurando minha nuca.

Antes dos meus olhos se fecharem, eu encarei seus lábios vermelhos.

-Não durma. - ele pediu. 

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