Demorou para que ela adormecesse novamente. Ele ficou ao seu lado até o momento chegar, sempre paciente e zeloso. Já era noite quando aconteceu. Então Jean decidiu deixar o quarto e ligar para Erick, médico de Andressa e amigo de ambos. O rapaz não conseguiria dormir bem naquela noite. Tudo havia dado tão errado. Ele poderia afirmar que ficou mais aterrorizado pelo desespero da mulher do que pelo corpo encontrado no bosque. Aquela que dormia era sempre sua maior preocupação.
A cada atitude estranha dela, ele se perdia entre sentimentos e decisões. Os três últimos meses foram um inferno, ele lutou para ser forte por dois. Além da cegueira, que Erick deu grandes esperanças de que seria temporária, foi constatado que Andressa sofria de amnésia. Ela não era capaz de se lembrar de horas antes do acidente, além de ter apagado certos eventos mais longínquos de suas lembranças. Recuperar essas lembranças também era uma incógnita e Jean torcia para que ao menos algumas delas permanecessem para sempre perdidas.
Andressa passou a ser acompanhada por um psicólogo, pois no início não aceitou bem viver na escuridão. E quem aceitaria? O profissional alertou a todos seus amigos que ela poderia sofrer com um comportamento incomum. Mudanças bruscas mexem com seu psicológico de maneiras diferentes. Jean estava certo de que isso que acontecia. Tudo era consequência do grave traumatismo sofrido no acidente, o rapaz apenas não sabia lidar com aqueles momentos tão desesperadores. E eles voltaram a acontecer logo no primeiro dia após a chegada à cabana. Talvez ele também precisasse de um psicólogo.
Do lado de fora da casa, tendo mais privacidade e não correndo o risco de ser ouvido caso ela acordasse, Jean fez o telefonema. A noite seguia e o jovem rapaz conversava com o médico:
ᅳ Sim, Erick! Hoje ela reclamou de frio e teve alucinações, ou seja lá do que posso chamar. O comportamento dela segue muito diferente, pensei que fazendo suas vontades ela ficaria mais tranquila, mas não está acontecendo… ᅳ Ele tirou alguns segundos para soltar um suspiro cansado. Sentia os ombros pesarem pelo estresse. Continuou: ᅳ Não sei, no começo ela se animou muito, mas passou certo tempo e começou a agir estranho. Até o surto acontecer. Você vem amanhã?
Do outro lado da linha, Erick, um jovem e competente médico, ouvia com atenção seu amigo aflito. Guardava alguns papéis largados sobre a mesa de seu consultório. Estava pronto para deixar a sala. Seu expediente havia acabado e ele estava ansioso para poder chegar em casa e descansar. Foram três plantões seguidos em um hospital público. Tudo estava uma verdadeira loucura por causa do fim de semana. Erick só queria dormir. Agora teria certo tempo para respirar e descansar, ou achou que teria...
ᅳ Passarei por aí amanhã. Já pensava em fazer isso. Tenho em mãos todos os resultados dos últimos exames. Pelo que pude ver, Andressa teve uma considerável melhora. ᅳ O residente em neurologia pegou os resultados e deu uma olhada no eletroencefalograma. Estava confiante. Os exames haviam sido feitos há três dias e a área do cérebro afetada pelo acidente seguia em uma recuperação invejável.
Sentindo-se tranquilizado, Jean deixou escapar um suspiro ao ouvir a palavra "melhora". Depois de um dia pesado, aquela era uma das melhores coisas que poderia ouvir. Sem perceber, pôs-se a caminhar sem um destino definido. Seus olhos voltaram-se para o bosque atrás da casa. Naquele horário, praticamente sem iluminação, coberto pela penumbra noturna, o bosque tomava formas assustadoras, ocultando toda a beleza que poderia ser admirada sob a luz do sol. Sentindo-se incomodado, o jovem rapaz desviou os olhos por alguns instantes enquanto se despedia.
ᅳ Vou desligar, Erick. Agradeço por tudo, irmão. Até amanhã. ᅳ E sem esperar uma resposta, ele finalizou a ligação. Mais uma vez voltou seus olhos para aquele conjunto de árvores obscuras que estava a alguns metros de distância. Ao mesmo tempo em que o local lhe provocava arrepios, exercia sobre ele certo fascínio. Talvez pela curiosidade, o desconhecido podia se mostrar muito tentador para qualquer um. Mistérios sempre chamam atenção, ainda que sinistros e inexplicáveis.
A muitos quilômetros de distância daquele bosque, ainda em seu consultório, Erick guardava os exames de Andressa em uma pasta. Abriu uma das gavetas e encontrou um porta retrato com a foto de ambos. Havia sido tirada há uns quatro anos atrás, quando a moça acabara de completar 20 anos e sequer imaginava que meses adiante iria conquistar de vez um dos melhores partidos da cidade. Naquela época, com seus cabelos vinho e vestindo muitas rendas negras, Andressa somente se dedicava aos seus cursos de escrita. Sua maior preocupação era vencer os melhores concursos e escrever seus melhores contos. Apoiava seu melhor amigo, o "mente brilhante" que cursava o último ano na faculdade de medicina. Erick tentava convencê-la a ingressar em uma faculdade também, talvez cinema ou letraa. Ela era uma das pessoas mais inteligentes que ele conhecia. Mas Andressa era um poço de dúvidas, alguém que ainda preferia seguir seus planos sem uma nova responsabilidade.
Erick segurou firme o porta retrato e ficou a admirá-lo por mais longos segundos. No início não demonstrou nenhuma expressão em especial, mas bastou pouco tempo para que seu sorriso se dividisse em um misto de tristeza e um sentimento que ele ainda tentava decifrar após tantos contratempos. Ainda a amava como antes? Porque ela certamente havia mudado muito. Tentando afastar os pensamentos confusos, ele largou o porta-retrato de qualquer maneira na gaveta e a fechou com rispidez. Em seguida ligou para o psicólogo de Andressa. Precisava conversar sobre os pesadelos da amiga, precisava tirar de sua mente que poderia ter dado um péssimo conselho a Jean.
De frente ao bosque, agora muito mais perto da entrada para o sinistro, Jean conversava de maneira suspeita com um outro amigo. Mantinha seu tom baixo, mas o cuidado se perdeu após ele receber uma resposta.
ᅳ Onde? ᅳ Esteve a ponto de gritar. Esbugalhara os olhos. Incrédulo, murmurou em seguida:
ᅳ Não acredito… ᅳ Os olhos se fixaram no bosque mais uma vez.
Era começo de madrugada e se podia ouvir no coração do bosque o inconfundível som de terra sendo remexida na base da enxada. O responsável pelo trabalho era Jean, que tratava de tapar o buraco que Jindo fizera mais cedo. O rapaz já estava cansado e suado, apesar da noite não estar quente quanto a manhã. Jean tirou sua camisa e continuou a cuidar daquele buraco, mostrando-se ansioso e desesperado para finalizar o que fazia. Já estava exausto, mas não era só por isso que desejava o fim daquilo tudo.Mais meia hora se passou e ele finalmente se viu livre do trabalho. Analisou o espaço, a área parecia de acordo com todo o resto do solo. Ninguém desconfiaria o que repousava por debaixo daquelas inúmeras camadas de terra. Jean respirou aliviado e enxugou várias gotas de suor que caiam pela sua testa. Ajeitou seus cabelos curtos, também empapados pelo suor. Ele olhou para o lugar pela última vez naquela noite. Estava como ele desejava: livre de qualquer suspeita.
Era quatro da manhã quando Andressa passou a se mexer de maneira inquieta na cama. Indícios de um terrível pesadelo que se iniciava. No estranho sonho ela estava no interior de um bosque fechado e escuro, contudo, apesar desses detalhes, enxergava com clareza o que tinha a sua volta. Sabia que se tratava do bosque ao fundo de sua cabana. E… Ainda que ela pudesse enxergar com perfeição, seus olhos estavam completamente brancos. Tudo estaria normal se fosse apenas isso, porém, pouco tempo depois ela percebeu que estava paralisada no centro do bosque.Nos primeiros minutos ainda mostrava certa calmaria. Tentou mover um pé e olhou para baixo. Vestia uma camisola branca e seus pés estavam descalços. Forçou-se mais uma vez a dar um passo, precisava sair dali. P corpo balançou e a perna não se moveu. O nervosismo começava, a energia do lugar não ajudava, passava a ficar tensa demais, a inconodando quase ao ponto de sufocá-la. Tudo piorou quando um odor insuportável invadiu suas narin
Andressa acordou de súbito. Aflita, dolorida e, como sempre, refém da escuridão. Essa era a pior parte após qualquer pesadelo ou sonho. Nunca a luz aparecia. Ela estava ofegante, com o coração apertado, parecia carregar um peso que comprimia seu peito. Um peso causado pelo medo do não natural e ainda desconhecido. A morena se forçou a respirar fundo várias vezes. Precisava diminuir aquela aflição, recuperar qualquer resquício de tranquilidade. Mas a imagem do pesadelo estava tatuada na sua memória. Vívida, clara. Suas sensações eram intensas, reais, profundamente reais. Mais reais do que quaisquer outras.Andressa, agora sentada sobre a cama, lutando contra seu medo, tentava se convencer de que aquele pesadelo fora apenas mais um, foram tantos para assombrá-la nos últimos meses. Ela mesma se boicotava. Precisava parar. No escuro, decidiu
dO trio de amigos estava reunido na pequena sala, sentados de frente ao lado de uma lareira apagada. Erick tinha em mãos os exames. Jean e Andressa estavam sentados lado a lado em um sofá encardido de dois lugares. Ela segurava forte a mão do marido, temia as notícias, não podia enxergar a expressão confiante do amigo. O médico, sentado em uma poltrona, de frente ao casal, organizava alguns envelopes. Ali estavam todos os resultados dos exames. Após abrir um envelope, ele pôs o papel sobre a mesinha de centro e começou a falar, levantando seus olhos na direção da amiga que mantinha seu semblante apreensivo. A partir dali todas suas esperanças poderiam mudar. Sendo assim, Erick decidiu não torturá-la.ᅳ Veja bem… Creio eu que sua maior apreensão é a incerteza de que se poderá voltar a enxergar algum dia.Os homens naquela sala tinham seus olhos fixos sobre a escritora, que mesmo sem confirmar com palavras, dava a certeza de que aquelas palavras estavam corretas. Eri
Caminhavam pelo bosque, o ar fresco preenchia seus pulmões. Após tanto tempo, Andressa sentia sua respiração profunda trazer prazer e calma. Como sempre, ela recusava ajuda, ainda mais agora que tudo estava prestes a ser como antes. Boa parte das preocupações haviam sido apaziguadas. A morena em breve poderia dar continuidade aos seus sonhos e não iria interferir na vida daqueles que amava.Nos últimos meses foi difícil pensar que atrapalhava a vida de muitos. Eles abriram mão de coisas importantes para ajudá-la. Jean era sua maior "vítima", mas em breve não seria mais assim. Obviamente sentir-se dessa maneira não era correto, tampouco saudável. Andressa se sentia culpada e para ela era difícil aceitar as palavras do psicólogo, era difícil aceitar que acidentes acontecem e que por mais que novas dificuldades surjam, não devemos nos encarar como um fardo na vida das pessoas.Uma conversa mais leve acontecia entre os amigos. A princípio eles falavam sobre coisas que
Pouco tempo depois, Jean e Fabrício surgiram em meio às árvores. O segundo, um rapaz de cabelos castanhos que batia na altura dos ombros, tropeçava em galhos, pedras e tudo o que encontrava pelo caminho, até mesmo nos próprios pés. Erick assim que o avistou já percebeu: ainda era manhã e ele estava bêbado mais uma vez. Esse era o tipo de amizade que Jean insistia em manter. Já o marido de Andressa tinha outra preocupação. Mal chegou naquele ponto e enxergou o que seu cão fazia."Não! Ele não pode...!" ᅳ Pensou e avançou na direção do cachorro, por consequência também seguindo rumo à Erick e Andressa.ᅳ Jindo! Chega! Não faz isso. ᅳ Próximo o suficiente, ele tentou pegar o cão. Carregando Andressa nos braços, Erick corria em busca do fim daquele labirinto que parecia ter ganhado muitos metros e desafios mais. O tempo corria, as trilhas se estendiam e no rosto do médico o desespero estava escancarado. Sua ‘pequena’ continuava desacordada e ele não podia fazer nada além do que fazia. Jean vinha bem atrás, caminhando lentamente ajudando seu amigo. Fabrício se apoiava em seus ombros e as marcas em seu pescoço ganhavam mais nitidez. Ele continuava tonto, só que antes de tudo preocupado pela visão que tivera.ᅳ Eu a vi, Jean! Ela ainda está aqui...O rapaz torcia para que tivesse sido apenas mais uma alucinação, Tiffany sempre o assombrava, mas algo foi diferente daquela vez. Agora ela desejava matá-lo e mesmo depois de ter partido, Abandono
Horas depois do acontecido, Andressa havia recobrado a consciência. Permanecia no hospital, deitada na cama. Todos haviam concordado que seria melhor deixá-la em repouso por pelo menos mais um dia. Precisavam de mais certezas, mais exames, precisavam saber que tudo ficaria bem.No começo da noite ela estava desperta e sozinha no quarto, pensava sobre sua última visão. Recobrava-se de todos os acontecimentos e sensações. Já estava certa de que lidava com algo fora do comum, algo que não se ligava ao natural. Nada daquilo era provocado por sua condição, ela não tivera nenhuma visão confusa, aquela mulher existia sim, e com certeza não habitava a terra dos vivos. O que a jovem se perguntava era o que ela queria, qual era seu propósito ao aparecer para ela e atacar Fabrício. Talvez devesse se afastar, mas continuaria fugindo?