Capítulo 2
O carro adentrou os portões da mansão da família Garcia. Luiz ordenou que as funcionárias me levassem ao banheiro para um banho. Dispensei a ajuda delas, pedindo apenas que escolhessem no meu antigo guarda-roupa um vestido comprido, que não mostrasse sequer os tornozelos.

Elas reviraram tudo durante uma eternidade até acharem um modelo simples, formal, de mangas longas. Parecia até uniforme escolar.

Ninguém dita regras sobre como estudantes deviam se vestir, mas ao me ver no espelho, percebi que meu visual, antes ousado e cheio de personalidade, realmente parecia mais com o de uma aluna aplicada agora.

Antes do sequestro, hjavia recebido a carta de aceitação da melhor escola de design do exterior. Já se passavam três meses desde o prazo de matrícula.

— Valeu, gente. — Eu disse.

As funcionárias arregalaram os olhos. Nunca imaginariam ouvir um "obrigada" da uma dama.

Mas depois de tudo que vivi, sabia perfeitamente nossa real posição. Elas eram empregadas da família Garcia. Eu era a filha comprada dos Garcia.

Ao sair do banheiro, encontrei Luiz encostado no corrimão da escada. Me avaliou com aquele olhar indolente de cima a baixo antes de soltar uma risada.

— Ângela, que palhaçada é essa? Se vestir que nem freira...

Feia? Ele achava que eu fazia aquilo para chamar atenção. Mal sabia que só queria esconder as marcas roxas pelo corpo.

Seguimos para a sala de jantar num silêncio pesado. Só quando Luiz fez um gesto brusco percebi seus pais na mesa, Felipe e Marta, com caras de quem tinha engolido limão.

Marta se levantou tão rápido que quase tropeçou. Uma mulher a segurou pelo braço com cuidado excessivo.

— Dona Marta, calma! A Srta. Ângela está inteirinha, viu? — A voz melíflua veio da assistente de Luiz, Camila Rocha. — Srta. Ângela, a Dona Marta estava muito preocupando com você.

Camila mantinha os cabelos negros naturais, suéter de gola alta e jeans básico. Só o colar de ouro rosê no pescoço denunciava suas ambições.

Eu, inteirinha? Marta realmente ficava de cabelos brancos de preocupação, mas bastou aquele choro teatral para eu deixar de ser vítima de sequestro e virar a filha ingrata da família Garcia.

Marta me envolveu em um abraço molhado de lágrimas enquanto Camila a acariciava como criança. Eu? Nem uma lágrima.

Luiz me encarava com aquele olhar de "não tem coração mesmo".

Foi Felipe quem quebrou o clima com voz grave:

— Chega de drama, Marta. Deixa ela comer.

Ela se soltou de mim, fungando:

— É minha culpa... Tanta coisa ruim você passou! Está morta de fome, né? Vem, seu prato favorito está aqui!

Marta me arrastou para o lugar entre ela e Felipe. Luiz se plantou à minha frente, Camila colada nele como sombra.

Que retrato de família perfeito.

Eu encarava o prato à minha frente. A comida estava impecavelmente arrumada, cheirosa e bonita de se ver, quase me fazia esquecer o que era uma refeição decente.

De repente, um impulso crescente me dominava, quase me fazendo largar os talheres e atacar a comida com as mãos, engolindo tudo sem cerimônia.

Entretanto, conforme chegávamos perto da cidade, o controle nas estradas apertava, os lixões sumiam, e na correria da fuga, perdi totalmente meu acesso à comida. Três dias inteiros vivi só de folhas de árvores, sem colocar nada sólido na boca.

Sob os olhares da sala toda, me controlei a usar os talheres direito. Mesmo assim sentia o olhar gelado da Camila me perfurando. Ela comia com uma delicadeza exagerada, manuseando os talheres como se estivesse dando aula de etiqueta.

Luiz fez cara de nojo, mas pela insistência de Marta, pegou um pedaço de carne e jogou no meu prato.

Antes eu achava que até mingau ralo ou pão duro eu devoraria nessa hora. Porém, vendo aquele pedaço suculento de carne e sabendo que vinha do Luiz, meu estômago embrulhou de repente.

— Ângela, come sim. Luiz lembrou que você adora carne ao ponto, pediu pra empregada fazer uma porção extra. — Marta falou com aquela voz melosa de sempre.

Sorri amargamente por dentro. Como se Luiz soubesse alguma coisa sobre mim! Na verdade, era eu que sabia cada detalhe dele, até o vinho rosé que ele tanto amava.

Quando hesitei com os talheres, Felipe perguntou preocupado:

— O que foi, Ângela? Vocês brigaram na viagem? Depois do jantar a gente resolve isso. Pode ficar tranquila.

— Pai! — Luiz resmungou, provavelmente com vergonha na frente da Camila.

Abanei a cabeça calada, engolindo o nojo, e finalmente meti a carne na boca. Contudo, na hora de engolir, não aguentei e cuspi tudo no prato.

Luiz ficou paralisado. Me levantei tão rápido que a cadeira caiu, encolhida no canto com os braços na cabeça.

— Perdão! Eu como, eu juro! Não me bate! — Gaguejei tremendo.

A sala ficou em silêncio de geladeira. Marta veio correndo me abraçar, soluçando:

— Fizeram maldade com você, minha querida? Conta para mim, foi isso?

Felipe e Luiz se aproximaram. O velho com cara de pena, o filho todo duro, queixo cerrado e olhos evitando os meus.

Fiquei confusa. Não foram os sequestradores que ameaçaram a família Garcia? Que iam humilhar a filha adotiva se não pagassem o resgate? Então por que eles estavam perguntando se me maltrataram?

Na realidade, se me dessem um pão mofado ou uma sopa azeda, nem consideraria como abuso. Depois de tudo, até restos de comida eu comi.

O que me apavorava mesmo era entender que meu destino estava nas mãos de Luiz e que ele me jogou fora.

Na hora de negociar com os sequestradores, ele me deixou para trás. Ele me odeia.

Talvez fosse esse nojo dele que estava me envenenando por dentro agora.
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