Bruno
Já passava do meio dia quando uma leoa me cercou em meio à savana do parque de Masai Mara. Foi burrice explorar esse território a pé, mas eu sou um biólogo e cinegrafista experiente. Não era a primeira vez que eu fazia isso, mas foi a primeira em que fiquei cara a cara com o perigo.
Para o meu azar, o jeep que eu usava para me locomover pelo parque estava há pelo menos cem metros dali. Eu tinha duas escolhas: correr até o carro o mais rápido possível e empurrar a minha câmera no animal à minha frente para conseguir alguns segundos de vantagem, ou tentar guardar o meu equipamento e ser devorado antes que eu conseguisse fechar o tripé.
Qualquer pessoa inteligente teria escolhido a segunda opção, mas não eu. Nem morto eu sairia dali sem o meu equipamento de filmagem, aquela câmera foi absurdamente cara, além de ser o meu ganha pão. Se eu a perdesse, teria que dar adeus ao meu cargo de cinegrafista para um serviço de streaming e voltaria para o Brasil.
Apesar de estar frente a frente com a morte, tentei manter a calma e não desviei meus olhos do animal enquanto levava as mãos até o tripé da câmera e o levantava do chão com firmeza. Segurando o equipamento junto ao peito, andei para trás lentamente. Se eu começasse a correr, o animal pularia na minha garganta e seria o fim da minha patética existência.
Infelizmente, não consegui dar mais que dois passos sem que a leoa começasse a rosnar, mostrando suas presas amarelas e afiadas. Naquele instante, franzi o cenho e segurei o tripé com mais força. Eu reconhecia exatamente aquele comportamento, o animal iria atacar nos próximos segundos e eu tinha que pensar rápido.
Não vendo outra alternativa, apertei os dedos em volta do tripé e o joguei em cima da leoa com toda a força que eu tinha. O impacto não iria matá-la, mas me daria tempo o suficiente para fugir dali. Como biólogo, senti uma pontada de culpa por estar ferindo um animal em zona de preservação, mas foda-se, era a minha vida ou a dela e eu optei pela minha — embora não fizesse muito sentido — talvez, fosse meu instinto humano de sobrevivência falando mais alto.
Assim que o animal caiu no chão, me virei e corri o mais rápido que pude. Quando abri a porta do jeep verde-musgo com teto de lona, eu podia ouvir a vegetação atrás de mim sendo amassada pelos passos velozes do animal. Sem pensar duas vezes, me joguei no banco do carona e fechei a porta com força, a trancando logo em seguida. Suspirei aliviado quando a leoa pulou atrás de mim, mas foi impedida pelo vidro da janela.
Meu peito subia e descia rapidamente, suor escorria pela minha testa e as mechas mais longas do meu cabelo castanho caiam em minha testa ensopada de suor. O calor intenso já estava presente mesmo no início do verão, o que nunca foi novidade, já que o clima nas planícies do Quênia era árido praticamente o ano inteiro, nem mesmo durante o inverno o sol fazia trégua. Hoje estava tão calor que eu andaria nu, se pudesse, mas não queria ter o desprazer de encontrar visitantes do parque e explicar porque eu estava perambulando pela área como vim ao mundo. Deixaria aquela atividade para quando estivesse sozinho em minha casa
A leoa rugiu e bateu com a pata no vidro do jeep, o que fez o veículo inteiro balançar. Minha atenção se voltou para o animal e eu rugi de volta com raiva. Aquilo foi patético, até mesmo para mim.
Com ódio martelando no peito, girei a chave e ouvi o ronco do motor ganhando vida. O barulho assustou o animal, que acabou se afastando do carro e eu soquei a buzina com força, provocando outro som agudo. Rugindo novamente, a leoa se encolheu e correu para a pequena mata que havia ali, desaparecendo entre as folhagens.
Engatei a ré e comecei a manobrar o carro para voltar até o local em que deixei a minha câmera. Por sorte, fazia alguns dias que não chovia, o que deixou o solo seco o suficiente para que o veículo andasse pela planície sem ficar agarrado em poças de lama.
Ao chegar no local, olhei pelo retrovisor para ter certeza de que não havia nenhum outro animal à espreita. Apenas um bando de antílopes pastava na grama baixa e uma família de elefantes caminhava lentamente em direção ao lago que havia ali. Abri a porta rapidamente e corri até o emaranhado de metal que estava jogado no chão. O tripé estava retorcido e os pedaços da câmera espalhados pela grama ressecada — provavelmente, ela desmontou com o impacto da queda.
— Porra, eu não acredito — praguejei, enquanto recolhia o que sobrou do meu equipamento e jogava no banco traseiro do carro. No fundo, eu sabia que aquilo não tinha conserto. Eu estava perdido. Era o fim da minha carreira.
Sentindo meu maxilar tenso, voltei para a frente do volante e fechei a porta do jeep com força em uma tentativa frustrada de descontar a minha raiva. Eu não queria voltar para o Brasil. Toda a minha família estava lá, mas Helena também.
Helena... — Apertei as mãos em volta da borracha que cobria o volante. — A vadia que me manipulou, traiu e quase me fez criar o filho de outro. — Pensar nela fazia um ódio intenso queimar em minhas veias. Helena foi a responsável pela vida que eu levava atualmente: uma existência medíocre, vivendo os meus dias em uma cabana isolada no meio de um parque florestal, evitando ter contato com outras pessoas, principalmente com mulheres. Eu não queria passar por todo aquele sofrimento de novo, não queria ser feito de otário uma segunda vez, então estava há seis ou sete anos sem sentir um traseiro macio rebolando em cima de mim. E quando minha necessidade apertava, minha mão direita estava sempre ali para me aliviar. Era uma vida de merda, mas eu não daria um fim a ela. Ao menos sobre isso eu ainda possuía controle, não deixaria que as lembranças da minha ex-esposa fossem tão longe a ponto de me fazerem desistir de tudo.
Respirando fundo, girei a chave e dei partida com o carro, dirigindo para a estrada de terra que levava até a minha casa. Se eu não quisesse voltar para o Brasil, precisava dar um jeito de comprar outro equipamento para fazer o meu trabalho e assim manter o meu visto de permanência no Quênia. Tentei controlar a raiva que sentia em meu interior, observando a paisagem de acácias e gramas amareladas que se estendia além do horizonte. Enquanto o jeep percorria a estrada, vi um grupo de estudantes fazendo anotações no campo enquanto observavam uma família de antílopes. Foi quando tive uma ideia. Era a ideia mais idiota que eu poderia ter considerando o estilo de vida que eu levava, mas iria me garantir dinheiro para repor o equipamento perdido, então eu precisava me sacrificar.
Aina Mais um dia trabalhando no mercadinho da minha família. Nunca fui muito fã de ficar o tempo inteiro sentada atrás de uma caixa registradora aguardando que as pessoas fizessem suas compras, mas infelizmente era o único emprego que estava disponível no momento. Eu queria aventura, emoção e o mais importante: queria ajudar a proteger os animais que sempre admirei desde pequena. Por esse motivo, me formei em zoologia pela universidade de Nairóbi aqui no Quênia. Meu sonho de infância sempre foi ajudar na reabilitação de espécies em extinção e auxiliar com o seu retorno à natureza. Apesar de ter passado os últimos meses enviando currículos, eu não consegui emprego nas reservas locais. Os líderes das instituições estavam em busca de pessoas competentes e com experiência na área, não estavam interessados em contra
Aina Enquanto eu deixava a água quente do chuveiro lavar o meu suor do dia, tive uma pequena recordação do rosto daquele sujeito mal encarado. Akin disse que ele se chamava Bruno... é um nome bonito para um sujeito tão estranho— pensei, distraída. Deixando minhas lembranças de lado, saí do chuveiro e me enrolei na toalha lilás e felpuda que havia ali. Como nossa casa não era muito grande, todos nós dividíamos o mesmo banheiro. Eu não reclamava, pois tinha um quarto só para mim e isso bastava para que eu tivesse a minha privacidade. Caminhei rapidamente pelo corredor estreito que levava em direção ao meu quarto e uma vez que estava dentro do
Bruno Caralho, no que eu fui me meter?— bati a porta com força e me sentei no sofá verde que havia na minha pequena sala. Minha casa não era muito grande, na verdade, estava mais para uma kitnet. Em um único cômodo havia a cama de casal onde eu dormia, um fogão, geladeira, uma mesa de bétula com duas cadeiras e o sofá de três lugares onde eu estava sentado. Não havia paredes para separar as coisas, mas a colocação dos móveis estava muito bem organizada. Eu não gostava de bagunça ou coisas fora do lugar e só estava desleixado com a minha aparência por um motivo simples: afastar a atenção das mulheres. Se elas não se aproximassem se mim, eu ficaria bem. Ao menos, era isso que eu pensava até encontrar Aina. A mulher não saía da minha cabeça
Aina Não entendi porque Bruno correu para o banheiro. — Talvez esteja com dor de barriga?— pensar naquilo me fez rir. O homem era um ignorante, mas eu precisava admitir que ele sabia cozinhar. Acho que nunca comi uma omelete tão boa em toda a minha vida, mas eu não diria isso para ele, é claro — pelo menos, não até que o homem começasse a usar alguns hábitos de boas maneiras. Terminei minha refeição em silêncio enquanto pensava em tudo que aconteceu no dia e comecei a me sentir exausta. Agora que eu estava relaxada, comecei a sentir os efeitos da longa caminhada que fiz mais cedo. Minhas pernas doíam e meus pés latejavam, eu não estava acostumada a percorrer longas distâncias a pé. Bruno estava há mais de meia hora no banheiro e eu não sabia quando ele sairia de lá, então lavei o prato que comi e resolvi deitar na cama que havia ali. Ela era espaçosa e estava forrada por um cobertor verde musgo. Como o lei
AinaFicamos em silêncio pelo resto da viagem, até que o jeep entrou em uma estrada repleta de acácias com folhas ressecadas pelo calor do verão. Assim que o veículo se estabilizou, um sol forte atingiu meus olhos e eu precisei protege-los com as mãos. Bruno deu uma breve risada com a minha reação.—É por isso que estou de óculos — concluiu. — Precisa conseguir um para você.—Acho que tinha um óculos de sol dentro da minha bolsa — recordei enquanto minhas mãos protegendo o meu rosto da claridade. — Por falar nisso, o que fez com as minhas roupas?—Pendurei no varal atrás da casa para que pudessem secar durante o dia.—Obrigada — deixei escapar. — E por falar em coisas molhadas, acho que meu celular estragou por causa da água. Poderia me emprestar o seu para
Aina —Vamos mais à frente — Bruno chamou a minha atenção e caminhou cautelosamente até o meio da pradaria, onde dezenas de cudos e gnus pastavam tranquilamente. —Nunca fiquei tão perto de animais selvagens — admiti. —Há sempre uma primeira vez para tudo. — Ele estendeu sua mão para acariciar um pequeno filhote de cudo. — O importante é não permitir que os animais te vejam como uma ameaça. Evite olhar nos olhos deles ou encará-los por mais tempo que o necessário. Concordei em silêncio. —Acho que vou precisar de um caderno para anotar essas dicas — comentei.
AinaBruno passou o resto da manhã listando todos os tipos de biomas que existiam na região e dando informações detalhadas sobre os animais que viviam em cada um deles. Fiquei aliviada por ter aquela agenda para anotar o que eu ouvia, pois meu cérebro não estava guardando nada. Eu não conseguia deixar de pensar no que aconteceu mais cedo, no fato de que Bruno já foi casado e ficava todo irritado quando mencionava a sua ex-esposa. Estava claro que ele odiava a mulher e comecei a me perguntar se ela não seria a causa do seu mau humor constante.Será que ela fez algo que o homem não gostou?Para a minha tristeza, havia uma grande chance de que minhas perguntas nunca fossem respondidas, Bruno não parecia disposto a se abrir e estava mais sério que antes.Por mais que eu quisesse me concentrar no curso e deixar de me meter nos problemas de ou
AinaObservei com medo enquanto o homem girava a chave, mas o motor do jeep não fazia nenhum som. O guepardo ainda batia ferozmente na janela ao meu lado e eu temia que aquele vidro se quebrasse a qualquer momento.Assustada, me encolhi para longe da janela e depois de mais alguns segundos o carro finalmente ligou. Bruno pisou no acelerador com força e o jeep deu um solavanco para a frente e para trás, fazendo com que a minha testa se chocasse contra o painel de plástico duro. Uma terrível tontura inundou a minha cabeça, mas tentei me manter acordada, eu não podia me dar ao luxo de desmaiar naquele momento. Quando me dei conta, já estávamos na estrada de terra e o homem ao meu lado praguejava enquanto olhava pelo retrovisor. Virei meu rosto para trás e arquejei quando vi que o guepardo estava a poucos metros do jeep, nos perseguindo a todo vapor. Ele era um animal veloz