Sena me esperava na cabana com água fervendo em seu caldeirão de barro. De alguma forma ela sempre sabia quando eu voltaria com comida. Jogo a raposa branca na mesa de madeira tão velha que rangeu com o impacto.
Não digo nada, apenas pego uma adaga maior para limpar a pele do animal, cortando com cuidado para que possamos utilizá-lo para fazer uma capa para Ana, nossa vizinha de apenas de cinco anos que enfrenta febre alta há pouco mais de uma semana.
A carne da raposa não vai durar o tanto que eu gostaria, mas será suficiente para dividir para algumas pessoas próximas de nós. Infelizmente não consigo ajudar a todos, já faço o bastante arriscando minha miserável vida.
— Lágrimas são um ótimo tempero para os alimentos, sabia? — minha avó quebra o silêncio.
Só então percebo que estou chorando sobre a carne que corto. Passo a mão, suja de sangue, pelo rosto.
— Eu sou um desastre — suspiro, caminhando até a bacia próxima para me limpar.
— Vai tomar um banho, eu termino aqui — ela diz com doçura
Olho para minhas roupas encharcadas, adormecendo meu corpo e exalando o cheiro forte de sangue fresco.
Uma súbita vergonha me invade ao lembrar que aquele homem — tão bonito — tocou em mim nesse estado deplorável.
Que diferença faria? Dou de ombros. Mesmo se estivesse limpa, ele jamais se interessaria por alguém como eu.
Repreendo o pensamento idiota que passou pela minha cabeça e saio para tomar banho. Assim como os alimentos, a água aqui era um luxo, mas minha avó sempre dava um jeito de conseguir uma bacia para que eu pudesse me banhar. Até hoje, não sei como ela faz isso. Só sei que é um segredo entre nós duas, e, de algum modo, isso me faz sentir feliz — um pequeno privilégio em meio a tantas privações.
Tiro as roupas sujas e molho o pano na água, esfregando a sujeira grudada na minha pele. O vento, cortante como lâminas finas, atravessa as frestas abertas da cabana, chicoteando meu corpo. Eu havia prometido a mim mesma que consertaria esses buracos assim que o inverno acabasse, mas, como muitas promessas feitas na fome e no frio, ela ainda estava pendente.
Depois de me limpar o melhor que posso, visto uma muda de roupa feita de pele de coelho — áspera, mas quente — e lavo rapidamente as roupas que usei hoje, torcendo o tecido ao máximo para deixá-las secando perto do fogo onde minha avó cozinhava um ensopado simples.
— Ana já está se sentindo melhor, graças às folhas de arruda que você encontrou esses dias — ela comenta, sem tirar os olhos do caldeirão.
Sei que ela só está dizendo isso para que eu me sinta melhor, ela sabe como eu me sinto insignificante e o que tenho passado com os guardas.
Sento-me perto do fogo, sentindo o calor reconfortante.Meus dedos ainda tremem levemente
— Fico feliz em ouvir isso — respondo em voz baixa, puxando as pernas contra o peito. O cheiro do ensopado se mistura ao aroma terroso da madeira queimando.
Minha avó me lança um olhar breve, como se pudesse enxergar através de mim.
— Vai me contar o que aconteceu ou só vai ficar me olhando igual um bicho assustado?
Eu baixo o olhar, mexendo distraidamente nas costuras rasgadas da minha roupa de pele.
Essa realmente deve ser minha aparência um animal assustado. Minha pele morena parece acinzentada, os meus cabelos escuros estão opacos e sem vida devido ao rigor do inverno. Os lábios, rachados e ressecados, vivem sangrando. Pelo menos meus olhos, que naturalmente são lilás, brilham em tons quase dourados, o que me deixa com aparência de viva. Isso é efeito das poções de minha avó, feitas por precaução para não causar alvoroço devido à minha aparência incomum. Deve ter algo por trás que ainda desconheço, sinceramente não sei se quero saber o motivo de não poder usar meus olhos como nasci.
Só confio na senhora que me criou quando ela diz que um dia irei saber.
— Dessa vez não tenho nada para contar. — Minto, mas meu coração trai a verdade, batendo forte só de lembrar dos olhos azuis que me encararam como se vissem algo que nem eu mesma sabia que existia.
Minha avó apenas sorri de lado, aquele sorriso sábio e silencioso que sempre usa quando sabe mais do que deixa transparecer.
— Se você diz, eu acredito. — Agora venha comer. Irei chamar nossos amigos.
Em poucos minutos a pequena cabana já se encontra com dez pessoas exprimida uma nas outras com pratos rachados com ensopado de raposa.
Sinto uma pequena felicidade aquecer meu coração com os sorrisos largos deles por finalmente comer algo.
Alex está sentado ao meu lado, mas já não prestamos mais atenção no que está sendo dito. Terminamos de comer há algum tempo, só estamos esperando as pessoas irem embora.
— Quer dar uma volta? — ele pergunta.
— Está congelando lá fora.
Ele sorri, segurando minha mão com firmeza. Aproxima-se o suficiente para encostar o rosto ao meu ouvido e, em um sussurro baixo, apenas para eu ouvir, diz: — Eu tenho ótimas ideias de como te aquecer.
Sinto meu rosto corar, e, por um momento.Claro que não recusarei a oferta. Só os deuses sabem o quanto preciso aliviar toda a pressão que se acumula em mim.
— Vamos — digo, minha voz mais suave do que o esperado, quase um sussurro. A proximidade dele só faz o calor em minha pele aumentar.
Ninguém comenta nada quando saímos de fininho para o frio.
Estamos deitados no chão do celeiro abandonado. O cheiro de feno e poeira no ar não me incomoda, de alguma forma, até me sinto grata por momentos como este. Alex está ao meu lado, e sua proximidade faz o tempo parar, me fazendo esquecer de tudo lá fora.— Queria ficar assim com você para sempre — ele diz, a voz suave, mas cheia de um desejo que eu já conheço bem. Eu sei o que vem a seguir, e sinto o peso daquilo que não posso corresponder. Gosto dele, de maneiras que não saberia explicar, mas não o suficiente para transformar o que temos em algo mais sério.— Ei, não precisa ficar toda tensa. Eu não disse nada demais. — Ele tenta suavizar, mas meu corpo fica mais rigido.— Acho melhor irmos. Já está ficando muito tarde, e algum guarda pode aparecer por aqui. — Digo, tentando esconder o nervosismo, levantando e pegando minhas roupas, jogadas em algum canto do celeiro.Alex suspira ao meu lado, passando a mão em seus cabelos dourados, agora mais longos que o normal. Ele é uma pessoa mui
Uivos soavam como alarmes em toda parte, o cheiro de ferrugem e fumaça inundava meu nariz fazendo arder cada célula do meu corpo.Está muito escuro, não sei onde estou, mas posso ouvir passos pesados atrás de mim. Lobos, muitos deles saem da escuridão, suas pelagens densas brilhavam sobre o luar.Um homem se aproxima arrastando pelos cabelos uma jovem de cabelos dourados tão claros que são quase branco, seu rosto é redondo e sua pele brilha como porcelana. O homem puxa mais seus cabelos até que ela esteja de joelho olhando para ele, consigo enxergar através da névoa que começa se formar sua orelha pontuda. Uma elfa.Já tinha escutado histórias sobre elas, mas nunca cheguei a ver uma de verdade, até pensei que elas tinham sido extintas na última guerra. Os uivos ficam mais estridentes, levo as mãos nos ouvidos para amenizar o som.A nevoa fica mais densa, tenho que me esforçar para conseguir enxergar com clareza. O homem joga a elfa no chão e segura sua cabeça com coturnos pretos, el
A noite estava envolta em um silêncio estranho, quase inquietante. Nem mesmo o canto dos grilos se atrevia a romper a atmosfera densa que pairava sobre a floresta. A lua cheia, escondida por entre as nuvens escuras, mal iluminava a pequena cabana no coração do território da alcateia. Dentro, Selene gargalhava enquanto brincava com seu pai, saltando entre suas pernas enquanto ele a levantava no ar. Aqueles eram momentos preciosos, uma rotina que a fazia sentir-se segura e amada.Um som cortante ecoou pelo ar, um ruivo longo e penetrante, o sinal de alerta de perigo, algo terrível estava prestes a acontecer. As brincadeiras cessaram no mesmo instante. Selene parou e olhou para o pai com uma expressão assustada. — Papai, você ouviu isso? — perguntou, com a voz trêmula Antes que ele pudesse responder, a porta da frente foi escancarada. A mãe de Selene entrou correndo, os olhos arregalados e o rosto pálido. Sua respiração estava ofegante, e seus lábios tremiam ao tentar falar.— Precis
O dia está congelante, com camadas espessas de neve cobrindo todo o solo de Castile, um dos principais complexos de Cerne, o reino dos humanos. Sinto fome, e nem me lembro da última vez que consegui comer. O inverno é especialmente severo para aqueles deste lado da muralha. É difícil sair para caçar, não apenas porque a maioria não tem roupas adequadas para o frio, mas também porque estamos cercados por idosos e crianças, que não conseguem ser rápidos o suficiente para voltar antes do toque de recolher. Os poucos que ainda têm forças para sair em busca de comida voltam com as mãos vazias.Eu deveria estar a caminho dos portões, no entanto, aqui estou tentando acompanhar um casal de raposas brancas. Elas deslizam entre os arbustos, desaparecendo na bruma. Eu me arrasto atrás delas, com cuidado, sem fazer barulho. Ajeito o arco e flecha nas costas, sentindo o peso familiar. Miro no pescoço de uma delas e atiro, manchando a neve com sangue quente. A outra raposa foge assustada. Vou até