As conversas giravam em torno de filosofias esotéricas e fins de mundo, sociedades distópicas e efeitos de drogas. Essas Taco conhecia bem. Para Dingo, novidades que causavam medo, mais que curiosidade.
Dingo passava parte dos fins de semana com a turma de Taco, bando de desordeiros que vira-e-mexia mofavam em porões de autoridades, sem apelação. Sem grana, não há apelação. Sem grana, não há direito. Direitos humanos para quem de direito. A marginália sequer sonhava com isso. O clássico de Malcolm X:
“não confunda a violência do opressor com a resistência do oprimido”.
Num desses fins de semana de noite ensolarada, Taco e amigos foram a um cemitério próximo ao bairro deles. Padre,
Joanita. Gótica. Magra. Branca como cera. Amoral, como Taco. Forte, muito mais que Taco. Mais velha também. Tinha 24 anos no tempo de nossa história. Dingo gostava dela, nutria paixão secreta, mas ela era de Taco. Fodiam selvagemente. Dingo não seria capaz disso. Taco e Joanita se conheceram num puteiro-bar, desses onde toda a malandragem se encontra. Foi ali que tudo começou. Não uma história de amor convencional, claro. Jamais seria. Uma história de atração e respeito. Eram praticamente do mesmo tamanho. Tinha vasta experiência nas ruas e nas camas, e a aplicava com Taco, com maestria, com raro talento.Joanita cantava muito bem, fazia parte de um Coral, e seu vocal lírico era requisitado em várias bandas góticas underground Anos se passaram. Taco e Dingo sobreviveram às intempéries intestinais da louca vida, e chegaram aos 21 anos. Taco abandonara o colégio naquele período mesmo, sem completar o ensino médio, enquanto Dingo chegou a fazer faculdade. Cursou Computação, sem concluir, e nesse tempo aprendeu a beber, a falar palavrão e a se divertir, sem deixar de ser um nerd. Mas os conflitos familiares o afastavam cada vez mais de suas características. Ainda naquele ano, o Peita foi preso, e tempos depois, acabou dizimado pela Aids, dentro da cadeia, onde adquiriu a doença, através de uma seringa. O Padre sumiu, desapareceu, levando seus discos do Sepultura debaixo do braço. Não se ouviu mais falar nele, pelo menos por um longo tempo. Taco conhecia os bares da vida mais que os próprios donos, e vivia de bicos e furtos. Sua Joanita atuava lá e cá como cantora e faVI Tempos
Dingo cursou dois anos e meio da faculdade e largou, em meio à enorme crise familiar, que o deslocou da residência sagrada. Mesmo sem o pai, o clima já não lhe dizia respeito. Seus irmãos eram completos desconhecidos para ele, e sua mãe, extremamente limitada, além de jamais ter se recuperado da morte do marido. Dingo estava longe de ser um solidário, um humanista, e preferiu encarar a vida louca antes que a vida normal o enlouquecesse de vez. Visitava a mãe esporadicamente, percebia a decrepitude chegando mansamente, e não falava com seus irmãos de forma alguma. Isso jamais mudaria. Outros mundos, universos distantes, posturas díspares.Habituara-se aos sons distorcidos das guitarras que acompanhavam sua turma, seus amigos. Dividia com Taco uma pequena casa alugada, decrépita, quase desabando. Taco saiu da casa de su
SaudadesSaudades da terraSaudades da ilusãoSaudade que fica, saudade que vai, e volta, e vai, e retorna com força, tropeçando nos delírios.Saudades de tudo, saudades de casa, saudades de tempos que não existiram. Saudades traiçoeiras, memórias mambembes, d´um quando onde o Sol parecia brilhar mais forte, a Lua era maior, as montanhas tinham recortes perfeitos. Como em fotos antigas, a beleza na capacidade de ver o bom.“Não, cara, não peguei ninguém ontem, acho que pegar não é pra mim, meu lance é amor, paixão, sei lá, eu não sirvo pra comer ninguém, ninguém tá nem aí
Galopeeeeeeeeeeeeeeeeeeeira, nunca mais te esquecereiGalopeira, pra matar minha saudadePra minha felicidade, Paraguai, eu voltareiPra minha felicidade, Paraguai, eu voltarei(Mauricio Cardoso Ocampo)Eram os anos 80. Um tempo de cores e de pobreza. Um Brasil recém-saído de uma ditadura militar, ainda sem saber lidar com o novo tempo. Aprenderia errando e apanhando. Mas naqueles tempos, tudo parecia particularmente difícil. Ao mesmo tempo, tudo era permitido, ou as
Quando amanhecer, você já será um de nós...Ainda no ano em que Dingo e Taco se conheceram, 1987, era “moda” nas escolas a chamada “brincadeira da caneta”, variante papel-caneta da versão mais famosa, a “brincadeira do copo”. Brincadeira para alguns, assunto sério para outros, consistia em falar com os mortos. Na época, pouca gente sabia que se tratava de um jogo baseado no tabuleiro ou tábua Ouija, um método de necromancia para se comunicar com os mortos ou espíritos. Para os jovens, não passava de um brinquedo.Bastava um papel em branco e uma caneta. Nas extremidades da folha, escrevem-se as palavras “sim” e “não”. No alto da folha, a palavra “entrada”, que é por onde o “esp&iac
No fundo, no fundo,bem lá no fundo,a gente gostariade ver nossos problemasresolvidos por decreto (Bem no fundo. LEMINSKI, Paulo)Dívida de jogo do bicho. Uma, duas, três balas. Os últimos suspiros de um alcoólatra. Poderia ter sido melhor. O final foi rápido, rasteiro, sem perdão. Implacável. Assim terminou a vida de um homem de 28 anos, que acumulava dívidas e problemas com o álcool pelo menos desde os 20, quando saiu de sua cas
Pode-se dizer que a maioria das pessoas não conseguiria encher duas páginas com sua história de vida. Talvez fosse o caso de Dingo, o nerd fanático por futebol, pouco encantador, zero de carisma. Teve uma infância asséptica. Porém, Dingo tinha alma. Uma alma bem confusa, aliás. Tão confusa que ele mesmo tinha enorme dificuldade em entender suas ideias. Fugia um bocado do perfil de seus familiares mais próximos. Como dito antes, era o irmão mais novo de três rebentos. Seu pai era empresário do ramo de fabricação de parafusos. Razoavelmente bem-sucedido durante um bom tempo. Sua mãe, bastante católica, era dona de casa. Uma espécie de secretária do lar, que ajudava o marido inclusive nas questões financeiras da empresa, mas não lidava diretamente com a fábrica. Batia ponto religiosamente na Igreja, aos d