Dante Morelli
Chove.
 Chove como se o céu estivesse tentando lavar essa cidade podre.  Mas nada limpa o que já nasceu manchado.O galpão onde estou fede a ferrugem, óleo velho e medo. O tipo de medo que escorre em silêncio, que se impregna nas paredes. Já me acostumei com esse cheiro. Cresci dentro dele. Me tornei homem com as mãos sujas disso.
O cara amarrado na cadeira — rosto inchado, boca sangrando, olhos arregalados — não parece ser o mesmo garoto promissor que estudou fora, cheio de diplomas e oportunidades. Um Ribeiro, me disseram. Rafael ou Adam, tanto faz. Só é mais um merda que achou que podia subir rápido apostando com dinheiro dos outros. Dinheiro meu.
— Diga de novo. — minha voz sai baixa, firme. Não preciso gritar. Nunca precisei.
O idiota à minha frente hesita. Eu vejo o terror no fundo dos olhos dele. Não é só medo da dor. É medo do fim. Da morte. Ele sabe que está com um pé na cova.
— Eu tenho uma irmã — ele murmura, cuspindo sangue com as palavras. — Está quase se formando em psicologia. Inteligente. Discreta. Vocês precisam de alguém assim no time de vocês.
Arqueio uma sobrancelha. Será que entendi direito?
— Você está me oferecendo sua irmã… como pagamento?
— Façam o que quiserem com ela. Só… só não me matem.
O riso de Enzo, um dos meus homens, quebra o silêncio. Um som baixo, cínico. Eu não rio. Nem me movo.
Esse tipo de desespero tem valor. Não o da proposta — ainda — mas o de saber até onde um homem vai pra continuar respirando. Há meses estou limpando os porcos do sistema. Herdar os negócios da Famiglia significou assumir a parte mais suja e mais verdadeira da vida. E parte do meu trabalho é separar o lixo reciclável do que vai direto pro fogo.
— Você sabe quanto deve?
Ele hesita, tenta parecer lúcido.
— Eu… perdi a conta.
— O suficiente pra justificar sua morte. — dou um passo à frente. — Você usou o nome Morelli pra se endividar. E não pagou. Isso não é só burrice. É crime.
Ele balbucia algo, e depois repete:
— Eu posso pagar… com ela.
Me aproximo devagar. O cheiro do medo dele é quase doce.
— O que você acha que é isso aqui? Um leilão? Um puteiro? — murmuro, firme, sentindo a tensão se espalhar pelo cômodo. — Acha que pode me convencer com carne?
— Ela é útil! — ele explode, a voz embargada. — É quase formada, vai trabalhar com mentes. Pode ajudar vocês. Analisar, interrogar, sei lá… só me dá uma chance! E acima de tudo sei que ela é virgem!
Fico em silêncio por alguns segundos. Meus olhos vasculham os dele. É real. Ele tá mesmo oferecendo a irmã como escudo humano. É nojento. É desesperado. E, por um breve segundo… é intrigante.
— Nome.
— Alina. Alina Ribeiro.
Alina.
O nome paira no ar como uma promessa não dita.
— Ela sabe o que anda fazendo?
— Não…
Claro que não. As melhores moedas de troca nunca sabem que estão sendo leiloadas.
— E como pretende entregá-la? — pergunto, voltando pra minha cadeira. Me sento devagar, observando o corpo à minha frente tremer. — Vai amarrá-la como eu fiz com você? Ou vai trazer com laço de fita?
— Ela confia em mim. Eu posso levá-la pra onde quiser. Eu invento uma desculpa. Proposta de emprego, viagem… qualquer coisa. Só me dá tempo.
Ele parece sincero. Mas homens desesperados são bons mentirosos.
— Você sabe o que acontece com quem trai, não sabe?
Ele assente.
— E com quem nos deve?
Outro aceno.
— E com quem vende a própria irmã?
Dessa vez, demora. Quando responde, é quase um sussurro:
— Eu prefiro o ódio dela… do que morrer aqui.
Cínico. Covarde. Mas honesto.
Observo-o em silêncio. Me levanto e começo a andar em círculos ao redor da cadeira. Sinto o peso da escolha que ele me atira como se fosse solução. Eu devia mandar matá-lo agora. Só pra manter a ordem. Mas esse nome… Alina… tem um som que não sai da cabeça.
— Vou considerar sua oferta. — digo por fim, parando atrás dele. — Mas se ela der trabalho… você vai implorar pela morte. E eu vou negar.
Ele balança a cabeça freneticamente. As lágrimas misturam com o sangue.
— Ela não vai. Eu prometo.
— Você sabe que ela nunca mais vai ser livre, certo?
— Sim.
— E que se for tão valiosa quanto você promete… talvez eu não solte ela nunca?
Ele hesita. Treme. Depois, diz:
— Melhor do que morrer.
Melhor do que morrer… Quantas escolhas na minha vida foram feitas com base nesse princípio?
— Vá pra casa — ordeno. — Traga Alina até mim em sete dias. Saudável. Sem feridas. Sem desconfiança. Se ela souber de algo… se fugir… se você mentir pra mim…
Não preciso terminar.
Ele entendeu.
Horas depois, quando o carro dele desaparece na curva da estrada, me sento novamente. As luzes do galpão piscam. O silêncio volta a reinar, pesado.
Alina Ribeiro.
Bonita? Talvez. Que diferença faria?
O que me intriga é a coragem do irmão. Ou a covardia. Ele entregaria um pedaço do próprio sangue pra não morrer. Isso diz muito sobre ele. Mas diz ainda mais sobre ela.
Que tipo de mulher foi criada ao lado de um homem assim?
 Será que ela é o oposto?  Será que vai se dobrar, ou resistir?Respiro fundo. Um nome nunca teve tanto peso. E, ainda assim, tudo em mim me diz que essa mulher vai trazer mais do que ele prometeu.
Mas uma coisa é certa:
Quando Alina Ribeiro cruzar a minha porta… não sai mais sai.
A chuva descia em fios finos e constantes, transformando as ruas em espelhos d’água. O som dos meus saltos ecoava na calçada molhada, ritmado e tenso, como se acompanhasse o bater acelerado do meu coração. O capuz do casaco mal protegia meu rosto do vento cortante, e eu apertava a bolsa contra o peito, buscando algum conforto no calor inútil do tecido fino. Atrasada. De novo. Claro.— Droga de plantão extra… — resmunguei, apressando o passo.Naquela sexta-feira à noite, tudo o que eu queria era chegar em casa, tomar um banho escaldante e esquecer que existia faculdade, trabalho e boletos.Meu celular vibrou. Ignorei. Devia ser minha mãe me lembrando de trancar as portas, ou meu irmão querendo saber se eu chegaria tarde. Eu estava cansada demais para responder.Foi quando ouvi os passos.Lentos. Constantes. Precisos. Não apressados, não ruidosos. Mas suficientes para arrepiar cada pelo do meu corpo. Virei a cabeça rapidamente.Um homem caminhava alguns metros atrás. Terno escuro. Rosto
O silêncio era ensurdecedor.Mesmo com o crepitar suave da lareira, com o tic-tac de um relógio antigo em algum lugar da sala, o silêncio pesava mais do que qualquer som alto. Ele se infiltrava pelos poros, se alojava nos ossos, fazia a mente gritar.E eu? Eu estava congelada.Minhas mãos, ainda atadas, formigavam com a má circulação. Meu pescoço doía. Meus joelhos, ainda arranhados da queda na rua, pulsavam em protesto. Mas nada doía mais do que a ausência de controle. A certeza de que eu não sabia onde estava. Que ele — aquele homem — sabia tudo sobre mim.E eu, nada sobre ele.Dante Morelli. Esse era o nome que ouvi murmurado entre os seguranças. Sussurrado como se fosse pecado pronunciá-lo em voz alta.Dante. O diabo de terno.Meu olhar vasculhou o quarto semiescuro, ainda que minhas pernas tremessem demais para me levantar. Era um cômodo grande, amplo demais. As janelas estavam cobertas por grossas cortinas vinho. Havia uma cama imensa em um dos cantos, arrumada como se ninguém j
Acordei com um sobressalto, o peito arfando, o coração ainda preso à escuridão do pesadelo. Mas aquilo não era um sonho. Era real. O quarto estranho. O teto alto de madeira escura. O cheiro de tabaco, couro e fumaça. As cortinas grossas bloqueando qualquer luz natural. O calor da lareira ainda acesa lambendo o ar com estalos suaves.Sentei-me devagar, os lençóis de algodão deslizando pela minha pele. Estava usando uma camisola de seda preta. Não era minha. E isso foi suficiente para meu estômago se revirar. Alguém me havia despido. Alguém havia tocado meu corpo inconsciente. Um arrepio de pavor me percorreu inteira.Levantei tão rápido quanto consegui, ignorando a fraqueza nas pernas. A cama era enorme, com dossel ornamentado e travesseiros bordados. Luxuosa. O chão de madeira rangia sob meus pés descalços enquanto eu atravessava o quarto até a porta. Girei a maçaneta com força. Trancada.— ALGUÉM AÍ?! — gritei, socando a madeira. — ME TIREM DAQUI!Silêncio.Meu corpo tremia, uma mist
A luz filtrava-se pelas frestas das cortinas pesadas quando o abrir de porta me despertou. Ainda tonta pelo sono entrecortado e pelos sonhos confusos que me assombraram durante a madrugada, sentei-me lentamente na cama. O calor da lareira já não aquecia o quarto como antes, e meus pés tocaram o chão frio com um leve arrepio. Diante da cama estava a mulher de meia-idade de antes, carregando uma bandeja de prata com café da manhã. Usava um vestido preto simples, avental branco e um coque firme no alto da cabeça. Mantinha as feições sérias, mas olhos gentis. A governanta.— Bom dia, senhorita Ribeiro — disse ela, com um leve aceno de cabeça. — O senhor Morelli pediu que lhe fosse servido o desjejum.Eu pisquei, surpresa. Sentia-me ainda enredada nas memórias da noite anterior — a tensão do jantar, o piano, o calor da presença dele. Meu coração ainda carregava ecos dos sussurros perigosos de Dante. Mas, no presente, era apenas a mulher diante de mim, oferecendo croissants quentes, ge