A chuva descia em fios finos e constantes, transformando as ruas em espelhos d’água. O som dos meus saltos ecoava na calçada molhada, ritmado e tenso, como se acompanhasse o bater acelerado do meu coração. O capuz do casaco mal protegia meu rosto do vento cortante, e eu apertava a bolsa contra o peito, buscando algum conforto no calor inútil do tecido fino. Atrasada. De novo. Claro.
— Droga de plantão extra… — resmunguei, apressando o passo.
Naquela sexta-feira à noite, tudo o que eu queria era chegar em casa, tomar um banho escaldante e esquecer que existia faculdade, trabalho e boletos.
Meu celular vibrou. Ignorei. Devia ser minha mãe me lembrando de trancar as portas, ou meu irmão querendo saber se eu chegaria tarde. Eu estava cansada demais para responder.
Foi quando ouvi os passos.
Lentos. Constantes. Precisos. Não apressados, não ruidosos. Mas suficientes para arrepiar cada pelo do meu corpo. Virei a cabeça rapidamente.
Um homem caminhava alguns metros atrás. Terno escuro. Rosto escondido sob a aba de um chapéu preto. Não era comum ver alguém assim por aqui. Não nesse bairro, não nesse horário.
Tentei ignorar. Coincidência, pensei. Mas meu corpo não acreditou.
Acelerei. Ele também.
Meu coração começou a martelar com força. Apertei ainda mais a bolsa contra o corpo e atravessei a rua sem olhar. A calçada do outro lado era irregular, cheia de buracos. Um dos meus saltos ficou preso.
Tropecei. Caí de joelhos.
— Merda… — sussurrei, tentando me levantar.
— Alina Ribeiro? — a voz surgiu como um trovão abafado bem atrás de mim.
Me virei, o susto me cortando o ar. Não tive tempo de ver seu rosto. Algo frio e úmido cobriu minha boca e nariz.
Clorofórmio.
Lutei. Me debati. Mas o mundo escureceu antes que eu pudesse gritar.
Acordei com a cabeça latejando, como se alguém tivesse batido nela com um pedaço de ferro. A boca seca. A garganta arranhando. As mãos presas atrás das costas. Uma venda pressionando meus olhos. Não conseguia ver. Não conseguia me mexer direito.
Meu coração disparou.
— Ela acordou — ouvi uma voz masculina, nervosa, próxima.
— Saia. — Outra voz respondeu. Grave. Fria. Autoritária.
Passos. Portas. Silêncio.
Meu peito arfava, a respiração saía entrecortada. Um pânico primitivo começou a me consumir. Tentei gritar, mas percebi a fita sobre minha boca. Fita grossa, firme. Meus olhos lacrimejaram sob a venda.
Dedos tocaram minha testa. Gelados. Cuidadosos. A venda foi retirada.
A luz do ambiente me cegou por alguns segundos. Pisquei até conseguir focar na figura diante de mim.
Alto. Imponente. Ombros largos sob um casaco escuro de lã. Barba cerrada. Olhos de um preto tão profundo que pareciam sugar tudo ao redor.
— Tire a fita. — Sua voz era um comando.
Alguém obedeceu. A fita foi arrancada da minha boca de forma abrupta. Gemi com a dor.
— O que… o que você quer?
Ele não respondeu de imediato. Apenas me olhava como se eu fosse um quebra-cabeça que ele já conhecia, mas queria montar mesmo assim.
Então se agachou na minha frente.
— Você é a irmã do Adam, estou certo?
Travei.
— Sim... Eu sou...?
Ele inclinou a cabeça, os olhos analisando cada detalhe da minha reação.
— É. Eu sei disso — Se levantou, caminhando em direção à lareira que aquecia o cômodo imenso.
Senti o estômago revirar.
— Não faço ideia do que está acontecendo — Engoli em seco.
— Só precisa saber que está aqui por causa do seu irmão. — Seus olhos cravaram nos meus.
— Isso é doentio! — cuspi, tentando me levantar, mas caí de lado. O chão estava frio. O orgulho, ainda mais.
Ele não reagiu. Apenas me observava, como se esperasse algo.
— Você foi escolhida — disse ele, por fim.
— Escolhida pra quê? Pra morrer? — cuspi as palavras.
— Para servir de exemplo que tudo tem consequência.
— Eu sou apenas uma estudante! — gritei. — Eu não tenho nada a oferecer! Nada que valha o risco de um sequestro!
Ele se aproximou. Cada passo dele parecia pesar toneladas no assoalho. Parou à minha frente. Tão perto que eu podia sentir seu cheiro: sândalo, fumaça e algo escuro, como madeira queimada.
— Você tem algo, sim — ele murmurou, a voz rouca. — E isto de alguma forma pode ser útil, assim foi o que seu irmão Adam disse.
O gelo percorreu minha espinha. Meu coração batia tão alto que eu podia ouvi-lo. E mesmo assim, algo dentro de mim, algo quebrado, curioso e confuso… queimou.
— O que meu irmão tem haver com isso? — minha voz saiu baixa, quase rouca.
Ele sorriu. Um canto da boca apenas. Um sorriso cruel, calculado.
— Seu irmão te vendeu por algumas fichas de pôquer e uma dívida que não valia metade do que você vale — Seus olhos deslizaram até minha boca. — Agora talvez eu tenha outros planos pra você.
Senti meu corpo estremecer. De raiva. De medo. De… não. Não era desejo. Eu me recusei a chamar de desejo.
E mesmo assim, meu corpo respondeu. Meu pescoço arrepiou. Meu ventre contraiu.
— Você é um monstro — murmurei, com os dentes cerrados.
— Sou. — Ele se afastou, caminhando até uma mesa onde repousava uma taça de conhaque. — E monstros não soltam suas presas. Eles as estudam. Moldam. Dominam.
As palavras ficaram no ar como veneno.
Ali, sentada no chão de madeira de uma mansão no meio do nada, com os pulsos presos e os olhos dele sobre mim, eu entendi:
A impressão que tinha naquele momento era que a vida que eu conhecia… tinha acabado.
E o pior?
Uma parte sombria de mim queria ver até onde aquele abismo podia me levar.
O silêncio era ensurdecedor.Mesmo com o crepitar suave da lareira, com o tic-tac de um relógio antigo em algum lugar da sala, o silêncio pesava mais do que qualquer som alto. Ele se infiltrava pelos poros, se alojava nos ossos, fazia a mente gritar.E eu? Eu estava congelada.Minhas mãos, ainda atadas, formigavam com a má circulação. Meu pescoço doía. Meus joelhos, ainda arranhados da queda na rua, pulsavam em protesto. Mas nada doía mais do que a ausência de controle. A certeza de que eu não sabia onde estava. Que ele — aquele homem — sabia tudo sobre mim.E eu, nada sobre ele.Dante Morelli. Esse era o nome que ouvi murmurado entre os seguranças. Sussurrado como se fosse pecado pronunciá-lo em voz alta.Dante. O diabo de terno.Meu olhar vasculhou o quarto semiescuro, ainda que minhas pernas tremessem demais para me levantar. Era um cômodo grande, amplo demais. As janelas estavam cobertas por grossas cortinas vinho. Havia uma cama imensa em um dos cantos, arrumada como se ninguém j
Acordei com um sobressalto, o peito arfando, o coração ainda preso à escuridão do pesadelo. Mas aquilo não era um sonho. Era real. O quarto estranho. O teto alto de madeira escura. O cheiro de tabaco, couro e fumaça. As cortinas grossas bloqueando qualquer luz natural. O calor da lareira ainda acesa lambendo o ar com estalos suaves.Sentei-me devagar, os lençóis de algodão deslizando pela minha pele. Estava usando uma camisola de seda preta. Não era minha. E isso foi suficiente para meu estômago se revirar. Alguém me havia despido. Alguém havia tocado meu corpo inconsciente. Um arrepio de pavor me percorreu inteira.Levantei tão rápido quanto consegui, ignorando a fraqueza nas pernas. A cama era enorme, com dossel ornamentado e travesseiros bordados. Luxuosa. O chão de madeira rangia sob meus pés descalços enquanto eu atravessava o quarto até a porta. Girei a maçaneta com força. Trancada.— ALGUÉM AÍ?! — gritei, socando a madeira. — ME TIREM DAQUI!Silêncio.Meu corpo tremia, uma mist
A luz filtrava-se pelas frestas das cortinas pesadas quando o abrir de porta me despertou. Ainda tonta pelo sono entrecortado e pelos sonhos confusos que me assombraram durante a madrugada, sentei-me lentamente na cama. O calor da lareira já não aquecia o quarto como antes, e meus pés tocaram o chão frio com um leve arrepio. Diante da cama estava a mulher de meia-idade de antes, carregando uma bandeja de prata com café da manhã. Usava um vestido preto simples, avental branco e um coque firme no alto da cabeça. Mantinha as feições sérias, mas olhos gentis. A governanta.— Bom dia, senhorita Ribeiro — disse ela, com um leve aceno de cabeça. — O senhor Morelli pediu que lhe fosse servido o desjejum.Eu pisquei, surpresa. Sentia-me ainda enredada nas memórias da noite anterior — a tensão do jantar, o piano, o calor da presença dele. Meu coração ainda carregava ecos dos sussurros perigosos de Dante. Mas, no presente, era apenas a mulher diante de mim, oferecendo croissants quentes, ge
Dante MorelliChove. Chove como se o céu estivesse tentando lavar essa cidade podre. Mas nada limpa o que já nasceu manchado.O galpão onde estou fede a ferrugem, óleo velho e medo. O tipo de medo que escorre em silêncio, que se impregna nas paredes. Já me acostumei com esse cheiro. Cresci dentro dele. Me tornei homem com as mãos sujas disso.O cara amarrado na cadeira — rosto inchado, boca sangrando, olhos arregalados — não parece ser o mesmo garoto promissor que estudou fora, cheio de diplomas e oportunidades. Um Ribeiro, me disseram. Rafael ou Adam, tanto faz. Só é mais um merda que achou que podia subir rápido apostando com dinheiro dos outros. Dinheiro meu.— Diga de novo. — minha voz sai baixa, firme. Não preciso gritar. Nunca precisei.O idiota à minha frente hesita. Eu vejo o terror no fundo dos olhos dele. Não é só medo da dor. É medo do fim. Da morte. Ele sabe que está com um pé na cova.— Eu tenho uma irmã — ele murmura, cuspindo sangue com as palavras. — Está qua