Acordei com um sobressalto, o peito arfando, o coração ainda preso à escuridão do pesadelo. Mas aquilo não era um sonho. Era real. O quarto estranho. O teto alto de madeira escura. O cheiro de tabaco, couro e fumaça. As cortinas grossas bloqueando qualquer luz natural. O calor da lareira ainda acesa lambendo o ar com estalos suaves.
Sentei-me devagar, os lençóis de algodão deslizando pela minha pele. Estava usando uma camisola de seda preta. Não era minha. E isso foi suficiente para meu estômago se revirar. Alguém me havia despido. Alguém havia tocado meu corpo inconsciente. Um arrepio de pavor me percorreu inteira.
Levantei tão rápido quanto consegui, ignorando a fraqueza nas pernas. A cama era enorme, com dossel ornamentado e travesseiros bordados. Luxuosa. O chão de madeira rangia sob meus pés descalços enquanto eu atravessava o quarto até a porta. Girei a maçaneta com força. Trancada.
— ALGUÉM AÍ?! — gritei, socando a madeira. — ME TIREM DAQUI!
Silêncio.
Meu corpo tremia, uma mistura de medo e adrenalina. Afastei-me da porta e comecei a examinar o ambiente. Um armário embutido com portas espelhadas. Uma penteadeira com perfumes e maquiagem. Um closet visivelmente caro. Sapatos alinhados por ordem de cor. Tudo muito organizado. Muito... planejado. Aquilo não era um cativeiro qualquer. Era uma jaula de ouro.
A maçaneta girou.
Recuei, o corpo em alerta. Ele entrou com passos calmos, quase elegantes. Dante Morelli. Sem o sobretudo escuro da noite anterior. Usava agora uma camisa preta de linho com os primeiros botões abertos, revelando a linha de pelos no peito. A luz do abajur desenhava sombras nas curvas de seus músculos. Um predador domesticado apenas na superfície.
— Está mais confortável agora? — ele perguntou, encostando-se à parede, os braços cruzados.
— O que você fez comigo? — minha voz falhou de leve. — Por que estou com essa roupa?
Ele ergueu uma sobrancelha.
— Você não parecia confortável de roupão. Pedi que cuidassem dos seus ferimentos e te colocassem para descansar. Achei que merecia algum conforto.
— Conforto? Você me sequestrou, seu psicopata! — avancei, os punhos cerrados. — Me tire daqui agora!
Ele não se moveu. Nem uma piscada.
— Você está aqui porque seu pai manchou o meu sangue. E agora, a sua presença reequilibra a balança.
— Ele morreu há anos! — cuspi. — Você está punindo uma garota inocente por algo que nem se lembra direito!
Ele se afastou da parede e, em três passos largos, estava diante de mim. Tão perto que senti o calor do corpo dele me engolir. Seu perfume era amadeirado, quente, e absurdamente masculino. Tentei não respirar.
— Inocente? — Ele inclinou a cabeça, como se me estudasse. — Talvez. Por enquanto.
— O que quer dizer com isso?
Ele não respondeu. Apenas deslizou os olhos lentamente pelo meu rosto, pelo meu pescoço, pelos ombros à mostra. Meu coração batia tão forte que doía.
— Você tem fogo nos olhos, Alina Ribeiro. Isso me intriga.
Afastei-me com um empurrão, mas ele segurou meu pulso com firmeza.
— Me solta!
— Não faça escândalo. Está perdendo a chance de tornar isso... suportável.
— Você fala como se isso fosse um contrato. Eu não assinei nada! — berrei, lutando contra ele. — Eu não sou sua propriedade!
Ele me soltou de repente. Dei dois passos para trás, o peito arfando. Ele me observava como se analisasse a reação de um animal selvagem capturado.
— Vista-se. Você jantará comigo esta noite.
— Não vou jantar com você.
— Vai. Porque eu mandei. E você ainda não entendeu o que acontece com quem me desafia.
— Me mate, então! — desafiei. — Vai ser mais rápido.
Ele caminhou até a porta, abrindo-a lentamente. Antes de sair, olhou por sobre o ombro, os olhos negros fixos nos meus.
— Você é corajosa, eu admito. Mas essa coragem vai se tornar submissão. Eventualmente. — E desapareceu.
Horas depois, depois de ter chorado em silêncio, gritado contra as paredes e tentado quebrar o vidro da janela sem sucesso, cedi. Tomei um banho demorado, tentando apagar da pele o cheiro de medo. Escolhi, contra minha vontade, um vestido preto justo, de alças finas e costas nuas. Minhas pernas tremiam quando saí do quarto.
Dois homens esperavam do lado de fora. Seguranças. Fortes. Armados. Um deles fez um gesto para que eu o seguisse. O outro permaneceu na porta. Me senti como uma princesa prisioneira escoltada em seu próprio castelo amaldiçoado.
Descemos escadas largas e atravessamos corredores silenciosos. Tudo na casa era exageradamente caro: quadros renascentistas, esculturas de mármore, tapetes persas. E, no centro do mundo, lá estava ele.
Dante. Sentado à cabeceira de uma longa mesa de jantar. Uma taça de vinho na mão. Me observando como se eu fosse o prato principal.
— Sente-se — ordenou, indicando a cadeira ao seu lado.
Eu sentei. Porque sabia que, naquele momento, era tudo o que eu podia fazer para sobreviver.
— Está mais bonita do que imaginei. — Ele girou o vinho na taça. — O preto combina com você.
— Estou aqui à força — respondi com frieza. — Não se esqueça disso.
— Não me esqueço de nada, Alina.
O jantar foi servido por empregados silenciosos. Havia caviar, salmão defumado, purê de batatas trufado. Coisas que eu nunca teria dinheiro para provar. Comi pouco. Meu estômago parecia um nó apertado.
— Por quanto tempo vai me manter aqui? — perguntei, sem olhá-lo.
— O tempo necessário.
— Para quê? Para me humilhar ainda mais?
— Para fazer você entender que não existe liberdade sem consequência. — Ele pousou a taça. — E que o mundo é regido por dívidas de sangue.
— Isso é medieval — retruquei. — Doente.
— Talvez. Mas também é verdade.
A tensão entre nós era como uma corda prestes a se romper. Ele me olhava como se quisesse arrancar minhas camadas uma a uma. E o mais insano? Parte de mim queria ver até onde ele iria.
Depois do jantar, Dante se levantou e caminhou até mim. Estendeu a mão. Não toquei. Ele apenas sorriu.
— Vem. Quero te mostrar uma coisa.
Segui-o, contra todo instinto. Passamos por uma biblioteca, por um salão de música. Até que ele abriu uma porta que dava para uma estufa de vidro. Lá fora, as tochas acesas iluminavam o jardim com um brilho dourado. Um piano de cauda branco repousava no centro.
— Você toca? — ele perguntou.
— Eu... não desde criança.
— Tente.
Sentei-me hesitante. Toquei algumas notas soltas. Ele se aproximou por trás, abaixando-se ao meu lado no banco. Sua coxa encostou na minha. Suas mãos grandes cobriram as minhas.
— Assim. — Sussurrou perto do meu ouvido. — Relaxe os dedos.
Tentei ignorar o calor subindo pelo meu pescoço.
— Você sempre sequestra garotas para ensinar piano? — provoquei.
Ele riu baixo.
— Só as especiais.
Sua mão deslizou da minha para meu braço. Devagar. Intencional. Senti meu corpo arrepiar inteiro. Meu coração descompassado.
— O que você quer de mim, Dante?
Ele virou meu rosto com dois dedos, com uma delicadeza perturbadora.
— Tudo. — respondeu. — Mas vou começar com sua obediência.
Nossos rostos estavam próximos demais. Bastava inclinar um centímetro. Mas eu me afastei, quebrando o contato. Senti vergonha da pulsação frenética entre minhas pernas. Da resposta involuntária do meu corpo ao toque de um homem que me mantinha cativa.
Ele respeitou o recuo. Se levantou e caminhou até a porta.
— Amanhã começamos suas lições. Quero ver até onde vai sua resistência.
— Vai me ensinar o quê? A me comportar como sua boneca?
Ele parou na porta, me lançando um olhar por sobre o ombro.
— Não. Quero ensinar você a se render sem que perceba. A me desejar, mesmo me odiando. — Seus olhos arderam. — Quero fazer você implorar para ficar.
 Um breve riso sarcástico escapa de mim.
— Nem nos seus melhores sonhos.
 Ele ergueu um dos cantos da boca em um sorriso, me observando por mais alguns instantes.
E então ele se foi, deixando-me sozinha com o som abafado do meu próprio coração, com o perfume dele no ar... e com a certeza cruel de que minha luta não era apenas para fugir daquele lugar.
Era para fugir de mim mesma.
A luz filtrava-se pelas frestas das cortinas pesadas quando o abrir de porta me despertou. Ainda tonta pelo sono entrecortado e pelos sonhos confusos que me assombraram durante a madrugada, sentei-me lentamente na cama. O calor da lareira já não aquecia o quarto como antes, e meus pés tocaram o chão frio com um leve arrepio. Diante da cama estava a mulher de meia-idade de antes, carregando uma bandeja de prata com café da manhã. Usava um vestido preto simples, avental branco e um coque firme no alto da cabeça. Mantinha as feições sérias, mas olhos gentis. A governanta.— Bom dia, senhorita Ribeiro — disse ela, com um leve aceno de cabeça. — O senhor Morelli pediu que lhe fosse servido o desjejum.Eu pisquei, surpresa. Sentia-me ainda enredada nas memórias da noite anterior — a tensão do jantar, o piano, o calor da presença dele. Meu coração ainda carregava ecos dos sussurros perigosos de Dante. Mas, no presente, era apenas a mulher diante de mim, oferecendo croissants quentes, ge
Dante MorelliChove. Chove como se o céu estivesse tentando lavar essa cidade podre. Mas nada limpa o que já nasceu manchado.O galpão onde estou fede a ferrugem, óleo velho e medo. O tipo de medo que escorre em silêncio, que se impregna nas paredes. Já me acostumei com esse cheiro. Cresci dentro dele. Me tornei homem com as mãos sujas disso.O cara amarrado na cadeira — rosto inchado, boca sangrando, olhos arregalados — não parece ser o mesmo garoto promissor que estudou fora, cheio de diplomas e oportunidades. Um Ribeiro, me disseram. Rafael ou Adam, tanto faz. Só é mais um merda que achou que podia subir rápido apostando com dinheiro dos outros. Dinheiro meu.— Diga de novo. — minha voz sai baixa, firme. Não preciso gritar. Nunca precisei.O idiota à minha frente hesita. Eu vejo o terror no fundo dos olhos dele. Não é só medo da dor. É medo do fim. Da morte. Ele sabe que está com um pé na cova.— Eu tenho uma irmã — ele murmura, cuspindo sangue com as palavras. — Está qua
A chuva descia em fios finos e constantes, transformando as ruas em espelhos d’água. O som dos meus saltos ecoava na calçada molhada, ritmado e tenso, como se acompanhasse o bater acelerado do meu coração. O capuz do casaco mal protegia meu rosto do vento cortante, e eu apertava a bolsa contra o peito, buscando algum conforto no calor inútil do tecido fino. Atrasada. De novo. Claro.— Droga de plantão extra… — resmunguei, apressando o passo.Naquela sexta-feira à noite, tudo o que eu queria era chegar em casa, tomar um banho escaldante e esquecer que existia faculdade, trabalho e boletos.Meu celular vibrou. Ignorei. Devia ser minha mãe me lembrando de trancar as portas, ou meu irmão querendo saber se eu chegaria tarde. Eu estava cansada demais para responder.Foi quando ouvi os passos.Lentos. Constantes. Precisos. Não apressados, não ruidosos. Mas suficientes para arrepiar cada pelo do meu corpo. Virei a cabeça rapidamente.Um homem caminhava alguns metros atrás. Terno escuro. Rosto
O silêncio era ensurdecedor.Mesmo com o crepitar suave da lareira, com o tic-tac de um relógio antigo em algum lugar da sala, o silêncio pesava mais do que qualquer som alto. Ele se infiltrava pelos poros, se alojava nos ossos, fazia a mente gritar.E eu? Eu estava congelada.Minhas mãos, ainda atadas, formigavam com a má circulação. Meu pescoço doía. Meus joelhos, ainda arranhados da queda na rua, pulsavam em protesto. Mas nada doía mais do que a ausência de controle. A certeza de que eu não sabia onde estava. Que ele — aquele homem — sabia tudo sobre mim.E eu, nada sobre ele.Dante Morelli. Esse era o nome que ouvi murmurado entre os seguranças. Sussurrado como se fosse pecado pronunciá-lo em voz alta.Dante. O diabo de terno.Meu olhar vasculhou o quarto semiescuro, ainda que minhas pernas tremessem demais para me levantar. Era um cômodo grande, amplo demais. As janelas estavam cobertas por grossas cortinas vinho. Havia uma cama imensa em um dos cantos, arrumada como se ninguém j