A luz filtrava-se pelas frestas das cortinas pesadas quando o abrir de porta me despertou. Ainda tonta pelo sono entrecortado e pelos sonhos confusos que me assombraram durante a madrugada, sentei-me lentamente na cama. O calor da lareira já não aquecia o quarto como antes, e meus pés tocaram o chão frio com um leve arrepio.
 Diante da cama estava a mulher de meia-idade de antes, carregando uma bandeja de prata com café da manhã. Usava um vestido preto simples, avental branco e um coque firme no alto da cabeça. Mantinha as feições sérias, mas olhos gentis. A governanta.
— Bom dia, senhorita Ribeiro — disse ela, com um leve aceno de cabeça. — O senhor Morelli pediu que lhe fosse servido o desjejum.
Eu pisquei, surpresa. Sentia-me ainda enredada nas memórias da noite anterior — a tensão do jantar, o piano, o calor da presença dele. Meu coração ainda carregava ecos dos sussurros perigosos de Dante. Mas, no presente, era apenas a mulher diante de mim, oferecendo croissants quentes, geleias caseiras e uma xícara fumegante de café.
— Obrigada... — murmurei, pegando a xícara.
Ela assentiu e arrumou os talheres com gestos metódicos.
— E também tenho que informá-la de que, a partir de hoje, a senhorita tem permissão para circular pela casa.
Meus olhos se arregalaram.
— Como assim? — perguntei, ainda sem entender.
— Todos os cômodos que estiverem com as portas destrancadas estão liberados para sua presença. O restante permanecerá inacessível por segurança. Mas dentro desses limites, está livre para se mover.
— E Dante... quero dizer, o senhor Morelli... ele está ciente disso? — questionei, ainda desconfiada.
— Essas foram ordens dele. — A mulher deu um pequeno sorriso, como se soubesse mais do que dizia. — Ele disse que seria... bom para a senhorita conhecer seu novo lar.
Novo lar.
As palavras pesaram como pedras no meu estômago. Não era meu lar. Nunca seria. E ainda assim, algo em mim — talvez a parte que já desistia de resistir tanto — queria sair daquele quarto. Ver algo além das quatro paredes que me sufocavam.
— Qual seu nome? — perguntei antes que ela saísse.
— Rosetta, senhorita.
Rosetta. Um nome delicado para alguém que parecia feita de ferro e sem compaixão alguma.
— Obrigada, Rosetta.
Ela assentiu, saiu em silêncio, e a maçaneta fez um leve clique ao fechar.
Comi lentamente. Não havia veneno no café, não havia algemas escondidas nos pães. Era apenas comida. Boa comida, inclusive. E aquilo só tornava tudo mais estranho. Porque quanto mais Dante me oferecia conforto, mais nítido ficava o contraste da prisão invisível que me envolvia.
Depois de tomar banho e vestir um suéter branco macio com uma calça justa, respirei fundo e abri a porta do quarto. O corredor estava vazio, iluminado por vitrais coloridos que pintavam o chão com luzes difusas. Meu coração batia acelerado. Como se a qualquer momento alguém fosse surgir e me arrastar de volta.
Mas ninguém veio.
Caminhei devagar, passando por quadros que pareciam custar mais do que minha vida inteira. As molduras douradas, os tapetes espessos, o silêncio solene. Aquela casa era um palácio de sombras. Imponente, rica, mas cheia de uma tensão latente. Como se cada parede guardasse segredos que eu não estava pronta para conhecer.
O primeiro cômodo destrancado que encontrei era uma pequena sala com lareira e sofás de couro. Não me detive. Segui até o próximo.
Foi ao passar por uma porta de madeira entalhada, aberta apenas o suficiente, que ouvi a lembrança das teclas do piano ecoarem em minha mente. Era o mesmo lugar da noite anterior. O piano branco ainda estava lá, reluzente sob a claridade do dia. As plantas altas nas laterais da estufa davam um toque etéreo ao ambiente. Mas eu não entrei. Não podia. Não ainda.
Continuei andando até que, ao virar o corredor à direita, vi algo que me fez parar.
A biblioteca.
A porta estava escancarada como se me convidasse a entrar. E, pela primeira vez desde que fui sequestrada, senti um impulso genuíno de atravessar aquele limite.
O lugar era... imenso. Estantes altíssimas que iam até o teto. Uma escada móvel corria de um lado ao outro, como em filmes antigos. O cheiro de couro, papel antigo e verniz tomou conta dos meus sentidos. Um aroma familiar, reconfortante. Como voltar no tempo.
A luz do sol atravessava as janelas altas com delicadeza, criando faixas douradas que iluminavam trechos aleatórios dos livros. Era um paraíso literário. E eu, filha de uma mãe professora e estudante voraz por vocação, me vi sorrindo pela primeira vez em dias.
— Meu Deus... — sussurrei, deslizando os dedos pela lombada de um volume de capa marrom. — Tem mais livros aqui do que na biblioteca da minha universidade.
Não era exagero.
Havia edições raras. Obras em latim. Livros de filosofia, arte, psicologia, literatura clássica. Traduções de poetas russos. Tratados sobre guerras antigas. Romances franceses. Eu me sentia uma criança em uma loja de brinquedos.
Afastei a escada com cuidado e subi dois degraus, puxando um volume de Dostoiévski. Abri na primeira página. O livro exalava o perfume agridoce do tempo. Sentei-me em uma poltrona próxima à janela e comecei a ler. Sem pressa. Sem medo, por alguns minutos. Como se o mundo lá fora não existisse. Como se eu não fosse uma prisioneira.
Li por tempo indeterminado. A paz silenciosa da biblioteca me envolveu como um abraço antigo. Era como se os livros sussurrassem: "Você ainda é você, Alina. Mesmo aqui. Mesmo agora."
As palavras se emaranhavam com meus pensamentos. Eu não conseguia evitar que a imagem dele — Dante — surgisse em minha mente. O modo como me observava. A intensidade dos seus olhos. O calor que seu corpo irradiava mesmo quando não me tocava. Era errado. Tóxico. E, ainda assim, estava ali, alojado em mim.
Fechei o livro com firmeza. Não podia me perder naquilo. Não podia permitir que essa casa dourada e esse homem enigmático me enredassem. Precisava manter minha sanidade, minha identidade. E talvez, apenas talvez, esses livros fossem minha arma silenciosa.
Levantei-me, escolhi mais dois volumes e os levei comigo até a poltrona. Enrosquei as pernas e voltei à leitura, tentando ignorar a palpitação incômoda no meu peito. Como se, a qualquer momento, ele pudesse entrar por aquela porta.
Mas ele não entrou.
E eu passei o resto da manhã ali, entre palavras, pensamentos e a luta silenciosa para lembrar quem eu era... antes dele.
Dante MorelliChove. Chove como se o céu estivesse tentando lavar essa cidade podre. Mas nada limpa o que já nasceu manchado.O galpão onde estou fede a ferrugem, óleo velho e medo. O tipo de medo que escorre em silêncio, que se impregna nas paredes. Já me acostumei com esse cheiro. Cresci dentro dele. Me tornei homem com as mãos sujas disso.O cara amarrado na cadeira — rosto inchado, boca sangrando, olhos arregalados — não parece ser o mesmo garoto promissor que estudou fora, cheio de diplomas e oportunidades. Um Ribeiro, me disseram. Rafael ou Adam, tanto faz. Só é mais um merda que achou que podia subir rápido apostando com dinheiro dos outros. Dinheiro meu.— Diga de novo. — minha voz sai baixa, firme. Não preciso gritar. Nunca precisei.O idiota à minha frente hesita. Eu vejo o terror no fundo dos olhos dele. Não é só medo da dor. É medo do fim. Da morte. Ele sabe que está com um pé na cova.— Eu tenho uma irmã — ele murmura, cuspindo sangue com as palavras. — Está qua
A chuva descia em fios finos e constantes, transformando as ruas em espelhos d’água. O som dos meus saltos ecoava na calçada molhada, ritmado e tenso, como se acompanhasse o bater acelerado do meu coração. O capuz do casaco mal protegia meu rosto do vento cortante, e eu apertava a bolsa contra o peito, buscando algum conforto no calor inútil do tecido fino. Atrasada. De novo. Claro.— Droga de plantão extra… — resmunguei, apressando o passo.Naquela sexta-feira à noite, tudo o que eu queria era chegar em casa, tomar um banho escaldante e esquecer que existia faculdade, trabalho e boletos.Meu celular vibrou. Ignorei. Devia ser minha mãe me lembrando de trancar as portas, ou meu irmão querendo saber se eu chegaria tarde. Eu estava cansada demais para responder.Foi quando ouvi os passos.Lentos. Constantes. Precisos. Não apressados, não ruidosos. Mas suficientes para arrepiar cada pelo do meu corpo. Virei a cabeça rapidamente.Um homem caminhava alguns metros atrás. Terno escuro. Rosto
O silêncio era ensurdecedor.Mesmo com o crepitar suave da lareira, com o tic-tac de um relógio antigo em algum lugar da sala, o silêncio pesava mais do que qualquer som alto. Ele se infiltrava pelos poros, se alojava nos ossos, fazia a mente gritar.E eu? Eu estava congelada.Minhas mãos, ainda atadas, formigavam com a má circulação. Meu pescoço doía. Meus joelhos, ainda arranhados da queda na rua, pulsavam em protesto. Mas nada doía mais do que a ausência de controle. A certeza de que eu não sabia onde estava. Que ele — aquele homem — sabia tudo sobre mim.E eu, nada sobre ele.Dante Morelli. Esse era o nome que ouvi murmurado entre os seguranças. Sussurrado como se fosse pecado pronunciá-lo em voz alta.Dante. O diabo de terno.Meu olhar vasculhou o quarto semiescuro, ainda que minhas pernas tremessem demais para me levantar. Era um cômodo grande, amplo demais. As janelas estavam cobertas por grossas cortinas vinho. Havia uma cama imensa em um dos cantos, arrumada como se ninguém j
Acordei com um sobressalto, o peito arfando, o coração ainda preso à escuridão do pesadelo. Mas aquilo não era um sonho. Era real. O quarto estranho. O teto alto de madeira escura. O cheiro de tabaco, couro e fumaça. As cortinas grossas bloqueando qualquer luz natural. O calor da lareira ainda acesa lambendo o ar com estalos suaves.Sentei-me devagar, os lençóis de algodão deslizando pela minha pele. Estava usando uma camisola de seda preta. Não era minha. E isso foi suficiente para meu estômago se revirar. Alguém me havia despido. Alguém havia tocado meu corpo inconsciente. Um arrepio de pavor me percorreu inteira.Levantei tão rápido quanto consegui, ignorando a fraqueza nas pernas. A cama era enorme, com dossel ornamentado e travesseiros bordados. Luxuosa. O chão de madeira rangia sob meus pés descalços enquanto eu atravessava o quarto até a porta. Girei a maçaneta com força. Trancada.— ALGUÉM AÍ?! — gritei, socando a madeira. — ME TIREM DAQUI!Silêncio.Meu corpo tremia, uma mist