3- Não nos distanciamos.

Após ter dirigido por cinco horas, Mickey havia finalmente chegado a casa. Cansado, estacionou o carro em frente a sua residência e se arrastou pela pequeno caminho ladrilhado até sua porta.

Em um movimento preciso e decidido, passou a chave na porta sendo invadido pelo característico cheiro a nada. Sua casa sempre cheirava assim quando ele não estava, porque não havia mais ninguém lá para fazer cheirar a queimado, frango assado ou perfume doce cativante. Apenas ele e as paredes.

Só havia saído da cidade em que vivia para visitar sua filha no outro extremo do país, e como não haviam vôos para lá aquele final de semana, ele foi no próprio carro. Havia prometido para Alice e não falharia com a palavra.

Mas ainda assim, estava moído de tanto cansaço.Queria apenas se deitar em sua cama, esquecer que existia alguma outra coisa para além do sono, e talvez, só talvez mesmo faltar ao trabalho pela manhã.

E qual não foi sua surpresa ao ver a ruiva em sua sala, pés cruzados e olhos atentos no conjunto de papel em sua mãos.

- Karen! -Chamou a moça que estava entretida lendo uma revista de decoração. Virou a cabeça em direcção ao chamado, e sorriu aberto se levantando.

- Mickey! - Pulou alegre em seu pescoço, lhe envolvendo num abraço. - Como foi a viagem? - Perguntou colocando as mãos sobre os ombros largos do amigo.

- Boa. - Respondeu. Notou o cabelo cacheado preso em um coque, a boca pequena livre de qualquer batom e o rosto limpo contra qualquer mancha. - O que está fazendo aqui? - Perguntou não entendo porque ela estaria em sua casa quando ele não estava lá.

- Isaac me disse que não estava se alimentando bem... Então eu vim encher sua despensa. - Contou satisfeita dando de ombros. O moreno arqueou uma sobrancelha. Não estava se alimentando bem?

E isso porque o amigo havia encontrado sua geladeira vazia outro dia. Era falta de tempo para fazer compras ele havia explicado, mas como sempre Isaac escolheu ser exagerado.

Revirou os olhos e bufou irritado.

- Como entrou? - Isso era o mais curioso para ele. Não haviam sinais de arrombamento na porta e sua chave abriu facilmente, então não entendia como ela havia entrado.

- Mickey, você só finge ou realmente não sabe que tenho uma cópia da sua chave? - Agora Karen estava surpresa. Já havia deixado claro que poderia entrar e sair da casa dele quando quisesse, embora nunca o fisesse é claro, então esperava que ele tivesse compreendido.

- Achei que estivesse brincando. - Mickey disse acompanhado-a com os olhos pegar a bolsa por cima da mesa de centro.

- Já vi você e já abasteci sua dispença, então nos vemos amanhã. - A ruiva deu um tapinha em seu ombro se despedindo.

- Você está aqui, Isaac está viajando, com quem deixou a Amara e o Diego? - Perguntou confuso. Pelo que ele sabia os amigos haviam dispensado a babá nos finais de semana e nos feriados.

- Com o tio. - A moça deu de ombros colocando neles a alça da pasta.

- Lisandro está na cidade? - Mickey perguntou ainda mais confuso.

- Está. - A Karen respondeu.

- O que ele está fazendo aqui? - Perguntou curioso. Lisandro era irmão mais velho de Isaac, um biólogo marinho que vivia viajando de oceano a oceano fazendo o melhor que podia pelos animais, e também já foi seu cliente em um caso de acusação de assédio.

Sua assistente era a acusadora. Ele teria perdido o cargo, o projeto novo e a reputação, mas o moreno era bom no que fazia, então deu um jeito e provou a inocência lhe livrando de qualquer acusação. Não eram amigos, mas havia respeito demais entre os dois para não se darem bem.

- Como assim o que ele está fazendo aqui, ele tem uma cunhada, sobrinhos e um irmão por aqui. Não é motivo suficiente? - Karen rebateu emburrando a bochecha esquerda.

- Hm. - Balbuciou o Percival. Karen odiava quando ele entrava na vibe monossilábica e suas respostas se baseavam em sons quase inaudíveis. Mas não disse nada contra aquilo.

- Aproveitando que estou aqui, falou com seu avô durante o fim de semana. Ele parecia preocupado na sexta. - Karen comentou preocupada.

- Eu estava lá na sexta, não vi nada. - Mickey disse se apoiando no sofá. Tinha planos de só ir dormir, mas lá estava ele conversando com sua amiga maluquinha.

- Você saiu cedo Mickey, não viu as coisas depois...- Karen lembrou cruzando os braços na altura do peito.

- Meu avó está bem. - Garantiu relaxado.

- Tem certeza? - Karen perguntou. Alexandre era um senhor de idade já, que administrava com maestria sua firma de advogados e a única coisa que queria era o bem estar da família e que seu filho e neto administrassem um dia a firma que construíu durante a vida.

- Sim. - Garantiu novamente. Karen o olhou feio esperando por mais explicações. - Falei com ele quando acordei, ele se chateou com o Angel naquele dia. - Explicou.

- O Senhor Alexandre é tão incrível e amável, doce e prestativo... Já o seu pai. - Karen bufou irritada. Mickey riu quando ela revirou os olhos fechando a cara. - Por que ele é assim? - Se perguntou. Angel não era ruim, mas também não era bom. Ele era apenas uma pessoa difícil que vivia pela família e para ser feliz.

- Não sei. - Mickey deu ombros, conhecia tão bem seu pai para saber que ele era assim mesmo, um senhor de 51 anos com a energia de um jovem de 21, cabelo escuro e olhos que pareciam enxergar até a alma, cujo os negócios paralelos apesar de prósperos e legais, ele não entendia do que se tratava.

Ele havia se formado em Direito como o pai, porque era sua maior paixão, mas fazia uns dois anos que não exercia e agora não tinha qualquer interesse na firma da família. Na verdade ele havia se decepcionada com a lei, pela forma como uma assassina havia conseguido sair em liberdade... A lei não era perfeita ele admitia, o advogado da contra parte era bom, ele também admitia. Mas não que ela tivesse uma tornozeleira e pudesse andar por aí tranquila enquanto uma filha ficou órfã e corações quebrados, isso ele não admitia.

E no fundo Mickey sabia que era porque ele havia se envolvido de forma pessoal naquele caso, jurou justiça para aquela mulher assassinada, para depois não conseguir nada. Mesmo que não dissesse, o moreno entendia a raiva e decepção de seu pai.

- Encontrei seu computador ligado á corrente e conectado á internet... Vi que chegou um e-mail para você. Ontem de madrugada. - Contou Karen lhe trazendo de volta a realidade e ao lugar em que as coisas acontecem.

- De quem é? - Perguntou Mickey estranhado o acontecimento. Não que fosse estranho receber e-mails, mas ainda era estranho ser durante o fim de semana e mais ainda de madrugada.

- Não sei. Não abri. - Karen respondeu abanando a cabeça lentamente.

- E como sabe que chegou de madrugada? - Arqueando uma sobrancelha, ele questionou. Aquilo era suspeito.

- Olha aqui Percival, eu saí da minha casa cedo, deixei meus gêmeos com o tio deles e isso para quê? Para salvar meu amigo da fome eterna, e ainda salvei seu computador de explodir e esperei você chegar como prova do meu amor. Se eu abri ou não o seu e-mail, não é importante. - Karen reclamou levantando o dedo indicador. Um tom mais avermelhado tomou conta de sua face alva.

- Você abriu. - Mickey deduziu pela reação dela.

- Quase, você chegou antes. - Confessou a ruiva com certo desgosto. Mickey sorriu, se ergueu do apoio e então beijou sua testa de forma terna á fazendo corar. Não era nada muito grande, nem extraordinária, e talvez alguns considerassem invasivo. Mas ela sabia que na linguagem que ela aprendeu ser a do amigo, aquilo significava o quanto ela era querida, então era muito mais do que um obrigado ou um eu te amo.

Aquilo significava que ela era família.

E Karen amava ser parte da família dele.

- Depois que descansar eu abro. - Falou se referindo ao e-mail.

[...]

Athina havia dormido até bem perto do meio dia, já que foi apenas de madrugada em que fechou os olhos, despertando apenas com o toque insistente do seu telefone.

Deitada de bruços sobre a cama e de olhos ainda fechados, tateava a esmo em busca do aparelho naquele momento tão barulhento, e quando o encontrou trocou palavras com o ser do outro lado e em seguida desligou.

Se perguntou se estaria sonhando. Mas não estava.

Era Julian lhe ligando para saber se poderia aparecer em sua casa.

Coisa que a surpreendeu bastante. Ele não ligava a meses e agora queria fazer um visita... Mas ao menos era uma coisa boa.

Levantou apressada para se arrumar e receber o amigo.

Fez sua higiene bucal, tomou um banho frio para se recuperar da dor de cabeça causada pela garrafa de vinho que ingeriu sozinha, e em seguida correu para a cozinha para beber uma chicara de café bem forte a fim de despertar completamente.

Voltando para o quarto, ela subsistiu o hobby rosa por um vestido de alça branco com estampas amarelas soltinho, do tipo que é ótimo para caminhar ou ficar em casa se sentindo confortável. Nos pés colocou um sandália simples, a mesma que Heloise havia lhe ofertado. E o cabelo preto prendeu em um coque frouxo no topo da cabeça. Alguns fios cobriam sua testa.

Estava pronta para receber alguém ou até mesmo sair se necessário, agora só precisava ver se sua casa também estava.

Tudo estava limpo, tanto na sala quanto na cozinha ela confirmou quando voltou para lá. A única coisa fora do normal era o e-mail estampado no monitor do computador, que ela havia escrito e enviando para os vizinhos.

Mesmo que tivesse bebido muito, não se lembrava da sensação de embriaguez na noite anterior, mas com certeza estava bêbada. Essa era a única explicação para o que havia feito.

Fechou o computador apressadamente.

Bateu na própria testa.

Uma.

Duas.

Três vezes.

Seu rosto enrusbeceu com a vergonha que sentiu e quase se xingou mentalmente, mas se lembrou de não proferir barbaridades contra sua pessoa então calou seus pensamentos desordenados, não esquecendo claro, de se sentir envergonhada. Mas não ficou por muito tempo se envergonhando de si mesma, Julian já havia chegado.

- Seja bem vindo. - Disse lhe concedendo passagem para sua casa. O moreno usava uma camisola de algodão vermelha e uma calça moletom preta, nos seus pés figurava tênis vermelhos, porém discretos. Seus olhos pequenos e castanhos notaram.

- Obrigado Hina. - Disse o Idalgo parando em sua frente. Em seguida a surpreendeu com um abraço apertado. - Senti saudades. - Admitiu ganhado um sorriso contido da amiga.

- Eu também. - Falou tímida se sentindo querida. Só os amigos a chamavam assim e só eles ocupavam o lugar de carinho e destaque reservado aos familiares em seu coração. Era uma coisa tão bonita, um grupo de amigos que se conheciam desde a infância, que compartilhavam tanta coisa e que apesar de todos os sobe e desce da vida, ainda podiam se considerar família um do outro.

- Hina, eu sei que foi você que enviou aquele e-mail ontem de madrugada. - Julian começou por dizer depois que segurando suas mãos lhe guiou até o sofá.

- E-mail, que e-mail? - Tentou disfarçar nervosa. Suas mãos tremiam pela mentira e seus olhos fincados nas cortinas amarelas e laranja que cobriam suas janelas tentavam fugir dali.

- Athina não minta, eu sei que foi você. - Rebateu o professor. Envergonhada Athina abaixou a cara, no momento ela nem se lembrou que Julian também era seu vizinho e que saberia que dela se tratava, se ao menos tivesse pensado... - Não fique envergonhada, eu que deveria me sentir assim. - Garantiu o moreno.

- Estava bêbada. - Tentou se justificar antes de perceber o que o amigo havia dito por último. - Por que se sentiria envergonhada? - Perguntou confusa.

- Hina, crescemos juntos. E agora eu a trato como se nunca tivéssemos nos conhecido, fazendo você desabafar para estranhos, então a maior vergonha é minha por não ter estado aqui para você - Julian segurou suas mãos delicadas lhe transmitindo força e carinho.

- Ju eu entendo, você tem seu trabalho e...

- Não Hina, não foi apenas por conta do meu trabalho que me afastei. E isso nem poderia ser uma desculpa. - Julian a interrompeu tomando a palavra.

- Não? - Athina se sentiu perdida em relação aquilo. Não só porque agora já não tinha uma explicação para o "abandono", mas também porque se sentia magoada.

- Depois que meu irmão morreu, eu comecei a me afastar gradualmente de todos com quem havia crescido. É estúpido eu sei, mas eu a achei que se não amasse mais vocês, e não visse, não me lembraria tanto dele e não sofreria se vos perdesse também. Mas ontem eu percebi o quanto estava enganado. - Confessou. A veterinária estava surpresa pelo motivo do afastamento e ainda mais por ele estar falando de Davi. Ele não falava do irmão desde a morte dele a quatro anos.

E a verdade é que ele parecia bem, ela nunca notou qualquer coisa estranha. Mas entendeu que não foi muito boa amiga também, percebeu que era fácil perceber os próprios problemas e se entristecer, mas que era muito difícil ver o dos outros e os abraçar.

Ela ficou triste por ele, que não tivesse estado ali para ele nos seus momentos ruins.

- Eu não sabia que você estava sofrendo tanto assim, e me sinto tão mal por não ter percebido. Eu deveria ter sido mais prestativa para você, deveria ter percebido quando parou de aparecer nos nossos encontros, deveria ter percebido que não era só falta de tempo quando mal falávamos. Não deveria ter mergulhado tanto em mim, ter sido tão egoísta... Eu sinto muito Ju. - Athina pediu chorando. Seu coração estava despedaçado e agora ela se sentia ainda mais péssima amiga.

- Não fique triste, não chore. - Julian pediu limpando seu rosto dos traços da dor.- Hina, eu nunca mais vou ser o mesmo de anos atrás, mas eu prometo a você que eu nunca mais vou deixar você sozinha. Pode contar comigo para o que precisar, você sabe, eu só tenho os meus alunos para alegrar os meus dias, então sempre vou ter um tempo para você. Me ligue se precisar, vá até minha casa me atazanar, vamos voltar aos nossos velhos hábitos - Garantiu o Idalgo.

Athina assentiu ansiosa. Era tão bom ter o amigo por perto, ter ele de volta. Saber que voltariam a ser o que eram.

Agora não um quinteto animado, mas um quarteto feliz e pronto para suportar uns aos outros. Ela sorriu, estava feliz, daquela loucura toda da noite passada, ao menos uma coisa boa havia surgido.

Seu amigo, Julian Idalgo estava em sua sala lhe abraçando e não sentia mais como se alguma vez tivessem se distanciado.

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