Você e eu, nós somos como fogos de artificio explodindo no céu.
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Saindo do consultório a passos largos, e penso em rasgar a receita médica e jogá-la no latão de lixo mais próximo. Pensei isso da última vez também. E da penúltima. Sorrio forçadamente para a recepcionista, que me dá um tchauzinho com a mão enquanto fala ao telefone, e sigo até a saída, respirando o ar puro quando finalmente piso na calçada. Aqui fora ninguém me conhece, talvez ninguém nunca tenha me visto antes. Sou apenas mais um garoto comum, jeans, moletom preto e tênis surrado. Aqui fora, ninguém pode me julgar pelo o que há na minha cabeça, mas eu me sinto julgado ainda assim.
Enquanto caminho de volta para casa, relutando o máximo em apressar os passos, sabendo que tenho hora para voltar, imagino o que aconteceria se eu não voltasse. Papa-Léguas não sentiria minha falta, tudo o que ele quer de mim é o que sobra do almoço, e Joaquim ficaria feliz em poder, finalmente, dormir na minha cama, coisa que eu nunca o deixo fazer, já que sou alérgico a pelo de gatos. Magda talvez sentisse minha falta, mas ela superaria, assim como superou a perda de papai e de meu irmão. E mamãe... Bom, ela teria em quem se apoiar, ela é forte. De restante, ninguém mais importaria. Na verdade, não há mais ninguém. Talvez o pessoal da terapia, ou talvez não. Aqueles caras se importam mais em dar o fora daquele lugar do que com as pessoas que também o frequentam.
Eu poderia fazer isso, simplesmente acabar com tudo, com os gastos médicos, as preocupações e todo o resto. Seria um ser humano a menos engolindo oxigênio, daria menos trabalho às árvores e seria apenas mais um buraco cavado no chão. Em cinco anos, talvez não fosse mais lembrado. Qual seria a sensação? De sumir, eu digo, não de estar debaixo da terra. É uma sensação que eu já deveria ter experimentado, considerando tudo. Mas meu Criador deve ter um senso de humor terrível para me deixar viver quando eu já deveria estar morto. Rá, hilário.
- Ei, está tudo bem? – uma voz grave desperta-me de meus devaneios suicidas. Somente naquele instante, eu percebi onde estava. Parado no meio da calçada, atrapalhando a passagem dos pedestres e olhando para o céu, como que pedindo por algo. Se fosse uma pessoa religiosa, até poderia estar rezando para os céus ou para Deus, seja lá quem Ele ou Eles fossem.
Com os olhos lacrimejando, limpo a garganta e finalmente olho para o lado. Um rapaz de cabelos escuros, pele clara e uma ruga de preocupação na testa me encara.
- Ahn, sim. – percebendo sua descrença por conta de minha voz chorosa, repito. – Sim, está tudo bem. – tento forçar um sorriso, mas tudo o que sai é uma careta.
- Tem certeza? – ele pergunta, a sobrancelha direita erguendo-se suavemente.
Me sentindo encurralado, dou alguns passos para trás, esbarrando numa mulher que estava passando. Envergonhado pelo palavrão proferido por ela, olho para o chão antes de encarar o rapaz novamente.
- Claro, tudo certo. – forço um sorriso, andando para trás de costas novamente e pegando o caminho de casa.
Sinto uma mão puxando-me levemente pelo braço. Achei que ele já tivesse desistido. Era o que eu queria que ele fizesse... ou não?
- Quer beber algo? Conheço um bar aqui perto que é muito bom. – ele sorri, os dentes brilhantes e um pouco tortos na parte superior.
- Ahn, melhor não. – falo baixinho, e percebo seus ombros caindo, como que de desapontamento. Sinto-me mal no mesmo instante. – Eu não bebo. – reformulei.
- Não precisamos beber, que tal um sorvete? – o sorriso voltou, e, naquele instante, eu senti minhas bochechas esquentarem. Não sei se foram os remédios, ou a falta deles, mas, de repente, eu estava muito ansioso.
- Tudo bem. Claro.
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O nome dele era David, e estava no primeiro ano da faculdade de artes plásticas. Sonhava em visitar a Europa e fazer uma série de quadros sobre o continente, além de continuar o portfólio que já estava fazendo: retratos de pessoas.
- Que tipo de pessoas? – perguntei, bebericando meu milk-shake de morango com leite de amêndoas.
- Todo mundo. – vendo minha expressão de surpresa, ele completa – Qualquer um. Pobre, rico, negro, branco, criança, adulto. Qualquer um que permita. – ele abre a boca para continuar falando, mas para.
- Pode continuar. – digo sorrindo, sabendo que ele está louco para falar mais sobre seu trabalho.
- Pode parecer muito clichê, mas eu gosto de retratar a beleza, sabe? E, diferente do que muitos podem pensar, eu sei que ela está no rosto das pessoas, nos olhos, no sorriso, num arrumar de cabelo. – ele aponta para o gesto que eu estava prestes a fazer, e abaixo a mão no mesmo instante. – Eu sei que não vou fazer muita diferença para o mundo, sei que não vou conseguir a paz mundial ou salvar a vida de alguém... Mas posso pelo menos fazer um retrato, certo? – ele ri, envergonhado.
- Certo. – respondo, tentando esconder o sorriso.
- Ei, que tal eu fazer um seu? – ele parece animado, os olhos brilham de excitação, e, por um segundo, eu penso em recusar. – Não vai demorar muito, eu juro. E posso jogar fora se você não gostar!
Abro a boca para agradecer e dizer que é melhor não, e penso em desculpas que poderia inventar. Mas que mal faria? Eu já estava me sentindo para baixo mesmo, não custava nada ajudar quem já havia me ajudado, mesmo que este alguém nem mesmo soubesse disso. E ele mesmo tinha dito que jogaria fora se eu não gostasse. Não custaria nada, né?
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Somente quando chego em casa é que percebo que perdi a hora. Deveria ter pelo menos avisado que iria me atrasar. Encontro minha mãe no sofá, imóvel, o telefone na mão e os olhos fixos na parede encardida da sala de estar.
- Meu Deus! – ela praticamente grita quando me vê entrar, e corre para me abraçar. Sinto-me culpado no mesmo instante, deveria tê-la avisado! – Meu Deus! – ela repete, chorosa, as lágrimas correndo pelo rosto e os lábios tremendo. – Você demorou, pensei que... – minha mãe volta a chorar, desta vez, alto, e Magda aparece com Papa Léguas no colo.
- Ainda bem que você chegou. – ela também parece estar preocupada, e um tanto irritada. Larga o gato no sofá e se aproxima, querendo me abraçar. Por um minuto, eu não me movo. Meus braços continuam parados, retos, ao lado do corpo, e minha irmã nota.
- Mãe, por que não vai terminar a janta? – Magda pergunta suavemente, e minha mãe me olha, como que confirmando se estou realmente bem. Depois de terminar a inspeção ela sorri, me tasca um beijo na bochecha e vai para a cozinha, sendo seguida pelo gato. – O que aconteceu? – minha irmã me puxa para o sofá. – E não se faça de desentendido, você demorou, achamos que... – ela para de falar e engole em seco.
- Eu estou aqui agora. – sussurro, encarando o chão.
- Eu sei, mas achamos que não fosse estar. – ela engasga, e eu sinto a garganta queimar. Como pude pensar em deixá-la? Como pude sequer pensar que ela ficaria melhor sem mim, que ela estava melhor sem eles? Como?
- Eu estou bem agora, Magda. Já passou. – falo com o máximo de certeza possível, mas sei que ela não acredita em mim. Nem eu acredito.
Magda me puxa para seus braços novamente, e, desta vez, eu a abraço de volta. Ficamos assim por alguns segundos, até minha mãe gritar da cozinha, chamando-nos para comer.
- Me promete uma coisa? – Magda sussurra no meu pescoço. Antes que eu possa dizer algo, ela continua: - Me promete que, quando as coisas ficarem ruins novamente, vai falar com alguém? – me afasto e a encaro, seus olhos estão brilhantes, o nariz vermelho e os lábios trêmulos. – Não precisa nem ser comigo – minha irmã engasga, a voz falhando. – Pode ser qualquer um, mas só fale, ok? Não guarde tudo para si. Me promete?
Fico calado por alguns instantes, pensando no que aconteceu na última vez. Sei que não deveria pensar, todo mundo disse que não era bom ficar relembrando, mas às vezes eu simplesmente não consigo evitar. Decido que devo pelo menos tentar.
- Eu prometo. – sussurro para minha irmã, que sorri abertamente e me abraça forte, respirando fundo. Então nos levantamos e seguimos para a cozinha, onde minha mãe cantarola baixinho.
Com você, eu me sinto vivo, como se todas as peças perdidas do meu coração finalmente se unissem.O dia seguinte amanhece chuvoso, feio, cinza. E é assim que eu me sinto. Não consegui dormir muito, tomei minha dose ontem à noite e tive insônia. Joguei a nova receita fora, mas decidi manter a velha. Não quis ligar para o consultório e dizer que havia perdido, eles certamente duvidariam. Pelo menos, desta vez, não foram os tremores. Acordo cedo, e como não consigo mesmo dormir, decido me levantar logo. Assim que abro a porta do quarto, Joaquim tenta entrar, espremendo-se na fresta entre a porta e a parede. Empurro-o com o pé e tranco o quarto com um baque. O gato me olha feio e sai rebolando, descendo as escadas e saindo da casa. Metido.Respiro fundo e sigo até o banheiro, onde escovo os dentes, faço o que preciso fazer e
Então, pare o tempo aqui mesmo, à luz da luaPorque eu não quero nunca fechar meus olhosÀ noite, sinto-me melhor. Felizmente, não há efeitos colaterais da medicação, então estou disposto. Falar durante a reunião ajudou, mas é claro que eu não falei sobre a minha quase-crise suicida de ontem. Só disse olá e o meu nome. É o suficiente, por ora. Se tivesse mencionado o que acontecera (ou quase acontecera), provavelmente estaria dopado agora. Ou internado. Nem mesmo sei qual deles é pior. Apesar de ter mandado parte da angústia embora, a frustração continua presente, pois não consegui despejar tudo o que precisava. No fundo me sinto até culpado: todas aquelas pessoas estavam lá por algum motivo, todas têm os seus problemas, então quem sou eu pa
Sem você, eu me sinto quebrado, como se eu fosse a metade de um todoAntes...-Vamos rapaz, acorde. - a primeira voz murmura, próxima ao meu ouvido, mas eu não consigo me mover, por mais que tente.-Ai meu Deus, ai meu Deus, ai meu Deus! – uma outra voz, mais fina, fala alto do outro lado, soluçando.-Pelo amor de Deus, menino, acorde! Alguém chame uma ambulância! – uma terceira pessoa fala, gritando a última frase. Acredito que a voz pertença à pessoa que mantém minha cabeça fixa no chão, para que eu não tombe para os lados.- Ai meu Deus, ai meu Deus... – a voz irritante continua a gritar.- Cale a boca! – a primeira voz repreende, e após isso, escuto uma sirene ao longe. O som fica cada
Sem você, eu não tenho mão para segurarCorro para casa assim que guardo o celular no bolso, mas não sem antes olhar para trás, procurando por Marco. Ufa, nem sinal dele. O que foi aquilo? Quando foi que ele voltou a falar comigo? É claro que eu estou chateado por ter sido desta forma, humilhando-me e falando coisas horríveis, mas pelo menos ele consegue me olhar nos olhos. E falar coisas horríveis, mas consegue. Já é um primeiro passo. Que deprimente, estou levemente feliz porque alguém foi capaz de me olhar nos olhos e proferir coisas ruins a meu respeito.Ignoro meus pensamentos sobre Marco e aumento minha velocidade, ficando cada vez mais próximo de casa. Assim que viro a esquina, vejo uma figura parada na varada, olhando ao redor e parecendo procurar algo pelas janelas.Quando me aproximo, a figura me vê e caminha em minha direção.
Sem você, me sinto rasgadoTrinta minutos depois, David ainda me desenha, e eu começo a me sentir desconfortável. Não só por ele me olhar de tempos em tempos, mas porque meu braço está formigando, e estou dolorido por ficar na mesma posição por tanto tempo.- Não se mexa! – David murmura sem nem mesmo olhar para mim, os olhos concentrados no desenho. Segundos depois, ele finalmente me encara, mas logo volta a rabiscar. Sentindo-me uma criança que acabou de levar uma bronca, fico imóvel, ignorando a dormência irritante no braço. Isso não é tão divertido quanto parecia, penso, olhando para o teto, entediado.- Vai valer a pena quando eu terminar. – David fala, com um sorrisinho nos lábios. Arregalo os olhos, percebendo que, ou ele é realmente vidente ou algo do tipo, ou eu sou realmente péss
Sem você, eu sou apenas uma música triste. - Leo! Leo! – acordo de supetão, assustado, e com o pescoço doendo. – Você vai se atrasar para a reunião! – Magda me chacoalha com força – O que está fazendo? O que foi? – ela pergunta, sentando-se ao meu lado no sofá, preocupada. – O que aconteceu?- Nada. – sorrio fraquinho, tentando entender o por que de estar me sentindo desse jeito, e aceito de bom grado que minha irmã mexa nos meus cabelos. – Preciso de um banho – consigo falar.- Okay. Vou fazer os cookies para você levar então, só espero que dê tempo de ficarem bem assados. – ela murmura em meus cabelos antes de me dar um beijo. – Dou um jeito de estarem prontos quando você for sair.- Tudo bem. – respondo, levantando-me e subindo as esca
Com você eu caio, e é como se eu estivesse deixando todo o meu passado.- Leo? O que está fazendo dormindo aqui na sala? – mamãe me acorda pela manhã, ao chegar do trabalho. Está com uma aparência cansada, o rosto pálido e os olhos caídos, com olheiras enormes. Além de fazer pães e doces para vender aos vizinhos e conhecidos, ela ainda trabalha como faxineira num hospital aqui perto, no período noturno. Dizer que mamãe se mata por nós é apelido. Ela faz mais do que isso.- Acordei mais cedo, com fome. – minto, mas não é bem uma mentira, já que eu realmente comi mais cedo.- Xii. Será que os remédios estão tendo mais efeitos colaterais? Está na hora de trocar. – ela fala, preocupada. Para minha mãe, sempre que me sinto diferente ou meu corpo
Com você, eu sou uma linda bagunça.10 anos antes...- Leo! Pega! – vejo uma bola se aproximando de meu rosto e ergo as mãos, protegendo-me. Fecho os olhos e aguardo o impacto, que me derruba no chão.- Leo! – abro os olhos e vejo que o garotinho surgiu ao meu lado, o sorriso que até então iluminava o rosto desaparecera, ele parece preocupado. – Machucou? Sorrio mostrando os dentes, como quem diz que está tudo bem, e o garotinho se joga na grama, as pernas sobre as minhas.- Desculpa. – ele pede, olhando para o céu enquanto mexe na gravata borboleta vermelha, parecendo desconfortável.- Por quê? – olho-o de esguelha, confuso.- Porque eu te machuquei. E EU sou o mais velho, então tenho que