Prisioneiro 85
Prisioneiro 85
Por: Vinicius Meneses
1. AMNÉSIA

       

Um homem acorda, inesperadamente, em um lugar do qual ele nunca havia visto ou estado antes. Um espaço nada convencional, do qual uma pessoa jamais pensaria, ou queria estar em sã consciência, onde sonhos são destruídos e esmagados. Ninguém sabe o que acontece nessa zona... Entretanto, não se importam tanto com esta informação (já que ela pode custar até a sua própria vida). Ainda abrindo seus olhos, piscando forte a fim de terminar essa ação o quanto antes, além de balançar a cabeça com a finalidade de dar uma mexida no cérebro, ele percebe onde ele se encontrava, conseguindo enxergar o seu arredor, cujo ambiente, ainda guardaria coisas que o senhor não receberia de braços abertos. Aquele cenário não lhe agrada nem um pouco... Ele grita, e clama por explicações:

 — Ei! Onde diabos eu estou?! Por que eu estou aqui?! Alguém me responda!

Ninguém atende as suas dúvidas.

Os guardas que carregam o corpo fétido, sentimentalista e confuso do encarcerado, apenas seguem suas ordens de o levar ao seu purgatório particular, para assim pagar por seus pecados em terra. O indivíduo, sendo arrastado por aquele chão de concreto duro, sujo e frio, analisa as suas roupas (laranjas e malcuidadas), e continua a exigir as devidas respostas:

 — Eu não sou um criminoso! Droga! Deixa-me sair desse lugar por favor! Eu não sou um criminoso!

De novo, sem receber atenção das pessoas ali.

Contudo, ele não cessa seus pedidos, tanto de piedade, quanto clemência, e os berros desesperadores continuam a ser praguejados. Estes, acabam por chamar a atenção dos outros presos ao redor, todos “deslumbrados” ao verem o pobre homem pecador tentar dialogar com estátuas maciças.

Ganharam o direito de assistir a cena por meio das pequenas grades localizadas na parte de cima das espessas e grandes portas de metais, resistentes ao ponto de aguentarem um tiro de canhão. As grades mostram os olhos esbranquiçados daqueles que perderam suas chamas ardentes para meros crimes... meros prisioneiros.

Prisioneiros estes, desprovidos de expressões mediante seus pálidos rostos... apáticos. Os olhos deles? fundos... tão escuros e sombrios nas suas jogadas de olhares, que aparentavam estar desalmados. Grandes olheiras roxas cobriam e complementavam a parte de baixo dos olhos distantes. A pele? Igual a de corpos gelados num necrotério, prontos para serem analisados por um médico legista. Cabelos longos e malcuidados também faziam parte da caracterização daqueles indivíduos esquisitos, mostrando a grande passagem do tempo desde o aprisionamento de suas almas naquele buraco, responsável por passar uma sensação de morte e claustrofobia a quem ousasse atravessar as fronteiras do caos.

Por fim... as bocas, tão brancas quanto neve, e secas como um deserto sem oásis por perto. Mortas... que se cansaram de falar e gritar. Assim, acabaram sendo caladas por completo. Seria o equivalente a um monge exercendo seu voto de silêncio... imóveis e desgastadas. Talvez algum deles apenas aceitaram o destino e sentem vergonha dele, por isso eles são e agem desse jeito. Carcaças superficiais... cujos espíritos se cansaram de sofrer e seus corpos ficaram ali, por não terem sido decompostos ainda. Caminhantes que não possuem nenhum rumo dentro de suas mentes.

O coitado, sem largar mão, mantém a “chuva” de dúvidas no ar, embora todos os outros o ignoravam. Conclusões assertivas nunca foram tão importantes para seu ser se sentir “aliviado” naquela situação. Chegou ao ponto de quase perder a voz realizando sua ação angustiante... Todos os olhos queriam ver ele tentar e tentar de novo.

Os guardas encerram suas marchas, parando à frente de uma das enormes portas revestidas de aço, das quais se viam enfileiradas pelo local, mais especificamente na de número 32. Um deles solta o braço direito de sua carga, e pega um cartão de acesso de seu cinto. O cartão, dominado por um vermelho vibrante, possuía diversos códigos esquisitos e uma faixa branca com um símbolo de uma mariposa estampado.

Ao aproximar o cartão de um painel na porta, ele muda de cor e se transforma num verde igualmente vibrante. Dessa forma, a entrada da cela se abre, e os dois oficiais, usando de extrema agressividade, jogam o homem confuso dentro do pequeno espaço e, em seguida, fecham a limiar de metal atrás da pobre vítima, não deixando esperança de fuga a ela. Isso... foi só o começo.

O indivíduo se levanta do chão frio em que foi lançado e, de pé, observa o seu cárcere, que não tinha muita coisa assim. Uma cama, não das melhores, muito menos uma das devidamente bem cuidadas, mas era uma cama. A pia e o vaso sanitário.

A diferença dessa cadeia em comparação com as outras já conhecidas, é que, na parede do fundo da mesma, de frente para porta, não havia o revestimento de concreto e sim, em seu lugar, um grande espelho de vidro que fechava o cubículo de cimento. O prisioneiro estranha o enorme espelho, óbvio, se perguntado do “porque diabos uma prisão teria um espelho?” Ainda por cima, um que cobria um muro inteiro.

Quando viu seu próprio reflexo, o encarcerado analisa o rosto que o espelho mostra, assustado e complexado com a descoberta. A imagem refletida lembra-o de como se via, sua forma física... Pelo menos disso ele conseguiu se recordar.

Suas feições pareciam a de um adulto na meia-idade. Porém, não havia certeza se estava condizente ao que aparentava. Passava a mão de leve sobre sua barba por fazer e no seu cabelo preto e liso, que não tinha a intenção de ser tão grande, todavia, esticava e tampava as suas orelhas, tendo um certo volume de fios compondo seu relevo.

Depois de tal “objetivo” alcançado, ao menos relembrar o próprio rosto, o prisioneiro apoia as duas mãos no espelho, olha para o chão de concreto, respira fundo, e busca se acalmar, agindo com menor emoção e maior razão.

Após alguns segundos pensando, as perguntas direcionadas a si mesmo, começam a ser devidamente postas sobre a mesa, com a seguinte indagação:

 — O que eu fiz para acabar vindo parar nessa prisão? Eu deixei algo passar? Mesmo se tivesse, essa espécie de amnésia que me afetou, faria eu me esquecer de tudo. Não consigo decifrar nem meu próprio nome...

Ele deixa escapar um fundo suspiro, e segue seu raciocínio, dizendo:

 — Deveria perguntar a algum desses outros prisioneiros “onde eu estou?” Acredito que esses “zumbis” não me responderiam de maneira alguma, mas não custa tentar.

 Um leve otimismo emana de seu corpo.

O coitado se aproxima das grades da cela e inaugura suas palavras ao “público”, indo aos berros num alto tom de voz:

 — Olá! Alguém me escuta?! Se alguém conseguir me escutar por favor me respondam! Que raio de lugar é esse?! Alô!

  Sua tentativa é falha.

Espírito, alma, corpo, alguém verdadeiro, humano, ou coisa desse tipo, nunca quiseram alongar por muitos minutos a discussão que o homem confuso iria gerar, isto desde a primeira gritaria do senhor. A reação dos outros presos se mantém a mesma... Apatia é a lei entre quatro paredes.

A esperança esvaia aos poucos de seu interior. Sua fala, cansada e esgotada, já rouca, quase foi perdida. O já abalado, expurgado, renegado, e impertinente senhor, de costas, escorrega pela porta... até acabar se sentando no chão duro, encolhendo-se em uma posição de bola (posição fetal), fechando tudo ao seu envolto dentro de uma bolha de tristeza completa. Sem memórias, preso, e agora tomado por um pessimismo fulminante.

 — Ei! Ô novato! Dá para calar a boca um pouquinho?! Eu estou tentando dormir um pouco aqui, se você não se importa!

Uma voz grossa e cansada, vindo da cela ao lado, responde ao chamado do responsável por toda aquela algazarra desenfreada e, com isso, as esperanças são, de certo modo, renovadas.

O prisioneiro então, se levanta, de forma rápida, do piso e, agarrando as barras da grade que lhe permitia ver o lado de fora, embora o campo de visão fosse mínimo, ele fala as respectivas palavras:

 — Oi! Por favor me responda! Onde diabos eu estou?!

O outro prisioneiro retruca seco e rápido:

 — Você está numa prisão se não me engano.

O homem, desesperado, entende o sarcasmo na fala de seu “vizinho”, porém não deixa de dizer:

 — Isso eu sei!

 — Que bom! Então não precisa mais da minha ajuda. Tenha um bom dia.

Tomando os seus passos, querendo sair de cena e deixa-lo a beira do abismo, o ouvinte das clemências decide retirar-se.

 — Espera!

O coitado insiste e protesta contra o outro enclausurado, a fim de manter o diálogo.... O abismo foi o primeiro a piscar... Porém, recebeu olhos fixos ao invés de piscantes.

 — Eu quis dizer em que prisão estamos.

Assim, a persona ao lado decide voltar, vendo que aquilo podia ser interessante para matar o tédio de muitas horas passadas e, além disso, entregar algumas soluções ao único falante da prisão não seria algo trabalhoso de ser feito... Os dizeres são então jogados contra o senhor desesperado:

 — Não reconhece? Bom. Existe uma probabilidade, todavia, acredito que essa informação nunca foi do seu afeto, mas eu vou dizer onde estamos. Estamos detidos no pior cativeiro possível. É uma prisão de segurança máxima, localizada em uma ilha esquecida no nosso mapa. Portanto, se quiser escapar daqui, é melhor já começar a pensar agora. Vou logo avisando, mesmo se você fosse o melhor estrategista do mundo, não conseguiria ao menos passar da sua própria porta.

 — Ilha? Como você sabe que é uma ilha?

Pergunta, curioso.

 — Quando fui transferido para cá, me exportaram de barco e, ao voltar para minha realidade, percebi onde eu estava, apenas enxerguei água, vinda de todos os lados e nada mais.

O detido, contador da história do presídio, inspira um pouco de oxigênio, e continua a expor sua sabedoria, com os seguintes saberes:

 — Os guardas não dormem, e são treinados para não deixarem nada passar por eles e, se passarem, o pior acontece com a pessoa. Os arrombados são tão bem treinados, que a sede da inteligência desse lugar é noutra posição, não aqui. Ou seja, os comandos vêm de terceiros, enraizados a quilômetros de distância daqui. Esses soldados só recebem as ordens e as cumpre, deixando as hesitações e o fraquejo para nós.

 — Como você sabe tanta coisa desse lugar?

 — Você não faz ideia do meu tempo de cárcere nesse inferno rígido... Aliás, meu serial é 4545-N... Qual é o seu?

 — Serial? Que porra é essa?

 — É o número no peito da sua roupa.

O nosso protagonista puxa a parte do peito da roupa laranja e percebe a existência de uma etiqueta com alguns números e uma letra estampados nela.

 — Meu serial é 8585-V.

 — Nesse caso, você está substituindo o antigo prisioneiro 85...  Tenho pena do que aconteceu com ele.

 — O que sucedeu?

 — Melhor não saber V.

 — V?

Pergunta, estranhando o jeito de o chama-lo.

 — Sim, V. Acho que você concorda comigo, mas, falar todo esse código é um pouco chato as vezes. Então, para abreviar, eu pego a última letra e chamo você assim.

 — Seguindo sua linha de pensamento, eu deveria te chamar de N?

 — De preferência. Nada obrigatório, pode me chamar como quiser.

 — E esses seriais?

 — É a identificação de cada condenado daqui. O objetivo é fazer o nosso cérebro se acostumar. Servem também, para explicitar as características de cada encarcerado aqui, mas isso é questões de numerologia, e eu não entendo porra nenhuma desses simbolismos, nem creio neles, falando a verdade. Se torna mais fácil decorar um código, do que nomes verdadeiros. Além disso, se for somente 4 dígitos equivalentes, e uma letra, o trabalho fica mais fácil já. Isso serve, por exemplo, caso alguém tente fugir, coisa pouco provável de acontecer. Ou, quem sabe, auxiliar a Inteligência a perceber um indivíduo faltante, essas vigilâncias particulares, se é que você me entende.

 — Entendo sobre como governos e corporações podem fazer o mundo a maneira de seus ideais.

 — Isso até um cego pode ver. Somos controlados desde que nos entendemos por gente camarada.

 — Talvez existam grupos anarquistas por conta de pessoas que queiram mudar este mundo.

 — É interessante o jeito que pensa V. Entretanto, prefiro acreditar que os homens livres, são simples iludidos por consequências banais de “seres divinos”.

 — Diz isso com convicção?

 — A mais pura opinião que pude desenvolver ao me ver aqui embaixo... Sabe, tempo é muito valioso para os que estão do lado de fora. Os daqui só se preocupam se vão sobreviver.

 — Sobrevivência sempre moveu o homem N.

 — Continue com essa ideia, e veja tudo desabar diante dos seus olhos.

 — Prefiro descobrir a verdade de tudo antes de tentar essa hipótese.

 — Você que sabe.

Uma estática paira pelo ar, flutuando pelas cordas vocais de ambos os falantes... Pena que dura pouco, quando V retorna o diálogo com uma nova dúvida:

 — Se sabe tanto sobre essa prisão, qual é a desse espelho gigante na minha cela?

Uma genuína estranheza acomete N, o que lhe faz retrucar a dúvida do companheiro com outra por cima, dizendo:

 — Que espelho? Desde minha estadia aqui, nunca vi nenhum espelho na cela 32.

Não entendendo os dizeres de seu colega, crendo se tratar de uma brincadeira com sua face, V deixa a pergunta escapar.

— Outras celas têm esse espelho?

N responde:

 — Como eu disse, desde a minha entrada aqui, nunca avistei nenhum espelho. Seja na cela 85, ou em qualquer outra. Está tudo Ok contigo? Está vendo ilusões?

V replica com raiva na sua entonação:

 — Eu estou bem droga! Não estou mentindo! Eu até consegui encostar nele, e ver meu reflexo!

 — Ok, ok, eu acredito... Só achei estranho colocarem um espelho nessa cela especificamente.

Ao se acalmar, vendo que não era necessário exprimir fúria no momento, O prisioneiro então, pede as devidas desculpas, dizendo:

— Desculpa...  O motivo... Eu acordei aqui com quase zero recordações de coisa alguma, nem do meu próprio nome em sim. Ninguém tentou me explicar o porquê disso tudo... Unicamente assistiram o meu pedido de misericórdia com aqueles olhos mortos... Meu desejo é voltar pra casa, para minha família, ver minha esposa uma outra vez, andar pela cidade de mãos dadas com ela, coisas desse tipo.

N pergunta, tentando continuar a conversa:

 — Sua família? Talvez haja algo que lhe faça vê-los de novo dentro do consciente.

 — Não... Sei da existência deles pelo menos...  Minhas memórias foram apagadas por essa amnésia... Eu só...  queria ver seus rostos...  nada mais.

— Eu também recordo pouco da minha família. Nunca fui muito próximo de meus pais, e não desejei isto na verdade. Eu até tinha uma esposa, bonita, gentil e inteligente, o clichê da perfeição em pessoa. Entretanto, isso era uma mentira, e nos divorciamos no primeiro ano do nosso casamento.

O camarada do protagonista, percebendo que aquelas palavras remetiam a saudade de ter uma vida normal, sente uma nostalgia semelhante.

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