Porque só, eu sei
Porque só, eu sei
Por: Luiz Lima
3x4

Ela sempre foi uma boa amiga. A Esther. E parecia gostar mesmo de mim.

Eu sentia algo como que se eu arriscasse misturar as coisas, ela poderia se afastar e eu perderia tudo. Toda aquela amizade, a proximidade. Isso para um garoto franzino e tímido como eu era; cheio de amigos; porém sempre tratado como o amigo suplente, seria como perder uma perna.

Então eu ficava sempre a um passo de dizer algo, de fazer algo. Mas nunca fiz. O momento mais marcante de tudo isso foi talvez o nosso último encontro antes que ela se tornasse outra pessoa.

Morávamos numa cidade minúscula com algumas estradas de terra e outras de pedra, umas tantas casas com telhas de barro feitas à mão décadas antes, uma praça com um chafariz desativado e pronto. O resto era a natureza. Pastagens ou florestas.

Me lembro que ela retornava de uma viagem à capital, e passou na minha casa a caminho da dela.

Estava linda de causar sonhos, como eu costumava dizer. 

Os cabelos castanhos ondulados estavam presos no alto da cabeça com um lápis, enquanto duas mechas caiam-lhe de cada lado do rosto. A maquiagem já estava opaca e um pouco borrada ao redor dos olhos mas só se via se lhe fixasse o olhar, como eu fazia por vários momentos de no máximo dois segundos de duração. Vestia uma calça jeans escura e uma blusa vermelha de renda com um grande decote em "V" - provavelmente este é o detalhe da roupa que melhor me lembro.

Conversamos, e rimos bastante. Uma viagem à capital era sempre uma aventura, e ela havia ido fazer uma coisa que, para nós adolescentes do interior, era no mínimo novidade: a carteira de identificação. Ela num certo momento tirou da bolsa uma das fotos 3x4, que havia tirado naquele mesmo dia, e me deu para que eu guardasse como recordação.

E ali sentados na minha cama, transversalmente, com os pés no chão e as cabeças apoiadas na parede foi quando ficamos pela primeira vez  com uma distância de menos de quinze centímetros entre os nossos lábios.

A respiração tinha mudado. Um sinal que eu não conhecia na altura. E como tudo durou tão poucos segundos, foi o bastante para que eu hesitasse e deixasse escapar a chance.

A última. 

Hoje, mais longe da minha adolescência do que eu gostaria de estar. Vejo que esses momentos de pura descarga hormonal, que são praticamente quando e como tudo o de mais emocionante acontece na vida de um jovem, já não me são possíveis.

Já não estou naquele ambiente propício. Ou na fase da vida apropriada. 

Enquanto a maioria das pessoas normais aproveitaram essas chances, vivenciaram esses momentos, ou ao menos fracassaram neles e aprenderam algo, eu falhei ao hesitar e bloqueei tanto o resultado positivo quanto o aprendizado.

Pouco depois daquele momento eu havia crescido, se é que pode-se chamar assim. E me lembro de já não pertencer mais àquele círculo. Estava jogado para fora da redoma de vidro. Eu era um homem adulto.

Todas as outras pessoas jogadas para fora junto comigo tinham em seu background aquelas experiências. Tinham o que era preciso para sobreviver bem à cisão.

Basicamente: tinham vivido. 

Eu já não podia mais voltar e tentar outra vez. E não me via pronto pra encarar o mundo de complexidades que se estendia diante de mim e esperava que eu conquistasse um espaço.

Era o fim. Por assim dizer.

O som da caneta sendo pousada sobre o bloco de papel parecia o último movimento do ponteiro de um relógio de parede, quando as suas baterias esvaem-se.

- Gosto da maneira como constrói seus próprios diagnósticos Liam - eu tinha um zumbido longínquo na minha mente enquanto voltava a abrir os olhos. Como ao adentrar o silêncio do quarto depois de ter ido a um concerto de rock. Meu interlocutor falava devagar, me poupando de náuseas da viagem que eu retornava - Quase me faz questionar o motivo de estarmos fazendo isto.

Apesar da desorientação meu detector de conversa fiada ainda funcionava, então limitei-me a deixá-lo passar para a próxima nota. 

- Não ter beijado a doce Esther quando teve a chance foi sua principal lembrança desta ... "cisão"? Ou existem outras imagens nesse quadro? - agora ele já soava rápido demais outra vez. Sentei-me ainda olhando para os meus pés.

- Produzir diagnósticos só torna maiores os meus problemas Dr. Bennet. Espero que o senhor tenha tomado notas o suficiente. Não tenho dinheiro para mais um mês disto - pude sentir os olhos avaliadores do psiquiatra sobre mim enquanto recolhia meu casaco. De acordo com meu relógio já contaria como "hora-extra" aquela observação.

Um cumprimento com a cabeça e passei por ele em direção à porta do consultório. As paredes amarelas como dentes de um fumante já estavam a me causar asco.

Com a mão na maçaneta girei levemente o pescoço para trás:

- "Doce"?! Só havia uma pessoa virgem naquela noite no meu quarto. E não era a Esther.

Do lado de fora, um corredor cinza repleto de janelas por onde entrava uma luz branca de um entardecer nublado. Apertando os olhos era possível ver que a luz se fatiava em vários pedaços retangulares ao passar as barras de ferro. Os dois cavalheiros vestidos de branco, esperaram pacientemente que eu estendesse-lhes os meus pulsos. Apertaram as algemas e olharam divertidamente o desenho à caneta no meu braço. A seguir apoiaram suas mãos amigas nos meus ombros enquanto caminhamos em direção ao meu apartamento.

- E então Liam, ainda fantasiando que paga pelas sessões de terapia? Hum, aqui dentro a única moeda que sei que usam são seus orifícios! - a gargalhada exagerada fez com que eu me encolhesse na direção oposta a torcer o rosto numa careta. 

Nesta vida quem é que não deseja amigos com senso de humor? Eu tinha dois, vejam só.

- Esse lugar devia fazer uma olimpíada de lunaticos - a voz do segundo já foi abafada pela porta se fechando.

Uma realidade minimalista supostamente devia me fazer retomar o controle sobre os labirintos na minha mente - Simplicidade amigos, vocês deviam usá-la comigo ao invés de misturar suas projeções com as minhas - sentei-me na cama. Os pulsos livres outra vez. Levei um certo tempo para notar. Minha voz ecoava, não nas quatro paredes do quarto, mas nas incontáveis outras que cercavam o verdadeiro Eu. 

Amigos. Me lembro de ter alguns tantos que nem estes. Se a justiça divina for que nem a dos mortais então acho que hoje alguns deles também vestem branco. Estejam onde estiverem.

Leia este capítulo gratuitamente no aplicativo >
capítulo anteriorpróximo capítulo

Capítulos relacionados

Último capítulo