Por um fio
Por um fio
Por: Samara Martin
PRÓLOGO

Era mais um desses finais de tarde de verão típicos do interior, com céu alaranjado, ar quente e abafado, com os grilos e cigarras anunciando a chegada da noite. A brisa que batia era suave e fresca por conta das árvores que cobriam boa parte do espaço onde ficava situada a maior praça de Lachesis, localizada bem no centro da pequena cidade.

Lachesis, nome derivado da cobra popularmente conhecida como surucucu, cujo nome científico batizou a cidade que era relativamente pequena, reconhecida por ser a segunda maior produtora de tomate do Estado, também por suas lindas paisagens com cachoeiras e trilhas naturais e que segundo antigos moradores locais contam, fora construída sobre a carcaça de uma enorme cobra que protegia a cidade de qualquer estrangeiro que tentasse destruir suas belezas naturais.

Sentado em um dos bancos de madeira que mesmo antigo continuava com o verniz brilhante, ao redor do grandioso coreto que compunha o centro da praça onde supostamente estaria enterrada a cabeça da enorme cobra, e onde começavam a se aglomerar pessoas para assistir ao concerto de bandas da cidade que acontecia mensalmente, Andrew sorriu, ao pensar em como era bom estar de volta, encontrar todo aquele pessoal ali reunido simplesmente para apreciar a música boa de algumas bandas e de outras não tão boas assim, mas que eram aclamadas do mesmo jeito por pura gentileza dos espectadores e que eram compostas ora por jovens, ora por pessoas mais velhas.

Ali ele não precisava preocupar-se com os empurrões, pois, ao invés de correr como nos centros urbanos, as pessoas sorriam umas para as outras e conversavam com entusiasmo, olhando nos olhos e não apenas através do reflexo na tela do celular como estava já acostumado a presenciar na grande cidade de São Paulo.

A lei do progresso, porém, é natural e a tecnologia estava também muito presente na vida dos lachesienses, os próprios nomes dos moradores mais jovens denunciavam a relação da pequena cidade com tudo o que há de mais moderno. Contudo, cidades menores como aquela também tinham mais facilidade em preservar a tranquilidade e o contato humano. Não estamos falando de uma herdade onde não existe água encanada, eletricidade, ‘internet’, apenas de um lugar que como poucos havia conseguido encontrar em grande parte o equilíbrio entre tecnologia e relações humanas.

Voltemos a Andrew. Ele havia partido para a capital do estado, São Paulo, já há quatro anos. Assim que completara sua maior idade, na intenção de se profissionalizar músico partiu para a cidade grande. Formou-se pela Escola Técnica de Música de São Paulo e agora estava estagiando em uma das maiores produtoras do país, a Boom Music.

Desde que partiu, havia estado em Lachesis poucas vezes. No início como a maioria das pessoas criadas no interior, entusiasmado com tudo que uma grande cidade oferece, preferia a agitação e as (milhares) de tarefas próprias de um estagiário, essas que ocupavam sua mente turbulenta e criativa. Assim sua presença na empresa foi se tornando cada vez mais necessária, e era tudo o que ele queria, só não imaginava que seria tão desgastante, que não teria descanso, sem tempo nem mesmo para pensar e criar sua própria música, compor com calma como fazia no pequeno quarto que tinha na casa de sua mãe.

Quando seu chefe finalmente concedeu suas férias, sem a opção de pagar por elas, Andrew pegou o primeiro ônibus para sua cidade natal. Estava carente do colo da mãe, do ar puro e até do cheiro que tinha sua terra. Da conversa sob as estrelas, como fazia com os velhos amigos de infância, e de respirar de verdade, coisa quase impossível de realizar com tanto trabalho e poucas opções seguras de lazer ao ar livre que tinha em São Paulo.

O rapaz continuava sentado no mesmo banco de madeira, cercado por garotas que desde que se lembra estiveram a sua volta disputando por sua atenção. Meninas mais novas e ainda imaturas, as quais ele havia beijado, quase todas, e depois dispensado com o famoso “o problema não é você”, e que agora o achavam ainda mais interessante devido ao sotaque e estilo distinto (daqueles que estavam acostumadas a ver por ali) adquiridos na cidade grande.

Andrew não era um galã como esses dos filmes, com traços perfeitos e muitos músculos, mas era bonito. Uma beleza sutil, escondida atrás de seus pequenos olhos verdes escuros e seu cabelo castanho que parecia ser arrumado para dar um ar desleixado. Usava sempre roupas mais largas e de preferência escuras, camisetas com estampas coloridas que lembravam os muros grafitados das grandes cidades, os tênis sempre nos pés. 

 Mantinha ainda o ar misterioso, através de seu jeito manhoso de ser convencido. Talvez esse fosse seu maior charme, o motivo pelo qual as garotas morriam de amor por ele. Andrew era gentil, tinha fala mansa e, em simultâneo, um ânimo sem fim. Era obstinado, tinha um jeito descomplicado e leve de viver, mas não revelava muito de si mesmo.

Na época do colegial as garotas disputavam o cargo de “primeira namorada do Andrew”, uma competição de ego boba que nenhuma delas conseguira vencer.

Bernardo, seu melhor amigo desde a meninice, estava sentado ao seu lado, achando graça da situação que se repetia, percebendo o orgulho e satisfação do jovem em ter todas aquelas pobres garotas ainda aos seus pés, massageando seu ego. 

Andrew até era um cara legal, mas não quando se tratava de amor. Ele simplesmente não acreditava no tal sentimento, por isso nunca tivera nenhum romance ou namoro sério desses em que se apresenta aos amigos, a família, achava tudo isso uma grande bobagem. Era um colecionador de corações partidos. Espírito Livre era uma expressão clichê demais, mas descrevia muito bem o rapaz e seus vinte e quatro anos.

As moças que o rodeavam naquele momento faziam parte, quase todas, do grupo de balizas da banda marcial lachesiense. Muitas ex-colegas de ensino médio que insistiam em manter as aparências atrás do uniforme muito parecido com o de líderes de torcida, outras eram mais novas, mas já conheciam a fama do rapaz, e logo foram chamadas pelo líder do conjunto, para juntos darem início as apresentações do encontro que acontecia mensalmente.

Assim que as garotas se afastaram, um rapaz alto de cabelos encaracolados e que parecia ter uns vinte e oito anos, vestindo um short jeans e camiseta regata com logo de alguma banda de ‘rock’ e que deixava à mostra seus braços cheios de tatuagens, aproximou-se dos dois garotos sentados no banco.

— Pensei que não ia conseguir cumprimentar o famosinho da capital! — Disse o garoto rindo enquanto estendia a mão para cumprimentar Andrew.

— E aí cara, beleza? — Ele respondeu abrindo um grande sorriso, desses de comercial de pasta de dentes, o rapaz também tinha um sorriso cativante, que combinava com o tom pardo de sua pele. Enquanto se levantava, apertava a mão do antigo colega e com a outra dava tapinhas em suas costas, devolvendo os cumprimentos de Lucas, mais conhecido pelos amigos por conta do sobrenome italiano, Grecco.

O moço era um antigo colega dos tempos de Escola, com o qual Andrew compartilhou e aprendeu muito sobre os caminhos da música.

— Tudo certo! Vai mostrar um pouco do que aprendeu na cidade grande hoje? — Provocou o garoto.

— Não, não, vou deixar pra vocês. Sou eu que preciso aprender depois de tanto tempo longe… — Respondeu Andrew um pouco sem graça. Não julgava ser melhor só por passar algum tempo fora.

— Disso duvido hein mano, mas tá certo. — Grecco continuou — Tá ligado que roubei seu parceiro enquanto esteve fora né? — Perguntou ele aproximando-se de Bernardo, que continuou sentado e deu um leve sorriso com o canto dos lábios.

— É, fiquei sabendo, tô aguardando aqui pra ver a “Alpha Beats” tocar. — afirmou Andrew, cruzando os braços em frente ao corpo e desviando o olhar para o chão por alguns segundos, revivendo em silêncio todos os momentos vividos com o amigo Bernardo e outros com Grecco, percorrendo toda sua trajetória com a música dentro daquela cidade, perguntando-se o que teria acontecido se tivesse continuado em Lachesis.

Será que a Alpha Beats existiria? “Com certeza não”, respondeu a si mesmo. Pelo menos não com Bernardo sendo um dos integrantes, eles certamente teriam continuado com “Os Galácticos”, banda idealizada e dirigida pelo irmão de Andrew, Marcos (ou Marquinhos, para os íntimos como nós) e ainda estariam tocando as mesmas músicas, realizando as mesmas apresentações, sempre da mesma forma.

Aliás, esse era um dos principais motivos para a tomada de decisão de Andrew de ir para outra cidade: poder se desvincular do irmão e seu conjunto meia boca, do qual Bernardo também fazia parte, mas não queria parecer grosseiro nem ingrato uma vez que, se estava trilhando os caminhos da música era porque seu irmão os havia apresentado.

Marquinhos, contudo, era muito cabeça dura, não aceitava opiniões contrárias, ninguém ousava ir contra ele, muito menos Andrew que tinha ainda mais alguns motivos familiares para não discordar do irmão. Estudar fora havia sido uma maneira de evolução pessoal e profissional. Entretanto, agora, parado diante de seus velhos amigos, sentiu saudade de algo que poderia ter vivido com eles.

Seus pensamentos foram interrompidos com a chegada de duas garotas. Assim que levantou a cabeça encontrou os olhos da primeira. Estava diante de um lindo par de olhos, dotados de um brilho natural. Eram castanhos com um toque esverdeado, envoltos por uma camada espessa de rímel e lápis escuros que realçavam ainda mais o tom claro de sua pele, bem como seu cabelo longo de um tom preto azulado.

A garota que a acompanhava também era muito bonita, tinha cabelos loiros cacheados que estavam semi presos, os olhos verdes claros como peridoto. Grecco percebendo que a atenção do garoto havia sido desviada com a chegada das belas moças tratou logo de as apresentar:

— Deixe me apresentar às duas joias da nossa banda. — Disse colocando-se entre às duas meninas, abraçando-as pela cintura — Briana… — pronunciou referindo-se a bela moça de cabelos escuros que sorriu para ele como cumprimento — … E Candyelle, my girl… — Finalizou cantarolando uma música que aprenderam a tocar na época do ensino médio deixando claro que aquela era “sua” garota.

— Mas pode me chamar de Candy! — A moça tratou logo de avisar.

O que passaram a murmura após a fala da garota Andrew não conseguiu lembrar, o nome da primeira ficou ressoando em sua mente: Briana, tão forte como sua presença.

Ficou pensando na conversa que tivera com a mãe por telefone dias atrás e que contava animada do nascimento de um dos netos do casal vizinho, o nome do bebê era Enzo assim como o de outros trinta meninos nascidos na mesma semana. Andrew e a mãe então passaram a discutir o porquê da falta de criatividade atual dos pais para dar nome a seus filhos, por que ele e outros amigos com a mesma idade tinham nomes tão diferentes? A mãe apenas respondeu que na época estavam na moda nomes americanizados, inspirados em muitos artistas estrangeiros da época.

— Então, já conversei com minha mãe e tudo certo, podemos fazer nosso ensaio na garagem de casa esse final de semana e se precisar nos outros também. — Disse Briana olhando para Grecco que estava agora sendo abraçado pela namorada. Só então Andrew voltou a si, focando nas palavras que a garota dizia.

— Beleza! Show de bola. — Respondeu Grecco animado, esfregando uma mão na outra.

— Ainda com problemas com espaço para ensaios… — Explanou Andrew descruzando os braços e colocando as mãos nos bolsos das calças sem disfarçar que não conseguia tirar os olhos de Briana.

— É, pelo visto já conhece bem a situação dos músicos daqui. — Respondeu à garota arredia, dando uma rápida olhadela para Andrew e em seguida virando-se, olhava para todos os lados como quem procura alguém.

— Ei Bri, lembra do cara que comentei que estava estagiando na Boom? É ele! — Falou Bernardo, que havia se levantado colocando um dos braços no ombro do amigo.

— Ah... — Ela voltou a olhar para a turma, fitando Andrew por poucos segundos: — Leva ele no ensaio, quem sabe pode dar uns toques pra gente. — Disse à Bernardo como se Andrew não estivesse ali ou como se não pudesse falar com ele.

Reservada, talvez tímida ou seria pura arrogância? Em seguida, como se houvesse lido seus pensamentos, a garota encarou-o firme soltando um sorriso, mas sem mostrar os dentes. Posteriormente puxou uma das mãos de Candyelle que ainda estava presa ao pescoço de Grecco.

— Então vamos parar com a melação e ir até o banheiro comigo antes que chegue nossa vez de tocar. — Disse para amiga.

 E saíram às duas dali. A loura olhando pra trás revirando os olhos de brincadeira.

— O que aconteceu com o cara que não gostava de mulheres envolvidas com a banda? — perguntou Andrew dirigindo-se a Grecco, porém, com os olhos fixos nas garotas que se distanciavam.

— Pois é velho… — Começou Grecco coçando a cabeça com uma das mãos: — Desde que você foi embora muita coisa mudou por aqui. Poucos músicos e os que restaram sempre brigando ou muito chapados.

— Muitas vezes as duas coisas juntas. — Interrompeu Bernardo.

—Pois é, falta de profissionalismo e de organização, coisa que não falta pras minas, pelo menos para essas duas.  — Continuou Grecco. — Elas são bem… competentes.

— Sei… nada a ver com você estar dando uns pegas em uma? Ou nas duas talvez? — Provocou Andrew, e os três riram.

— Sério mano, nada disso, agora sou homem de uma mulher só. Você, aliás devia experimentar esse lance. E é mais que isso, elas têm muito talento, cê precisa ver. — Respondeu Grecco balançando a cabeça para cima e para baixo. 

"É. Preciso ver mesmo, e bem de perto". Andrew pensou, mas não disse. Apenas sorriu de canto jogando a cabeça para um lado e esfregando o pescoço com uma das mãos.

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